Encontros etnográficos com documentos burocráticos

Estratégias analíticas da pesquisa antropológica com papéis oficiais1

Letícia Ferreira2
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
https://orcid.org/0000-0001-8466-5904
leticiacarvalho@gmail.com

Resumen

Desde la década de 1990, la investigación etnográfica con documentos producidos por instituciones estatales se ha multiplicado, ganando cada vez más espacio y relevancia en la literatura antropológica. El presente artículo se apoya en esta literatura y en la experiencia acumulada de tres investigaciones con documentos burocráticos para reflexionar sobre las dimensiones y aspectos generales de este tipo de etnografía y describir algunas estrategias analíticas especialmente productivas frente a estos papeles. Abordo tales dimensiones, aspectos y estrategias tanto en términos generales como en función de su productividad específica en las etnografías que realicé y que presento en el texto: una realizada en un archivo público, sobre la clasificación de cadáveres no identificados; otra realizado en una comisaría, sobre la gestión policial de casos de personas desaparecidas; y una tercera, realizada en un servicio público de asistencia social, sobre la gestión de casos de niños y adolescentes desaparecidos. Investigar en estos tres contextos me permitió ampliar mi comprensión de lo que son los documentos burocráticos y de los múltiples roles que ellos pueden desempeñar tanto en la rutina de las instituciones estatales como en el diseño metodológico de la investigación antropológica.
Palabras clave:
etnografía; documentos; burocracia; estrategias analíticas; metodología

Ethnographic encounters with bureaucratic documents: analytical strategies of anthropological research with official documents

Abstract

Since the 1990s, ethnographic research with documents produced by state institutions has increased, gaining more and more space and relevance in anthropological scholarly literature. The article draws on this literature and the cumulative experience of three ethnographies with bureaucratic documents to reflect on general dimensions and aspects of this type of research and to describe some analytical strategies that are especially productive while facing this paperwork. I approach such dimensions, aspects and strategies both in general terms and by analyzing their specific productivity in the ethnographies that I carried out: fieldwork conducted in a public archive on the classification of unidentified corpses; secondly conducted at a police station, on the management of missing person cases; and a third, carried out in a public social assistance office, on the management of missing children cases. Researching these three contexts allowed me to broaden my understanding of what bureaucratic documents are and the many roles they can play both in the routine of state institutions and the methodological design of anthropological research.
Keywords: ethnography; documents; bureaucracy; analytical strategies; methodology

RECIBIDO: 22 de enero de 2022
ACEPTADO: 15 de junio de 2022

Cómo citar este artículo: Ferreira, Letícia (2022) “Encontros etnográficos com documentos burocráticos: estratégias analíticas da pesquisa antropológica com papéis oficiais” Etnografías Contemporáneas 8 (15).

Introdução

Arquivos históricos, acervos coloniais, conjuntos documentais diversos e fontes escritas bastante variadas tiveram papel importante na antropologia em diferentes momentos de sua história, inclusive em períodos cruciais para sua própria formação e consolidação como disciplina acadêmica e campo profissional. Contudo, por muito tempo esse tipo de material empírico teve sua relevância ocultada ou mesmo desqualificada em prol de modalidades de autoridade etnográfica predominantes na disciplina (cf. Clifford, 2002), centradas na experiência e sedimentadas no “estar lá” (Geertz, 2009) e em convenções narrativas que privilegiavam, por vezes exclusivamente, aquilo que era visto em campo, conforme sugere a idéia de visualismo proposta por Fabian (2010). Aquilo que era lido e os muitos papéis examinados, transcritos, manipulados e analisados no curso de pesquisas etnográficas, nesse sentido, recebia pouca atenção, sendo muito raramente tomado como objeto de reflexões de natureza teórico-metodológica. Esse quadro se alterou de modo decisivo a partir da década de 1990, quando pesquisas antropológicas com certos tipos de documento se multiplicaram, ganhando cada vez mais espaço na disciplina.

O movimento que vimos a partir dos anos 1990, com o interesse crescente na incorporação dos documentos como campos de indagação (Muzoppapa e Villalta, 2011) e como artefatos etnográficos (Hull, 2012a) legítimos e especialmente produtivos em determinados campos de pesquisa, permanece vigoroso nos dias atuais. Pesquisas sobre temas diversos e realizadas em contextos muito variados seguem sendo publicadas, como indicam exemplos de obras de grande alcance publicadas em língua inglesa: o trabalho de Hull (2012b) sobre a construção, regulação e habitação da cidade em Islamabad, Paquistão; a etnografia de Mathur (2016) sobre a implementação de duas leis específicas em uma localidade remota na região do Himalaia na Índia; o livro de Gupta (2012) sobre programas de desenvolvimento na região rural de Uttar Pradesh, também na Índia; o trabalho de Strong (2020) sobre o combate ao fenômeno da morte materna na região de Rukwa, Tanzânia; e, ainda, a coletânea de Horton e Heyman (2020) sobre as relações entre migrantes e burocracias locais nos Estados Unidos. Esses trabalhos assentam parte central de seus argumentos e contribuições teórico-metodológicas na restauração analítica da visibilidade dos papéis na pesquisa antropológica.

Conforme indicam esses exemplos, assim como a resenha bibliográfica publicada por Matthew Hull (2012a) na Annual Review of Anthropology, que recupera justamente a produção antropológica sobre o tema publicada em língua inglesa, essa restauração analítica da visibilidade dos papéis se faz precisamente a partir do engajamento de antropólogos com um tipo específico de papéis: os documentos produzidos por instituições estatais, que, nos termos propostos pelo próprio Hull (2012a), podemos chamar de documentos burocráticos. É sobre pesquisas etnográficas com esse tipo de documento que trato no presente artigo, interessando-me particularmente sobre os desafios práticos de realizá-las e os ganhos analíticos que elas podem proporcionar.

A tomada de documentos burocráticos como artefatos etnográficos e campos de indagação vem contribuindo para diferentes áreas específicas no interior de nossa disciplina, o que pode ser visto com especial nitidez se consideramos também a produção em outras línguas, como o espanhol e o português. A antropologia da economia (Onto, 2019, 2020), os estudos de gênero e sexualidade (Freire, 2016), as relações étnico-raciais (Cunha, 2002; Ribeiro Corossacz, 2009) e a gestão das menoridades (Vianna, 2002; Villalta, 2006; Lugones, 2012) são exemplos de campos que têm sido expandidos por trabalhos ricos e densos realizados a partir do engajamento de antropólogos com papéis oficiais. Não obstante, é o campo que podemos designar mais amplamente como antropologia do Estado que mais tem se beneficiado com essa crescente produção etnográfica.3 A reflexão de Muzzopappa e Villalta (2011) a esse respeito é crucial para a compreensão da rentabilidade da pesquisa com documentos em reflexões antropológicas sobre o campo estatal, assim como os trabalhos reunidos na coletânea Ferreira e Lowenkron (2020) e a renovada antropologia da burocracia (cf. Bernstein e Mertz, 2011; Bear e Mathur, 2015) que tem sido produzida em diferentes contextos nacionais.

O presente artigo inscreve-se nesse quadro de renovado interesse da antropologia pelos documentos burocráticos e crescente engajamento de pesquisadores da área com papéis, carimbos, prontuários, fichas, processos e tantas outras modalidades e suportes materiais de informação produzidas cotidianamente por instituições estatais. A contribuição que busco realizar aqui, contudo, é circunscrita às possíveis estratégias analíticas acionadas nesse tipo de empreitada. As perguntas centrais que motivam o texto podem ser assim delimitadas: como analisar antropologicamente documentos burocráticos? Que estratégias particulares o engajamento com esse tipo de papel demanda? Se, conforme lembrado acima com as obras de Geertz (2009) e Fabian (2010), a consolidação da autoridade etnográfica fundada no “estar lá” conferiu relevância quase exclusiva à técnica da observação participante no trabalho de campo e à retórica visualista nos textos etnográficos, que abordagens metodológicas, estratégias analíticas e dispositivos narrativos são mais recorrentes em investigações que tomam documentos burocráticos como seus artefatos centrais?

Mobilizada por essas questões, retomarei aqui parte da literatura especializada no tema, evocando exemplos de etnografias de antropólogos brasileiros que acionam algumas estratégias analíticas recorrentes em encontros etnográficos com documentos burocráticos. Em seguida, retomarei três pesquisas que realizei em momentos distintos de minha trajetória acadêmica (cf. Ferreira, 2009; 2015; 2017), com o objetivo de ilustrar o uso prático de algumas dessas estratégias. Pergunto-me, diante de cada uma dessas investigações, o que significou tomar documentos como campos de indagação (Muzoppapa e Villalta, 2011) naqueles contextos; quais foram as razões específicas pelas quais esse movimento se deu em cada um deles; e, ainda, que estratégias analíticas acionei. As pesquisas a que me refiro foram realizadas nas duas primeiras décadas dos anos 2000, em três espaços institucionais onde documentos são arquivados e/ou produzidos: um arquivo público, uma delegacia de polícia, e uma repartição pública de assistência social, todos na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Como também explicito mais adiante, a experiência cumulativa de pesquisar nesses espaços ampliou meu entendimento do que são os documentos burocráticos e dos muitos papéis que eles podem desempenhar tanto na rotina de instituições estatais, quanto no desenho metodológico de pesquisas antropológicas.

Encontros etnográficos com documentos burocráticos

O recente e vigoroso interesse antropológico pelos documentos burocráticos iluminou de modo incontornável o fato de que etnografias em arquivos, sobre arquivos e que tomam papéis e tipos variados de acervos e fontes escritas como artefatos etnográficos não são trabalhos destoantes na área, embora muitas vezes sejam assim apresentados. Além disso, considerando sua contribuição para o referido campo da antropologia do Estado, esse movimento também revelou que, em determinados contextos de pesquisa, analisar documentos e práticas de escrita burocrática são tarefas imprescindíveis. Documentos burocráticos, afinal, não são meros desdobramentos formais de ações estatais, e sim “ações em si mesmas” (Gupta, 2012:188), que incidem sobre os sujeitos, fatos e relações a que se referem. A faculdade de criar e manter arquivos, ademais, “é o emblema máximo da burocracia moderna” (Riles, 2006: 5), devendo ser, ela mesma, objeto de reflexão. Por tudo isso, se, como mostra Herzfeld (1997), as “poéticas do Estado” são especialmente eficazes por apagarem seus rastros e tornarem-se processos naturalizados e essencializados, analisar papéis produzidos, colocados em circulação e/ou arquivados em repartições públicas pode ser uma maneira, ainda que circunscrita a situações etnográficas específicas, de recuperar alguns desses rastros. Em suma, “restaurar a visibilidade analítica dos documentos” (Hull, 2012: 253), olhando para eles e não através deles, é um exercício particularmente rentável e muitas vezes incontornável em pesquisas que pensam antropologicamente o Estado.

Esse é um interesse central em minha trajetória acadêmica, fundamental, portanto, de recuperar aqui. Desde o mestrado, quando realizei uma primeira investigação antropológica sistemática (Ferreira, 2009), tenho me dedicado a compreender as formas através das quais saberes, técnicas e procedimentos burocráticos adotados em instituições estatais brasileiras incidem sobre experiências, dramas e biografias de indivíduos, famílias e unidades domésticas, bem como a refletir sobre as modalidades de articulação, ajuste ou contraposição entre as formalidades previstas por tais saberes e técnicas e determinadas moralidades que têm lugar em instituições estatais.4 Ainda, tenho buscado analisar as eventuais disputas estabelecidas entre servidores públicos e os sujeitos por eles atendidos, considerando que a assimetria de poder implicada em suas interações não desfaz a possível engenhosidade dos últimos em face dos primeiros - embora seja, em muitos casos, determinante para a reprodução de hierarquias e desigualdades sociais. Esses propósitos me guiaram em pesquisas sobre três temas: primeiro, uma investigação sobre a classificação e gestão institucional de mortos não-identificados no Rio de Janeiro das décadas de 1940 e 1950, realizada a partir de um arquivo público; segundo, uma pesquisa sobre a administração policial de casos de desaparecimento de pessoas no Rio de Janeiro no começo dos anos 2000, conduzida por meio de trabalho de campo em uma delegacia de polícia no centro da cidade; e, terceiro, uma etnografia sobre a administração de casos de crianças e adolescentes desaparecidos em um serviço público de assistência social também no Rio de Janeiro, agora anos 2000 e 2010, conduzida por meio de trabalho de campo nas dependências do serviço, na zona sul da cidade.

Cumulativamente e em diálogo com outros trabalhos sobre documentos e burocracia, essas três investigações permitiram-me experimentar a “epifania etnográfica de que documentos são algo distinto ou algo mais do que o que eles dizem” (Hull, 2012a:254), recorrente na literatura. Não obstante, permitiram-me também conhecer e explorar algumas dimensões cruciais da chamada etnografia de documentos que já receberam atenção de antropólogos, como, por exemplo: (a) o insight fundamental de que “documentos não são simplesmente instrumentos de organização burocrática, e sim são constitutivos de regras, ideologias, conhecimento, práticas, subjetividades, objetos, resultados e mesmo das próprias organizações” (Hull, 2012a:253); (b) a produtividade de focarmos não apenas nas populações e sujeitos documentados, exercício mais frequente na disciplina, mas também naqueles que produzem documentos burocráticos em seu cotidiano, explorando tanto seus afetos (Stoler, 2007), quanto a própria ordinariedade de sua lida cotidiana com papéis; (c) o poder heurístico particular dos documentos burocráticos para a produção de conhecimento antropológico sobre controle administrativo em determinadas instituições e sobre a construção burocrática de sujeitos, objetos e socialidades, conforme sustenta Hull (2012a); e, ainda, (d) a capacidade ímpar da pesquisa com esses papéis de permitir identificar o caráter poderoso e ficcional do Estado, possibilitando sua apreensão não como entidade unitária, coesa e homogênea, mas “como uma arena de disputas que se desenrolam em torno do poder estatal” (Muzzopappa e Villalta, 2011, p.18).

Somando-se à experiência direta dessas dimensões proeminentes da etnografia com documentos já sinalizadas por outros autores, as investigações que realizei permitiram-me conhecer dois outros aspectos desse tipo de pesquisa que eu gostaria de registrar de modo a contribuir para a discussão. O primeiro deles é o fato bastante evidente, mas não menos relevante, da grande variedade de contextos de pesquisa e tipos de documentos que têm resultado em ricas etnografias que refletem sobre os temas do Estado e da burocracia. Apenas para citar alguns exemplos, temos pesquisas com processos judiciais realizadas a partir de arquivos públicos (Vianna, 2002) ou da presença da pesquisadora em órgãos do sistema de justiça (Lacerda, 2015); etnografia de um serviço público itinerante centrada na certidão de nascimento obtida por cidadãos adultos que viveram a maior parte de suas vidas sem qualquer documento de identificação (Escóssia, 2021); trabalhos que refletem sobre a agência de gráficos e tabelas a partir de etnografia em um órgão federal de regulação econômica de alto escalão (Onto, 2019) ou sobre tecnologias de cálculo do impacto sócio-ambiental de grandes projetos como a construção de uma usina hidrelétrica (Morawska Vianna, 2014). Temos também pesquisa que analisa laudos cadavéricos e suas marcas gráficas a partir de trabalho de campo junto a movimentos da sociedade civil que reúnem familiares de vítimas de violência (Farias, 2020); etnografias que refletem sobre conjuntos documentais heterogêneos, com certidões, laudos médicos, relatórios técnicos e também fotografias pessoais reunidos na forma de “casos” em um núcleo de defesa dos direitos humanos (Freire, 2016); e, ainda, análises sobre documentos médicos como o partograma e seus usos (e desusos) na maternidade de um hospital onde a autora realizou trabalho de campo (Strong, 2020) ou a Declaração de Nascido Vivo (DNV), também a partir de etnografia em maternidade (Ribeiro Corossacz, 2009).

Essa variedade de contextos e, sobretudo, de tipos de documentos a partir dos quais as pesquisas podem ser realizadas merece registro não apenas por sua riqueza, mas principalmente porque ilumina a vasta amplitude da própria noção de “documento burocrático” com o qual podemos trabalhar na antropologia. Como menciono mais adiante, a ampliação dessa noção foi um dos principais ganhos analíticos do engajamento sucessivo com diferentes tipos de papéis em minhas pesquisas. De um primeiro encontro com documentos depositados em um arquivo público e, por isso mesmo, comumente tomados apenas como fontes históricas, passando pela análise de documentos policiais no próprio espaço em que eles são produzidos, manipulados e arquivados, cheguei por fim a uma pesquisa em que me deparei com fotografias e outros documentos pessoais incluídos em cartazes e pastas de uma repartição pública, como cartões de celebração de datas comemorativas, bilhetes pessoais e retratos de família. Registros de vidas “privadas” encontrados em gavetas de uma repartição pública, que me permitiram pensar sobre o Estado como uma presença espectral materializada em documentos (Das e Poole, 2004) diversos, inclusive alguns que, à primeira vista, jamais associaríamos ao mundo oficial e à burocracia.

Somando-se a essa variedade e à amplitude da noção de documentos burocráticos proporcionada pela pesquisa com papéis, o segundo aspecto desse tipo de investigação que eu gostaria de registrar é sua rentabilidade particular em contextos de fortes desigualdades sociais, quando a reprodução dessas desigualdades é parte das perguntas que mobilizam os pesquisadores. Entre tantos outros trabalhos relevantes que seguem nessa linha, são especialmente ilustrativas as pesquisas realizadas no Brasil e interessadas em discutir a reprodução de desigualdades de raça/cor no país em sua relação com práticas estatais. Cunha (2002), por exemplo, reflete sobre as práticas policiais de identificação criminal voltadas para a prevenção da vadiagem no Rio de Janeiro dos anos 1920 e 1930. A autora analisa as lógicas envolvidas na guarda sistemática de documentos de identificação em repartições como delegacias de polícia, e demonstra como classificações raciais operaram como princípio ordenador central das relações sociais naquele contexto, especialmente marcado pela influência da antropologia criminal e do racismo científico. Ademais, revela que a identificação criminal consistiu num conjunto de práticas de conhecimento capazes de reproduzir desigualdades por meio do ato aparentemente trivial de preencher documentos.

Também a obra de Ribeiro Corossacz (2009), realizada a partir de contexto bastante distinto, contribui no mesmo sentido. O objeto de pesquisa da autora são os protocolos de preenchimento da Declaração de Nascido Vivo (DNV), documento preenchido obrigatoriamente em hospitais no momento do nascimento de um bebê e pré-requisito para a obtenção de uma certidão de nascimento no Brasil. A partir de trabalho de campo em hospitais-maternidade públicos do Rio de Janeiro no começo dos anos 2000, Ribeiro Corossacz demonstra como o preenchimento do campo cor/raça na DNV é cercado por silêncios, constrangimentos e conflitos que revelam concepções racistas e hierarquizantes da população brasileira, vigentes entre os médicos, os enfermeiros e também os pais e as mães dos bebês nascidos nos hospitais em que pesquisou. Outros trabalhos que também revelam a presença dessas concepções em repartições públicas, mas a partir da análise de práticas de instituições do sistema de segurança pública e justiça criminal, são as obras de Medeiros (2016; 2018) e Farias (2020), que além de iluminarem as desigualdades de raça/cor, analisam também outros marcadores sociais da diferença que incidem de modo decisivo na administração institucional de mortes, vidas e territórios marginalizados no Brasil.

Algumas estratégias analíticas possíveis diante da papelada

Acima, tratei de recuperar dimensões gerais de encontros etnográficos com documentos burocráticos indicadas na literatura, como o insight de que esses papéis são constitutivos das regras, práticas e subjetividades e das próprias organizações em que circulam (ou são arquivados), além de registrar dois aspectos específicos desse tipo de pesquisa que busquei acrescentar: a variedade de documentos e contextos etnográficos possíveis e a produtividade do engajamento com esses papéis para reflexões sobre desigualdades sociais. Pude experimentar essas dimensões e sistematizar esses aspectos a partir do contato continuado com a literatura antropológica sobre documentos e burocracia e da experiência cumulativa das investigações que realizei.

Não obstante, essa experiência e o contato com a literatura especializada permitiram-me também conhecer algumas estratégias analíticas recorrentes nesse tipo de pesquisa. Trata-se de um conjunto de abordagens e formas de interpelar documentos que se apresentam muitas vezes combinadas em cada etnografia, mas que podem ser descritas separadamente para facilitar sua compreensão e enfatizar sua produtividade específica, como busco fazer a seguir. Nas próximas partes do texto, de modo a complementar a descrição geral e em separado dessas abordagens que realizo logo abaixo, relato como elas foram acionadas em minhas próprias pesquisas e com que efeitos. Já na presente seção, o propósito é seguir contribuindo para a discussão mais ampla sobre etnografia com documentos burocráticos. Faço isso sistematizando quatro abordagens ou estratégias analíticas frequentes na pesquisa com papéis oficiais e mencionando, a título de exemplo, algumas etnografias realizadas no Brasil que as exploram com especial produtividade.

A primeira dessas estratégias é a tomada do tema aparentemente habitual do acesso à documentação como objeto de reflexão. O acesso, que pode facilmente ser encarado como uma etapa óbvia, necessária e pouco significativa da pesquisa, quando diz respeito a documentos burocráticos “resulta ser uma pista para análise” (Muzzopappa e Villalta, 2011: 24). Como a reflexão sobre esse tema feita por Muzzopappa e Villalta (2011: 19-25) indica de modo especialmente instrutivo, os passos dados rumo ao acesso aos papéis, os obstáculos enfrentados, as autorizações solicitadas e as eventuais recusas, impedimentos e impossibilidades que enfrentamos quando realizamos (ou pretendemos realizar) etnografias com documentos devem ser objeto das mesmas operações teórico-metodológicas que realizamos diante de quaisquer outros fatos e acontecimentos do “campo” que convertemos em dados etnográficos. É fundamental, portanto, não apenas registrá-los em notas e cadernos de campo que muitas vezes permanecem ocultos ou são considerados de menor importância em comparação com outros elementos da pesquisa, e sim contextualizá-los, interrogá-los, buscar conferir-lhes inteligibilidade.

Em suma, é preciso considerar esses passos do encontro com papéis oficiais como parte integrante das pesquisas, sejam eles bem ou malsucedidos. Como afirmam as autoras, “não só é possível construir conhecimento a partir do exame do que os documentos dizem, mas também através do estudo das formas em que se possibilita ou se impede nosso acesso a eles” (Muzzopappa e Villalta, 2011: 25). Esse exercício se apresenta como uma abordagem essencial em pesquisas com documentos burocráticos, que pode render ganhos analíticos consideráveis não só sobre as instituições estatais mais imediatas com que se entra em contato para realizar as investigações, mas sobre o campo estatal de modo mais amplo, em sua heterogeneidade e com suas assimetrias, segredos, informalidades, relações pessoais, moralidades e disputas de poder.

Assim como os trabalhos das próprias autoras recuperados no artigo supracitado, a etnografia de Nadai (2018) sobre o Instituto Médico-Legal (IML), realizada nas cidades brasileiras de Campinas e São Paulo também é ilustrativo da importância de submetermos o tema do acesso às mesmas operações teórico-metodológicas que acionamos diante de quaisquer outros dados etnográficos que construímos. Mais até do que analisar as dificuldades e recusas que seu projeto de investigação recebeu da instituição, a autora baseia sua etnografia nesses impedimentos, demonstrando a relevância dos obstáculos, balcões e múltiplos checkpoints impostos à sua pesquisa para a reprodução cotidiana da autoridade técnico-científica do IML.

A segunda estratégia analítica que recupero aqui, bastante recorrente na literatura, é o investimento na materialidade dos documentos: isto é, o exercício de buscar identificar as qualidades materiais e estéticas dos papéis com que se pesquisa, assim como suas marcas gráficas, os padrões formais que eles impõem para as informações que registram, enfim, sua dimensão propriamente física e material. Uma premissa fortemente presente na produção antropológica contemporânea sobre esses papéis é a de que “discursos burocráticos não são mais entendidos como construções semióticas (“textos”) abstraídas ou abstraíveis de seus veículos materiais – arquivos, formulários, relatórios, gráficos, e assim por diante.” (Hull, 2012a: 253). O corolário metodológico mais imediato dessa premissa é justamente a dedicação de tempo, atenção e esforço de registro e reflexão sobre seus aspectos formais, encarando-os não como elementos secundários em comparação com o conteúdo, mas como uma dimensão tão ou mais relevante que ele.

Em muitas pesquisas, a exemplo de Nadai e Veiga (2020), esse exercício permite iluminar a importante relação entre brasões, cabeçalhos, carimbos, assinaturas e fórmulas narrativas impressas em papéis estatais e o caráter de verdade atribuído ao seu conteúdo. Ademais, identificar e analisar as qualidades materiais dos documentos pode, como no caso da etnografia de Hull (2012b) em Islamabad, revelar que os aspectos formais, físicos e estéticos dos papéis com que se pesquisa podem operar em processos não relacionados ao seu conteúdo. Um exemplo disso é a distribuição ou diluição de responsabilidades entre os funcionários de determinadas instituições engendrada pelas formas e fórmulas de assinatura e reprodução de documentos que o autor ilumina em seu livro.

No caso de trabalhos realizados no Brasil, a etnografia de Onto (2020) no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, ilustra de modo exemplar a rentabilidade de “descrever etnograficamente como características materiais ou formais dos documentos produzidos e/ou circulados no CADE resultam em certos tipos de significações ou associações” (Onto, 2020: 54). O trabalho do autor ilumina o papel decisivo dessas características materiais dos documentos no cotidiano tanto dos funcionários daquele órgão, quanto dele próprio durante seu trabalho de campo. A etnografia aponta ainda para um interessante desdobramento do investimento na materialidade dos documentos para a escrita de textos resultados da pesquisa com papéis. No texto específico citado aqui, o autor recorre não apenas à prosa etnográfica, mas também a fotografias e figuras como parte constitutiva de sua narrativa. Assim, seus leitores podem visualizar os autos de processos depositados sobre a mesa de um dos assessores do CADE que foram interlocutores do autor em campo; os armários onde ficam guardados os processos que circulam no órgão; um quadro branco fixado em uma das paredes do CADE com registros indicando a distribuição de processos entre funcionários; e, ainda, uma cópia de uma tabela em Excel produzida por um chefe de gabinete com cálculos de prazos dos processos sob responsabilidade do órgão. Parte integrante da análise de Onto, as fotografias e figuras dos papéis com que ele pesquisou, do mobiliário das salas do CADE e de artefatos de registro como quadros e tabelas colocam o leitor em contato direto com a pungência do tema da materialidade da burocracia, reforçando a rentabilidade de investir analiticamente nele quando lidamos com papéis oficias.

A terceira estratégia frequente na literatura que considero relevante registrar aqui é talvez a mais enfatizada em obras recentes: o investimento na agência ou na performatividade dos documentos burocráticos. Esse investimento implica interpelar os papéis a partir de questões relativas não (ou não apenas) ao que eles dizem e às suas características formais, estéticas e materiais, mas sim ao que eles fazem, produzem ou incitam nos contextos onde circulam e são produzidos ou arquivados. Tais interpelações, como demonstram as etnografias de Navaro-Yashin (2007) e de Hull (2012b), permitem identificar as eventuais capacidades desses papéis de provocar afetos, de fazer ou romper associações e socialidades e de concorrer para a construção de objetos, entidades e subjetividades. Ainda, como argumenta Morawska Vianna (2014), permitem demonstrar como tecnologias e procedimentos burocráticos mobilizados “na trilha de papéis” técnico-administrativos são capazes de ocultar seu caráter político sob a faceta da técnica. Por fim, esse tipo de interpelação permite também apreender as formas por meio das quais documentos burocráticos são capazes tanto de delimitar quanto de cruzar domínios supostamente apartados da vida social, como o privado e o público (Ferreira, 2013) ou o social, o econômico e o ambiental (Morawska Vianna, 2014).

Interessada especificamente no tema dos afetos, a etnografia de Navaro-Yashin (2007) sobre a interação entre turcos-cipriotas e papéis burocráticos diversos, em especial documentos de identificação e de viagem, tira proveito dessa estratégia de modo exemplar. O propósito da autora não é compreender como os sujeitos da pesquisa projetam afetos nesses papéis, o que endossaria o entendimento de que apenas sujeitos, e não documentos, demonstram agência nessa relação. Ao contrário, interessa-lhe estudar documentos “como capazes de carregar, conter ou incitar energias afetivas quando transacionados ou colocados em uso em redes de relações sociais específicas” (Navaro-Yashin, 2007, p.81). Papéis oficiais, na perspectiva da autora, geram afetividades diferenciadas e politicamente carregadas, o que pode ser identificado quando os abordarmos a partir de perguntas sobre sua agência.

Trabalhos etnográficos realizados no Brasil que ilustram bem não apenas a rentabilidade dessa estratégia, mas também essa capacidade dos documentos de incitar afetos são os trabalhos de Escóssia (2021) sobre brasileiros que obtêm suas certidões de nascimento tardiamente e o de Schritzmeyer (2015) sobre o encontro de brasileiros adultos que foram abrigados em instituições públicas quando crianças com os antigos prontuários referentes a seu abrigamento. Ambas demonstram como o contato, o manuseio, a posse ou a ausência de determinados documentos são capazes de provocar os mais diversos afetos, como a vergonha, a alegria, a altivez e a esperança, endossando a produtividade de uma abordagem que atribui agência a esses papéis e da pergunta posta pelos trabalhos pioneiros de Peirano (1986, 2006) sobre documentos no Brasil: “de que serve um documento?” Muitas vezes, mostram as autoras, um documento serve a funções e provoca efeitos bastante diversos daquilo que se esperaria de um simples papel oficial formal, padronizado e impessoal.

Finalmente, a quarta estratégia analítica recorrente e especialmente produtiva em etnografias com documentos burocráticos que recupero aqui é o investimento na “micropolítica das interações entre documentadores e documentados” (Lowenkron e Ferreira, 2020:24): o exercício de identificar e analisar as relações daqueles que produzem e/ou arquivam os documentos (agentes, autoridades, profissionais, especialistas diversos) tanto entre si, quanto com os sujeitos a quem os documentos se referem. Esse exercício consiste em prestar atenção às disputas, hierarquias, autoridades e assimetrias que atravessam as relações entre os envolvidos nas práticas de documentação. Se, como alega Hull (2012a:255), é mais frequente que o foco de pesquisas com documentos recaia sobre as pessoas que são documentadas (ou indocumentadas), como seria especialmente nítido nos trabalhos sobre o tema dos afetos, prestar atenção às interações entre documentadores e documentados permite ampliar a abordagem para incorporar também aqueles que produzem e/ou arquivam os papéis e suas relações com aqueles sobre quem os documentos falam.

A pesquisa de Lowenkron (Lowenkron e Ferreira, 2020) em meio a inquéritos da Polícia Federal brasileira relativos a crimes de “tráfico de pessoas para fins de exploração sexual” ilustra bem a produtividade dessa estratégia. Interrogando-se sobre as interações dos policiais, produtores e signatários daqueles inquéritos, com as possíveis vítimas de tráfico de pessoas sobre quem os inquéritos versam, a autora demonstra que “as supostas ‘traficadas’ manipulam as informações segundos seus próprios interesses. Com isso, geralmente, resistem ao processo criminalizador/vitimizador, pois raramente denunciam ou contribuem para a configuração da materialidade do delito” (Lowenkron e Ferreira, 2020:27). Ao identificar essa dinâmica a partir de seu encontro etnográfico com papéis, a autora argumenta que a agência das supostas vítimas do crime de tráfico de pessoas pode ser vislumbrada não só em suas trajetórias de mobilidade e migração internacional, como sinalizam trabalhos já consolidados sobre o tema, mas também em suas interações com autoridades policiais de seu país de origem – interações essas que são fortemente mediadas por documentos.

Três encontros etnográficos com documentos burocráticos

De modo a contribuir para a discussão sobre o renovado interesse da antropologia pelos documentos burocráticos, sistematizei quatro estratégias analíticas acionadas em pesquisas etnográficas com papéis desse tipo: (a) abordagem do acesso (ou impedimento dele) aos documentos pesquisados não como mera etapa inicial da investigação, mas como objeto de análise; (b) investimento na materialidade dos documentos, buscando identificar suas qualidades materiais, formais e estéticas e seus possíveis efeitos e desdobramentos; (c) investimento na agência ou na performatividade dos papéis, interpelando-os não em relação ao que eles dizem, mas ao que eles fazem, acionam ou provocam em determinados contextos; e (d) investimento na micropolítica das interações entre documentadores e documentados. Além de descrever brevemente cada uma dessas estratégias, tratei de recuperar exemplos de trabalhos etnográficos que demonstram a rentabilidade de cada uma delas, destacando pesquisas feitas no Brasil.

Mesmo os exemplos citados, contudo, indicam que essas formas de abordar documentos burocráticos comparecem muitas vezes combinadas na pesquisa antropológica. Pesquisadores investem tanto no tema do acesso, quanto na materialidade dos papéis, em sua agência e/ou na micropolítica entre documentadores e documentados para tratar de temas de pesquisa e situações etnográficas bastante diversos. Esse é o caso das três pesquisas que realizei e que busco recuperar a seguir, tratando de explicitar o que significou tomar documentos como artefatos etnográficos nessas investigações, quais foram as razões específicas pelas quais fiz esse movimento e, principalmente, que estratégias analíticas usei, e com que resultados, em cada um desses encontros etnográficos com papéis burocráticos.

No arquivo: acesso e materialidade

Como são classificados os numerosos corpos anônimos enterrados cotidianamente em cemitérios públicos de cidades brasileiras? Que trajetória burocrática é percorrida por esses cadáveres, que não são velados, pranteados e sepultados por familiares, e sim enterrados anonimamente nas valas comuns de cemitérios? Que práticas institucionais, carimbos, anotações, exames e silêncios encadeiam-se para que alguém reste enterrado “como indigente”, como diz a expressão popular? Foi guiada por indagações como essas que realizei minha pesquisa de mestrado (Ferreira, 2009), tomando como material empírico um conjunto de prontuários de cadáveres examinados no Instituto Médico-Legal (IML) do Rio de Janeiro. O propósito era compreender como se dá a classificação de corpos “não-identificados” na instituição.

No Brasil, os IMLs são repartições das polícias técnico-cientificas. Os corpos de pessoas que morrem sem identificação no país devem necessariamente passar por um IML, instituição cuja função principal é realizar perícias médicas com fins legais. Na instituição são periciadas pessoas vivas que tenham sofrido tipos diversos de violência ou acidente, cadáveres que tenham sofrido morte suspeita ou violenta e cadáveres não-identificados que tenham sofrido morte violenta, suspeita ou natural. Como meu interesse de pesquisa era justamente compreender a categoria “não-identificado” e analisar as práticas estatais voltadas para corpos assim classificados, para realizar a pesquisa eu sabia que deveria procurar por um IML. Mais do que isso, porém, em função de duas premissas fundamentais em que se baseava meu projeto, eu sabia também que deveria procurar mais precisamente pelos documentos produzidos por um IML.

Essas premissas eram as seguintes: primeiro, a de que práticas de escrita, documentação e manutenção de arquivos burocráticos estão dentre as práticas mais centrais e definidoras do Estado e da burocracia moderna (cf. Weber, 1963; Bourdieu, 1996; Riles, 2006); e segundo, a de que para analisar arquivos, documentos e práticas de escrita burocrática é preciso encará-los não como meros desdobramentos formais de ações estatais, mas como ações em si mesmas, que, como apontam trabalhos já citados aqui (Peirano, 1986, 2006), têm usos, sentidos e efeitos bastante específicos na sociedade brasileira. A partir dessas premissas, eu entendia que dentre as práticas estatais que eu pretendia analisar necessariamente estariam práticas de documentação. Por isso, fui em busca não exatamente do IML mais próximo, mas dos documentos produzidos por ele.

Naquele momento, os documentos produzidos pelo IML do Rio de Janeiro entre 1907 e 1965 estavam em processo de organização e tratamento no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), indisponíveis para consulta pública. Em função disso, recebi repetidas negativas à minha solicitação para acessá-los, seguidas sempre da recomendação para aguardar até o final do processo de organização e tratamento para iniciar a pesquisa. Esse quadro de recusas mudou, contudo, quando detalhei meus interesses de pesquisa para uma servidora do APERJ. A servidora, hesitante no começo, listou as dificuldades para autorizar minha pesquisa, destacando não só que os papéis estavam em tratamento, mas também o imperativo do sigilo em torno dos nomes das pessoas e corpos examinados no IML. Sublinhou, com firmeza, que eu precisaria garantir o anonimato daqueles cujos exames eu conheceria nos papéis, e que só com essa garantia poderia fazer a investigação.

A receptividade da servidora e o tom de nossa conversa mudaram radicalmente quando relatei que os papéis específicos que me interessavam eram aqueles referentes a corpos não-identificados. Para ela, isso desfazia o problema da indisponibilidade dos documentos para consulta pública e resolvia de antemão a questão do sigilo, que parecia poder ser relativizada. Como me interessavam corpos anônimos, não havia mais questão sobre garantir o sigilo dos nomes dos periciados. Isso me permitiu perceber que, da perspectiva da servidora, o sigilo deveria ser resguardado em relação aos nomes daqueles que passavam pelo IML, mas não se estendia aos demais dados registrados sobre cada um deles, seus exames e suas mortes, nem a eventuais dados dos peritos e demais funcionários do IML que produziam os papéis, como cargos e assinaturas.

Depois dessa conversa, minha presença na sala do APERJ onde os documentos estavam sendo tratados e organizados foi autorizada, e estabeleci uma sistemática de pesquisa que perdurou pelos meses seguintes. Os passos iniciais para obter acesso aos papéis, porém, não se tornaram apenas uma etapa prévia, puramente pragmática e pouco significativa para o estudo. Ao contrário, a relativização da importância do sigilo por parte da servidora, submetida à estratégia analítica de investir atenção no tema do acesso aos papéis, foi uma pista crucial para um dado envolvente da pesquisa, que fui compreendendo gradualmente: a desimportância atribuída por servidores públicos aos papéis relativos a corpos não-identificados, presente não só no arquivo, mas também no próprio IML. Essa desimportância, sinalizada nas falas da servidora sobre sigilo, se apresentou também nos meus primeiros dias de pesquisa, quando um dos então estagiários do APERJ se aproximou de mim dizendo que não entendia o que eu pretendia fazer com aqueles documentos. Para ele, os registros dos não-identificados até poderiam ter alguma serventia para pesquisas estatísticas, mas investigações qualitativas como a que eu pretendia fazer não teriam nada a encontrar ali. Nas palavras dele, não havia “história” a contar sobre aqueles corpos, pelo menos não a partir daqueles documentos.

A “história” que me interessava, porém, estava exatamente naqueles papéis: a trajetória burocrática percorrida pelos cadáveres, na qual envolviam-se o IML, a polícia, hospitais e sujeitos diversos (e dispersos). Um dos elementos centrais dessa trajetória dizia respeito justamente àquilo que a análise do acesso aos papéis me permitiu identificar: a desimportância atribuída aos documentos parecia ser um desdobramento direto da desimportância atribuída aos próprios corpos não-identificados e às suas mortes. O que me interessa destacar aqui, não obstante, é que só compreendi isso ao acionar outra das estratégias analíticas apresentadas acima: o investimento na materialidade dos documentos. Prestar atenção à dimensão física, estética e formal dos papéis que manuseei, li e transcrevi ao longo da pesquisa foi um investimento fundamental para que eu percebesse a economia de esforços voltada para os corpos não-identificados no IML.

Documentos rasgados nas laterais ou com marcas antigas de sujeira e descuido; nas margens de alguns, pequenos rabiscos e até um desenho de mapa com itinerário indicativo de alguma rota que um funcionário do IML possivelmente precisava percorrer naquele dia quando saísse do trabalho; campos e mais campos de formulários preenchidos com termos como “desconhecido”, “ignorado”, “não sabido” ou simplesmente deixados em branco, mesmo quando outros papéis referentes ao mesmo corpo mostravam que havia informações disponíveis para preenchê-los; assinaturas não realizadas; grafias mal acabadas; procedimentos e registros não realizados. Eram inúmeras as marcas da desimportância dos corpos não-identificados presentes na materialidade daqueles documentos, índices inegáveis de representações sociais em torno, por um lado, do que seria a morte anônima em uma grande cidade, e, por outro, de certos corpos especialmente atravessados por desigualdades sociais e marcadores sociais da diferença que, talvez por isso mesmo, morreram sem identificação. Essas representações, os papéis me mostravam, comparecem no interior de uma instituição como o IML, sendo decisivas para a forma como esses corpos são administrados após suas mortes.

Na delegacia: acesso, materialidade e agência

Depois da pesquisa sobre a classificação de corpos “não-identificados”, voltei minha atenção para outra categoria: a de “desaparecidos civis”, utilizada para designar sujeitos registrados em repartições públicas como desaparecidos, mas cujos desaparecimentos não se enquadram no tipo penal internacional “desaparecimento forçado de pessoas”, amplamente denominado “desaparecimento político”. O termo designa casos bastante variados: pessoas que optam por deixar suas famílias e casas sem informar seu paradeiro; pessoas que se perdem na cidade por razões e em circunstâncias variadas; pessoas que cometem crimes e são detidas, mas seus familiares não tomam conhecimento; e, entre outras possibilidades, vítimas de crimes ou de acidentes fatais que morrem sem identificação e sem que seus familiares possam ser informados.

Nessa segunda pesquisa, interessava-me refletir sobre os mecanismos de gestão burocrática e moral destinados, no Brasil, àqueles que parecem escapar da possibilidade não só de identificação oficial, como os não-identificados, mas também de localização. Eu imaginava ser esse o caso dos desaparecidos, e por isso elaborei um projeto de doutorado para investigar as condições de produção e os modos de gestão estatal do problema do “desaparecimento” e dos “desaparecidos civis”. Com o projeto, eu pretendia refletir tanto sobre o fenômeno do desaparecimento quanto sobre a própria idéia de Estado (Abrams, 1988), e para realizar a pesquisa busquei identificar serviços públicos dedicados a gerir casos de desaparecimento de pessoas no Rio de Janeiro. Entre muitas buscas, encontrei o setor onde finalmente realizei trabalho de campo: um setor da Delegacia de Homicídios da Polícia Civil especializado em casos de desaparecimento.

Meu propósito inicial era realizar um trabalho de campo que eu considerava “tradicional”: eu pretendia acompanhar a rotina do setor fazendo observação participante, e pensava sobre isso mobilizando o imaginário mais comum em torno do fazer antropológico, que não considera documentos burocráticos como artefatos etnográficos possíveis. Porém, uma vez estando em campo, os policiais que me receberam apontaram a pesquisa com documentos como uma alternativa que, para eles, seria mais confortável do que meus planos iniciais de observação participante. Eles diziam se sentir menos expostos se eu lesse e transcrevesse documentos do que se estivesse na delegacia observando suas rotinas. Isso porque produzir, preencher, receber, organizar e arquivar aqueles papéis, embora fossem atividades regulares de seu ofício, não eram percebidas por eles como algo que permitiria ver o que eles fazem. Como pude compreender ao longo do tempo, de seu ponto de vista o preenchimento de papéis era uma parte do trabalho que lhes parecia menos controversa, menos significativa, mais simples e, de certo modo, não-relacionada ao que eles entendiam ser “a realidade” do setor, da delegacia e do trabalho policial em geral. Ou seja, foi porque meus interlocutores entendiam que papéis eram elementos nada decisivos de seu cotidiano que me foi dada a oportunidade de pesquisar com e nos papéis daquele setor.

Assim como acontecera na pesquisa sobre a classificação dos não-identificados, novamente a forma como se deu meu acesso aos papéis foi uma pista fecunda, reveladora de um dado englobante do objeto de pesquisa: a (ir)relevância atribuída por servidores públicos a determinados documentos – ou melhor, a documentos que versam sobre determinados corpos e pessoas. No caso da pesquisa sobre os desaparecidos, paulatinamente compreendi que a irrelevância conferida aos papéis expressava a relativa irrelevância do próprio “desaparecimento de pessoa” como ocorrência policial, comparada pelos policiais com outras ocorrências que eles julgavam mais merecedoras de seu trabalho e atenção: roubos, sequestros, homicídios, latrocínios e outros crimes previstos na lei penal brasileira. Desaparecimentos não são crimes e, por isso mesmo, para os policiais consistem em “problemas de família”, e não “problemas de polícia” (cf. Ferreira, 2015). Em suma, para eles o desaparecimento é um problema menor, o que torna as práticas de documentação executadas diante de cada caso também menores e, por isso mesmo, com acesso facilmente franqueável à uma pesquisadora.

Se o investimento no tema do acesso revelou-se estratégia analítica fecunda também nessa pesquisa, o mesmo se deu com a atenção à materialidade dos papéis. O contato imediato e repetitivo com a dimensão formal dos documentos me permitiu identificar não só novos indícios da irrelevância a eles atribuída pelos policiais, mas também alguns efeitos dela. Um indício da irrelevância se apresentava, por exemplo, na forma parcial e pouco cuidadosa com que os papéis eram preenchidos, em sentido bem semelhante ao que vi no estudo sobre os não-identificados: um preenchimento econômico, pouco dedicado e repleto de termos como “desconhecido”, “ignorado” e campos deixados em branco. Contudo, nos desparecimentos esse preenchimento pouco esforçado gerava um efeito importante: revestia os casos de um caráter enigmático que, embora parecesse ser inerente aos desaparecimentos em si, era basicamente efeito da forma parcial e descuidado como os casos eram documentados. Isso se intensificava, ademais, pelo fato de os formulários preenchidos diante de cada caso terem formato adequado para registro de crimes, prescrevendo o preenchimento de dados inexistentes em ocorrências de desaparecimento, como “autor”, “vítima” e “local do fato”. A forma dos documentos, portanto, impactava consideravelmente nos casos de desaparecimento, tornando-os aparentemente enigmáticos e dificultando a própria investigação policial. Afinal, os documentos pareciam registrar casos de difícil solução, em função da escassez de informações disponíveis. Essa escassez, porém, era efeito da própria forma dos documentos e de como eles eram preenchidos pelos policiais.

Não obstante a produtividade das estratégias de investir no tema do acesso e na dimensão material dos papéis, também a de interpelá-los em termos de sua agência foi um caminho analítico muito produtivo nessa segunda pesquisa. A leitura diária, repetida e cumulativa de casos documentados no setor me permitiu construir um dos argumentos centrais do trabalho (cf. Ferreira, 2013): o argumento de que, embora vistos como irrelevantes pelos policiais, aqueles papéis são parte crucial da administração policial de casos de desaparecimento no Rio de Janeiro, e isso não só pelo efeito que a forma dos papéis têm sobre os casos. A administração policial dos casos na cidade, como compreendi na pesquisa, se dá principalmente pelo que chamei de “delegação de responsabilidade”: ainda que registrem os casos e tenham o dever legal de investiga-los, os policiais delegam para as famílias dos desaparecidos a responsabilidade de encontrar seus desaparecidos. O ponto central a destacar aqui é que eles fazem isso através de conselhos, compromissos e sutis acusações de natureza moral que são, com efeito, registrados em documentos. A efetivação dessa “delegação de responsabilidades”, nesse sentido, depende fortemente da materialidade que esses conselhos, compromissos e acusações ganham ao ser registrados, revelando as muitas capacidades performativas daqueles documentos.

No serviço de assistência social: agência e micropolítica da documentação

Mais recentemente, investi na terceira e última pesquisa que recupero aqui: a etnografia em um serviço público de assistência social voltado para familiares de crianças e adolescentes desaparecidos no Rio de Janeiro. As duas ações principais do serviço são prestar atendimento às famílias, ouvindo e registrando os casos, e ajudá-las na localização das crianças por meio da divulgação sistemática de retratos de cada um deles em suportes gráficos variados: cartazes, rótulos de botijão de gás, verso de recibos de pedágio de rodovias e contracheques de pagamento de servidores públicos, entre outros. Os funcionários que atuam no serviço reúnem os retratos das crianças cujos casos de desaparecimento são por eles registrados e os distribuem por esses meios de divulgação. Cada cartaz, rótulo de gás, recibo de pedágio ou contracheque indica, ao lado da fotografia, o nome e número de telefone daquela repartição. Qualquer pessoa que veja as fotografias e tenha notícias ou suspeitas sobre o paradeiro de alguma das crianças retratadas pode prestar essa informação ao serviço usando o telefone indicado.

No curso do trabalho de campo, entendi que os retratos das crianças entregues para divulgação eram oriundos de acervos domésticos, sendo na maior parte das vezes recortadas de fotos maiores das crianças com outros familiares e retiradas de álbuns e coleções pessoais. Ao ser incluídas nos cartazes, porém, convertiam-se em outro tipo de artefato gráfico, distanciando-se do mundo dos acervos privados e aproximando-se justamente do universo dos papéis oficiais. Por mais distintas em forma e conteúdo que fossem dos papéis que eu havia analisado nas pesquisas anteriores, também aquelas fotografias, quando impressas nos cartazes, tornavam-se documentos burocráticos – passíveis, portanto, de ser submetidas às mesmas estratégias analíticas que eu voltara para os papéis dos não-identificados examinados no IML ou dos casos de desaparecimento geridos pela polícia. Comecei a alargar, assim, meu entendimento do que são documentos burocráticos: afinal, registros como aqueles retratos pareciam poder ser “fotos de família” durante muitos anos e passar a ser “documentos burocráticos” ao ser entregues, copiados e reproduzidos em cartazes por um serviço público como aquele em que eu pesquisava.

Acionando então a estratégia de interpelar aqueles documentos em termos de suas capacidades performativas, pude identificar o papel central das fotografias na produção do problema público do “desaparecimento de crianças e adolescentes” e, em alguns casos, na justificação de intervenções feitas em unidades domésticas por parte de diferentes agentes de Estado, como argumentei depois (cf. Ferreira, 2017). Investir na agência daqueles artefatos gráficos, portanto, foi bastante produtivo nesse caso. Mas, como sugerido acima, fazer isso só foi possível porque a etnografia no serviço e a repetida observação e manuseio de cartazes e outros meios de divulgação das fotos levou-me a ampliar meu entendimento do que sejam documentos burocráticos de modo a abranger suportes de informação menos facilmente identificáveis como papéis oficiais. Não obstante, essa ampliação não se fez apenas em direção aos retratos das crianças.

Embora aquela fosse uma repartição assistencial, dedicada à proteção dos familiares de desaparecidos e a ajudá-los a encontrar suas crianças, a primeira das ações principais do serviço – ouvir e registrar os casos mediante preenchimento de formulários padronizados –– revelava cotidianamente o caráter acusatório do atendimento ali prestado. Todos os familiares que chegavam ao serviço eram interrogados sobre as seguintes questões impressas nos formulários preenchidos por lá: se na família da criança desaparecida há “espancamento”, “alcoolismo”, “uso de tóxicos”, “violência doméstica”, “abuso sexual” e “maus-tratos”; se os pais trabalham, e se esse trabalho é formalizado. Essas categorias, impressas de modo padronizado nos documentos, revelavam um conjunto de estigmas e preconcepções sobre unidades domésticas de crianças desaparecidas, documentando-as segundo parâmetros flagrantemente acusatórios. Analisar o conteúdo desses papéis parecia suficiente para identificar isso. Não obstante, investir na micropolítica das interações entre documentadores e documentados, última das estratégias analíticas que sistematizei neste artigo, permitiu-me ir além da constatação desses parâmetros acusatórios vigentes no serviço.

As famílias atendidas ali não eram passivas diante da forma de documentação à qual eram submetidas. Ao contrário, acionavam uma tática bastante recorrente, revelada por um elemento ao mesmo tempo trivial e muito significativo do cotidiano daquela e de tantas outras repartições públicas no Brasil: as pastas e envelopes de documentos que eles mesmos levavam ao serviço quando iam procurar ajuda para localizar suas crianças. Essas pastas não guardavam somente os papéis exigidos para cadastramento de um caso na repartição, como documentos de identificação civil, comprovante de residência, Registro de Ocorrência Policial e fotografia da criança. Além desses e de outros documentos oficiais, também cartas, cartões e mesmo desenhos feitos pelas crianças em dias festivos, ao lado de boletins escolares, cartões de vacinação e pequenos bilhetes eram muitas vezes apresentados aos funcionários do serviço e incluídos em cópia nas pastas do que ali são chamados de “casos”, como fui notando ao longo da pesquisa.

Apresentados em meio a narrativas sobre a dedicação e a atenção concedida às crianças, esses papéis consistiam em um mecanismo acionado pelas famílias para disputar os parâmetros através dos quais são descritas no setor, procurando estabelecer outros termos nos quais pudessem ser documentados: não como famílias onde há “espancamento” ou “uso de tóxicos”, mas como famílias cuidadoras e afetuosas. O crucial de sublinhar aqui é que essa disputa era feita justamente por meio de documentos, o que pude compreender ao investir analiticamente na micropolítica das interações entre quem documenta e quem é objeto de documentação naquela instituição estatal. Os documentos em questão, porém, em nada se pareciam com os formulários padronizados (e acusatórios) usados no serviço, e era justamente por isso que serviam como instrumentos de disputa acionados pelas famílias atendidas ali.

Considerações finais

A noção de que documentos burocráticos são objetos que não podem ser desconsiderados ou tomados como simples fontes de informação que não merecem atenção em si mesmos está consolidada na antropologia. Nesse sentido, o entendimento desses papéis como mediadores, dotados da capacidade de transformar, traduzir, distorcer, deslocar e modificar aquilo que carregam e veiculam, tem comparecido em inúmeras discussões e pesquisas que, como provoca a literatura especializada no tema, tem olhado para esses documentos, e não através deles (Hull, 2012a:253), e levado a sério que esses suportes materiais de informação, tão frequentemente encarados como tediosos, repetitivos e excessivamente formais, podem desempenhar funções e gerar efeitos no mundo social que vão muito além da função referencial e informacional.

Mas o que fazemos quando olhamos para esses papéis? Como procedemos para analisá-los antropologicamente? Se eles são mais que meros rastros materiais de processos de Estado (Ferreira, 2009) e podem, por isso mesmo, ser tomados como campo de indagação (Muzzopappa e Villalta, 2011) e como artefatos etnográficos (Hull, 2012b), de que estratégias analíticas e formas de interpelação podemos lançar mão quando nos deparamos com eles em pesquisas etnográficas? No presente artigo, busquei dialogar com essas perguntas, somando algumas reflexões às elaborações de Muzzopappa e Villalta (2011), Hull (2012a), Vianna (2014) e Lowenkron e Ferreira (2020), que vêm discutindo as especificidades da pesquisa antropológica com documentos, em diálogo com tantos outros antropólogos que têm enfrentado encontros etnográficos com papéis de modo inventivo e produtivo.

Partindo da constatação do crescente interesse antropológico por documentos burocráticos a partir dos anos 1990, apresentei algumas dimensões e aspectos gerais da pesquisa etnográfica com esse tipo de artefato, a partir da literatura sobre o tema, de exemplos de diversas etnografias feitas no Brasil e de minhas experiências de pesquisa. Em seguida, sistematizei quatro estratégias analíticas recorrentes e especialmente produtivas nesse tipo de estudo antropológico. Feito isso, recuperei brevemente três pesquisas com documentos que realizei, perguntando: o que significou tomar documentos como campos de indagação em cada uma delas? Quais foram as razões específicas pelas quais esse movimento se deu? Que estratégias analíticas utilizei em cada pesquisa, e com que resultados? Responder a essas perguntas permitiu-me demonstrar que a experiência cumulativa dos três estudos que recuperei no texto ampliou meu entendimento do que são os documentos burocráticos e dos muitos papéis que eles podem desempenhar tanto na rotina de instituições estatais, quanto no desenho metodológico de pesquisas antropológicas. Espero, com isso, contribuir e dialogar com pesquisadores em diferentes níveis de formação que estejam enfrentando, cada um à sua maneira, encontros etnográficos com papeladas burocráticas.

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Vianna, Adriana (2002). Limites da menoridade: tutela, família e autoridade em julgamento. (Tese de Doutorado em Antropologia Social). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Vianna, Adriana (2014). “Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos judiciais”. Em Castilho, Sergio; Souza Lima, Antonio Carlos e Teixeira, Carla (org.). Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa, FAPERJ. pp. 43-70.

Villalta, Carla. (2006). Entregas y secuestros. La apropiación de “menores” por parte del Estado. Tesis de doctorado en Ciencias Antropológicas, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires.

Villalta, Carla (2010). “Administrando soluciones posibles: medidas judiciales de protección de la niñez”. Avá: Revista de Antropología, n.18: 111-131

Weber, Max (1963). Burocracia. Em Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, pp 229-282.


  1. Esse artigo é uma versão expandida da comunicação que apresentei no simpósio “La antropología y los documentos. Reflexiones metodológicas sobre su constitución como campo y propuestas de abordaje”, coordenado por Eva Muzzopappa nas IX Jornadas de Etnografía y Métodos Cualitativos do IDES, em agosto de 2020. Agradeço a Eva Muzzopappa e Carla Villalta pelo convite para participar do Simpósio. Também apresentei parte das ideias aqui desenvolvidas na Mesa "Experimentações etnográficas: desafios ao trabalho de campo antropológico", nas Jornadas de Antropologia John Monteiro de 2021, da Unicamp.↩︎

  2. Mestre e Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do Departamento de Antropologia Cultural (DAC) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFRJ. Bolsista de Produtividade do CNPq (Nível 2) e Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ).↩︎

  3. Esforços de sistematização, conceituação e consolidação do campo da Antropologia do Estado foram feitos por Abéles (1990), Trouillot (2001), Das & Poole (2004), Sharma e Gupta (2006), Mendes de Miranda (2005) e, pensando especificamente sobre sua incidência no Brasil, Bevilaqua & Leirner (2000), Souza Lima (2002) e Bevilaqua (2003). Olhadas em conjunto, essas obras distinguem-se por aproximar ou por apartar a Antropologia do Estado da já consolidada Antropologia Política, e, ainda, por partir de diferentes premissas e aportes teóricos. Não obstante suas particularidades, todas refletem, por um lado, sobre as especificidades metodológicas de empreendimentos etnográficos voltados para setores de burocracias estatais e, por outro, para as possibilidades de produção teórica abertas por tais empreendimentos.↩︎

  4. Os trabalhos de Eilbaum (2012) realizados em contexto argentino e de Eilbaum e Medeiros (2016) feitos a partir do Brasil têm sido especialmente inspiradores nesse tema, tanto pela maneira como avançam na abordagem das articulações entre formalidades e moralidades em burocracias, a partir sobretudo da noção de moralidades situacionais (cf. Eilbaum, 2012), quanto pela forma como exploram a comparação e o diálogo entre etnografias.↩︎