A pesquisa etnográfica com documentos e suas possibilidades
Lucas de Magalhães Freire1
Fundação Getúlio Vargas
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil
https://orcid.org/0000-0002-9629-6840
lucas.mfreire@hotmail.com
El artículo se divide en dos partes. En la primera de ellas, analizo
las transformaciones de la relación entre la Antropología y los
documentos a lo largo de la historia de la disciplina. Si, en un primer
momento, los registros escritos fueron fundamentales para el desarrollo
de los primeros esfuerzos comparativos, con la llegada de la etnografía
y de la observación participante los documentos pasaron a ser objeto de
sospechas. También me ocupo de cómo se han “recuperado” los documentos
en la investigación antropológica desde mediados de la década de 1980.
En la segunda parte, recupero algunos datos de una etnografía llevada a
cabo entre los años de 2016 y 2017 para reflexionar sobre el papel de
los documentos en la disputa por la definición de la “crisis de la
salud” en la ciudad de Río de Janeiro. A partir de la combinación de
diferentes tipos de documentos, elaboro un marco sobre los diferentes
aspectos de las versiones oficiales y contraversiones
de la crisis. Así, busco discutir cómo los documentos se constituyen
simultáneamente como indicios y registros de la realidad, influyendo en
la percepción y confiriendo materialidad a la crisis. Por último, hago
algunas observaciones sobre las posibilidades de la investigación
etnográfica con documentos en contextos contemporáneos.
Palabras clave: documentos; etnografía; crisis;
materialidad.
Indications and records of the “reality of the crisis”: ethnographic research with documents and its possibilities
The paper is divided into two parts. In the first one, I address the
transformations in the relationship between Anthropology and documents
throughout the history of the discipline. If, at first, documents were
fundamental for the development of the first comparative efforts, with
the advent of ethnography and participant observation, documents began
to be regarded as suspicious. I also discuss how documents have been
"recovered" in anthropological research since the mid-1980s. In the
second part of the text, I resume the data of an ethnography conducted
between the years 2016 and 2017 to reflect on the role of documents in
the dispute for the definition of the “health crisis”" in the city of
Rio de Janeiro. Based on the combination between different types of
documents, I elaborate a framework about the different aspects of the
official versions and counterversions of the crisis.
Thus, I try to discuss how documents constitute themselves
simultaneously as indications and records of reality, in order to
influence perception and give materiality to the crisis. Finally, I
bring some notes about the possibilities of ethnographic research with
documents in contemporary contexts.
Keywords: documents; ethnography; crisis;
materiality.
RECIBIDO: 14 de febrero de 2022
ACEPTADO: 13 de julio de 2022
Cómo citar este artículo: Freire, Lucas de Magalhães (2022) “Indícios e registros da “realidade da crise”: a pesquisa etnográfica com documentos e suas possibilidades” Etnografías Contemporáneas 8 (15).
A relação da antropologia com materiais de tipos diversos que, de um modo geral, podemos classificar como “documentos”, é de longa duração e com importantes transformações e reviravoltas na história da disciplina. Se, em um primeiro momento, os registros e relatos de viajantes e missionários constituíram o material basilar com que os antropólogos poderiam trabalhar, com o advento da necessidade do trabalho de campo e a crescente centralidade da observação participante (Malinowski, 2018) como a melhor – senão única – estratégia metodológica para a pesquisa em antropologia, os “papéis” foram cada vez mais secundarizados na produção do conhecimento antropológico. Em contextos em que o tão fetichizado “estar em campo” não pode ser realizado – como se deu entre os anos de 2020 e meados de 2022, os mais duros da pandemia de covid-19 –, os documentos parecem recuperar um lugar de protagonismo como um material empírico legítimo para a elaboração de teses, dissertações, artigos e outras modalidades escritas da reflexão antropológica.
Atento a tais oscilações, o presente artigo se divide em duas partes. Na primeira, recupero brevemente a história da constituição da Antropologia como um saber acadêmico destacando o lugar ocupado pelos documentos. Ainda que tenham permanecido centrais para pesquisadores de determinadas áreas da antropologia – como, por exemplo, representantes de uma antropologia histórica e da etno-história –, de um modo geral, os documentos e outras formas de registro deixaram de ser considerados fontes de dados fundamentais para a pesquisa antropológica. Em um período de intensa valorização das chamadas “monografias clássicas” – como a do próprio Malinowski (2018) e as dos Azande (Evans-Pritchard, 2005a), dos Nuer (Evans-Pritchard, 2005b) ou dos Kachin e dos Chan (Leach, 2014) –, parte dos antropólogos passaram a ver os documentos como materiais de segunda mão de qualidade suspeita e acerca dos quais era necessário fazer muitas ressalvas. Em seguida, abordo como os papéis foram recuperados e tornaram-se novamente objetos privilegiados para os antropólogos interessados em discutir a construção de distintos tipos de arquivos, as práticas de administração colonial, o funcionamento do Estado, a organização burocrática, dentre outros temas.
Na segunda parte do texto, retomo os dados de uma pesquisa etnográfica conduzida entre os anos de 2016 e 2017 para refletir sobre o papel dos documentos na percepção e na disputa pela definição da “crise da saúde” na cidade do Rio de Janeiro. A partir da combinação entre materiais diversos, tais como decretos, comunicados, informes, reportagens, entrevistas e dados dos portais de prestação de contas públicas, procuro montar um quadro acerca dos diferentes aspectos das versões oficiais e contraversões da crise, não somente entre os variados níveis de governo, órgãos, instituições e atores, mas também ao longo dos anos.
Assim, as versões oficiais são elaboradas com base no que agentes estatais que exerceram mandatos ao longo do período analisado disseram sobre a questão. Minha intenção é demonstrar como esses atores quase sempre identificam as origens e os responsáveis pela crise em conjunturas e/ou sujeitos que estão fora de sua própria alçada administrativa, como, por exemplo, quando a situação unidades de saúde do município é justificada pelo prefeito como sendo produto da má administração feita pela gestão anterior e as consequentes “dívidas herdadas” pela Prefeitura; quando os membros do Executivo estadual afirmam que a culpa da crise é da “imprevisível tragédia” provocada pela queda do preço do petróleo e a subsequente diminuição na arrecadação de royalties; e quando o ministro da Saúde alega que o principal problema do setor é o “tamanho” do Sistema Único de Saúde (SUS), sendo esse muito maior do que as possibilidades orçamentárias do país.
Já as contraversões da crise são compostas pelas críticas e contestações aos discursos oficiais sobre a situação de crise feitas por adversários políticos, representantes de movimentos sociais, especialistas de distintas ordens, dentre outros atores individuais e institucionais. A partir do material coletado, identifico que três são os principais raciocínios que produzem os argumentos veiculados nessas contraversões da crise: 1) a crise como resultado das escolhas, priorizações e, principalmente, da má gestão feita por diferentes agentes estatais; 2) a crise como produto direto da corrupção e usurpação de recursos públicos por parte dos políticos, servidores públicos e empresários; e 3) a crise enquanto um fenômeno deliberadamente produzido pelos gestores como parte de um projeto de “desmonte” do sistema de saúde brasileiro e de redução de serviços públicos e direitos.
Nessa segunda metade do artigo abordo também como as disputas pelo estabelecimento da “verdade da crise” é travada nos e por meio dos documentos. Alinhado a um referencial teórico que entende os documentos como agentes produtores da realidade e dos mundos sociais, discuto o lugar ocupado e a função exercida por esses registros na materialização da crise. Assim, exploro como os documentos são mobilizados para definir causas, estabelecer culpados e propor soluções para a situação de penúria vivida nas unidades públicas de saúde.
Para compreender o lugar ocupado pela pesquisa antropológica com documentos contemporaneamente é preciso dar alguns passos atrás e observar como – isto é, a partir de que objetos e materiais de pesquisa – a antropologia se constituiu como um ramo do conhecimento. Ressalto que não pretendo fazer aqui um levantamento exaustivo das controvérsias e disputas envolvidas no estabelecimento de uma história da antropologia. Como sabemos, não é sequer possível – e muito menos desejável – definir uma versão única e irrefutável sobre o seu desenvolvimento. Nesse sentido, o que pretendo fazer é recuperar, ainda que brevemente, o lugar ocupado pelos papéis e pelos registros escritos na trajetória da disciplina, bem como as condições de surgimento e derrocada de alguns de seus conceitos básicos.
Uma das grandes pesquisas inaugurais na área de antropologia teve como base um conjunto de materiais que, de grosso modo, podemos classificar como “documentos”. A partir da coleta de relatos de viajantes e missionários, assim como de informações reunidas por meio do envio de formulários a missões religiosas e diferentes instituições científicas ao redor do mundo, Lewis Henry Morgan publicou Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family (1871), seu livro seminal sobre o parentesco – tema que figura até hoje como um dos pilares dos estudos antropológicos. De modo bastante resumido, Morgan defendia a tese de que havia dois grandes sistemas globais de parentesco: um descritivo (não-europeu) e outro classificatório (presente na Europa e no Noroeste asiático). Por meio da comparação entre as categorias descritas nesses diferentes documentos, ele concluiu que a distinção entre os sistemas não era de tipo, mas sim de grau de desenvolvimento, de modo que o sistema mais “avançado” – o europeu, em sua concepção – se devia ao surgimento das ideias de propriedade privada e, consequentemente, de herança.
Ao lado de figuras como Edward Burnett Tylor, Morgan foi um dos principais expoentes de uma corrente de pensamento que denominamos hoje evolucionismo cultural. Apesar de não adotarem um posicionamento homogêneo ou sem contradições, a característica geral dos autores da escola evolucionista é a pressuposição de que havia apenas uma única “cultura”. Nesse sentido, suas distintas expressões – ou seja, os diferentes costumes, crenças, religiões, modos de organização social etc. – poderiam ser explicadas pelo estágio evolutivo em que cada agrupamento humano se encontrava, indo dos mais “primitivos” – representados pelos aborígenes australianos – até os mais “civilizados” – os povos europeus (Castro, 2005).
Para formular suas teorias e explicar cientificamente como se dava a passagem dos “primitivos” aos “civilizados”, os antropólogos evolucionistas adaptaram o método comparativo que vinha sendo aplicado por biólogos ao “estudo da cultura”. Segundo Tylor (1958), para cumprir tal propósito, os pesquisadores deveriam recolher o máximo de relatos possível sobre um mesmo costume, ritual, mito, objeto etc., de modo a submeter suas hipóteses a uma espécie de “teste de recorrência”. Logo, “a imagem do antropólogo trabalhando sentado em sua biblioteca era plenamente justificada na tradição da antropologia evolucionista, tanto pelos objetivos a que se propunha quanto pelos métodos que seguia” (Castro, 2005: 34). Por conta disso, os autores desse período ficaram conhecidos como antropólogos de gabinete e/ou antropólogos de poltrona, uma vez que suas teorias eram formuladas em suas bibliotecas a partir da leitura e análise das narrativas contidas em diários de expedicionários, comerciantes e missionários, documentos da administração colonial, dentre outros registros escritos produzidos por aqueles que estiveram em contato com os “nativos”.
A princípio, falar sobre os evolucionistas e suas teorias pode parecer um recuo excessivamente prolongado no passado da disciplina. No entanto, é necessário levantar esses pontos se queremos compreender o contexto e as condições que tornaram as pesquisas baseadas em documentos alvos da desconsideração e da suspeita por parte considerável dos antropólogos. Assim, ao longo das primeiras décadas do século XX, a legitimidade das pesquisas baseadas naquilo que eram encarados como “relatos de segunda mão” foi sendo cada vez mais questionada.
O ponto de partida do processo de desvalorização epistemológica dos documentos (Lowenkron e Ferreira, 2020) pode ser localizado na publicação da consagrada obra de Malinowski, Argonautas do Pacífico Ocidental (2018). Sendo considerado, até os dias de hoje, uma espécie de “manual de etnografia” – ainda que, na prática, sua introdução seja uma sistematização e compilação de uma série de reflexões que estavam sendo feitas de modo espaçado e desencontrado por diferentes autores –, o centenário livro de Malinowski foi decisivo para a consolidação da necessidade de realização do trabalho de campo para a produção do conhecimento antropológico. Além disso, a técnica da observação participante proposta pelo autor tornou-se o pressuposto básico do que foi posteriormente chamado de método etnográfico.
Com o avanço da popularidade dos escritos de Malinowski entre os antropólogos mais jovens, as teorias e investigações desenvolvidas até então pelos chamados “pesquisadores de gabinete” foram rejeitadas e questionadas. Além disso, o sucesso das “monografias clássicas” resultantes de longos trabalhos de campo e o crescente estímulo para que os antropólogos em formação escrevessem “boas etnografias” encontram-se na origem de um fenômeno que posteriormente irá transformar antropologia e etnografia em palavras usadas quase como sinônimos2.
Assim, uma das principais críticas direcionadas aos autores da escola evolucionista era a que eles não se debruçavam sobre dados empíricos obtidos em primeira mão, os quais supostamente só poderiam ser coletados in loco, estando “lá” vivendo entre os nativos. Para aqueles que contestavam a validade dos estudos feitos por Morgan, Tylor e outros autores menos célebres, os relatos de pessoas sem a formação e o treinamento adequados não poderiam ser considerados automaticamente verdadeiros. Logo, tais narrativas não deveriam ser tomadas como dados para a pesquisa antropológica sem os devidos cuidados e maiores reflexões, já que estariam sujeitas a exageros, má interpretação e até mesmo falseamentos.
Além dos problemas de caráter metodológico, os antropólogos de fins do século XIX também foram acusados pelos seus sucessores de falhar teoricamente. Como mencionado anteriormente, a apropriação de um método comparativo utilizado principalmente para a compreensão da anatomia animal e evolução das espécies foi considerada incongruente com o renovado objetivo geral da disciplina antropológica de compreender as diferentes formas de viver e habitar o mundo. Assim, para os autores da geração posterior, a postura fortemente etnocêntrica dos evolucionistas estava na origem de teorias não apenas equivocadas acerca da “evolução” humana e do desenvolvimento da cultura, mas também incompatíveis com o propósito e os pressupostos de uma antropologia moderna.
De modo paralelo, as pesquisas antropológicas fundamentadas em documentos passaram também por um processo de desconsideração. Como destaca Vianna (2014), as idealizações e ficções que foram construídas acerca do lugar ocupado pelo “trabalho de campo” em antropologia provocam ainda hoje um verdadeiro estranhamento quando os termos “etnografia” e “documentos” são colocados lado a lado em uma mesma frase ou expressão. Logo, pode-se perceber que a desvalorização ocorreu simultaneamente em dois planos. Por um lado, os estudos baseados em diferentes modalidades de registro escrito também foram vistos como carentes de precisão metodológica, uma vez que trabalhavam supostamente com fontes secundárias e não com material empírico diretamente observado/coletado pelo pesquisador, gerando tanto desconfianças quanto à confiabilidade das reflexões propostas quanto a impossibilidade da manutenção de determinadas estratégias de autoridade etnográfica (Lowenkron e Ferreira, 2020). Por outro, a pesquisa documental feita pelos “antropólogos de gabinete” foi especialmente vinculada ao pensamento evolucionista e, portanto, a um passado da disciplina que praticamente a totalidade dos antropólogos se esforça para se distanciar moral e intelectualmente.
Por mais que o trabalho de campo tenha adquirido um status privilegiado entre os antropólogos, Evans-Prtichard (1951) já recomendava o uso cuidadoso dos documentos históricos desde o início da segunda metade do século XX. No entanto, é em meados dos anos 1990 que diferentes tipos de arquivos – pessoais, etnográficos, institucionais e/ou coloniais – voltam a ser objetos de interesse também de antropólogos, e não apenas de historiadores (Stoler, 2009). Nesse contexto, os documentos que ficaram “esquecidos” no fundo de armários e gavetas figuram novamente como um importante material de pesquisa para a antropologia.
Em alguns casos, os papéis convertem-se, eles mesmos, em elementos imprescindíveis e/ou no próprio universo etnográfico em si, como as “aldeias-arquivo” examinadas por Carrara (1998). As investigações baseadas em documentos ou envolvendo-os diretamente ao longo do final do século XX e início do século XXI são bastante numerosas. Os temas e questões discutidos nessas pesquisas passaram a variar enormemente, bem como as abordagens teóricas e metodológicas. Por exemplo, no âmbito das instituições policiais e do sistema de justiça, as pesquisas podem tratar de processos judiciais ou outros expedientes tanto arquivados quanto em andamento, como as feitas por Vianna (1999; 2002), Villalta (2006), Lugones (2012), Ferreira (2009; 2015), Lowenkron (2015), Lacerda (2015), Silva (2011), Nadai (2012), Veiga (2018), Farias (2020), dentre muitas outras. Há ainda situações em que o próprio arquivo pode ser o alvo central do processo judicial, implicando uma pesquisa que trata de documentos de ordens distintas, como a investigação conduzida por Muzzopappa (2016).
O retorno aos arquivos, por um lado, e a valorização de diferentes tipos de documentos, por outro, ensejaram um conjunto heterogêneo de reflexões sobre os desafios e as contribuições teórico-metodológicas da pesquisa etnográfica envolvendo os documentos nas últimas décadas. Adriana Vianna (2014), por exemplo, ressalta que é preciso prestar atenção 1. Tanto às condições em que os documentos são reunidos, organizados e arquivados quanto a quem são seus aos produtores e suas dinâmicas de produção; 2. Às interações entre documentadores e documentados; 3. Às conexões que se estabelecem entre o que acontece, o que é dito e o que se registra; e 4. Às condições desiguais de fala que podem ser percebidas nos papéis.
Dentre outras questões levantadas pelos pesquisadores, destaco também as potencialidades e particularidades da realização de trabalho de campo – e também a própria interrogação sobre a possibilidade de chamar essa ação de trabalho de campo – nos arquivos, discutidas por autores como Giumbelli (2002), Cunha (2005), Castro (2008), Castro e Cunha (2005), Isräel (2012), Vianna (2014) e Lowenkron e Ferreira (2020). Outro ponto que merece ser salientado nesse universo etnográfico é a permissão e a obtenção do material a ser analisado. Nesse sentido, o significado que a recusa ao acesso aos arquivos e documentos institucionais/estatais assume nas pesquisas e como transformar essa suposta “impossibilidade de pesquisar” em um dado da própria investigação são tematizados por autoras como Muzzopappa e Villalta (2011) e Nadai (2018). Por fim, mas não menos importante, alguns pesquisadores têm sublinhado a necessidade de compreender a confecção e os próprios documentos como a materialização de práticas de conhecimento “nativas” e artefatos centrais da gestão burocrática (Riles, 2006; Gupta, 2012; Onto, 2016; Freire, 2016).
Não pretendo fazer um inventário exaustivo de todas as autoras e autores que abordaram os documentos em suas pesquisas, nem elaborar um balanço bibliográfico do tema. Como mencionado anteriormente, não há formas canônicas e/ou homogêneas de tratar os documentos em investigações de caráter antropológico. Não há, também, uma concordância no que diz respeito aos que trabalham em arquivos de distintas naturezas e os que mobilizam documentos não necessariamente arquivados para compor suas análises. Ao trazer esse conjunto de textos, meu objetivo é reforçar a ideia colocada por Olívia Cunha de que na medida em que “os antropólogos têm pretendido bem mais do que ouvir e analisar as interpretações produzidas pelos sujeitos e grupos que estudam, mas entender os contextos – social e simbólico – da sua produção” (Cunha, 2004: 293), a tensão entre a pesquisa de campo e a pesquisa de gabinete é diluída. Logo, em vez de opostas ou conflitantes, as diferentes formas de conduzir etnografias vão tornando-se cada vez mais complementares.
Esse movimento de articulação entre distintos modos de coletar material e relacionar dados de diferentes ordens tem a ver também com a ampliação do escopo de objetos da pesquisa antropológica a partir da segunda metade do século XX. Além disso, os anos 1970 e 1980 foram marcados pela presença das críticas formuladas por autores como Talal Asad (1975) e James Clifford (2002) acerca do caráter colonial da antropologia, da autoridade etnográfica e dos problemas de representação embutidos nas etnografias. Para além das inúmeras indagações e revisões teóricas e metodológicas provocadas pela publicação de livros como Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986), outro traço distintivo desse momento da disciplina – ao menos entre os seus praticantes situados em universidades na Europa e nos Estados Unidos – foi um certo distanciamento de temas e povos até então tidos como “exóticos” e uma virada para o estudo das sociedades ocidentais e seus problemas característicos. Deste modo, questões que antes faziam parte do rol de interesses de sociólogos e cientistas políticos, tais como burocracia, gestão estatal, formação do Estado, funcionamento dos sistemas de justiça, divisão dos poderes, organismos de regulação internacional, eleições, partidos políticos, redes de cooperação humanitária, dentre inúmeros outros, passaram a ser cada vez mais analisados a partir de uma perspectiva não só antropológica, mas também etnográfica.
Em muitos desses contextos, os pesquisadores se deparam com a elaboração, digitalização, organização, retenção, verificação e/ou circulação de documentos enquanto ações de suma importância executadas cotidianamente pelos “nativos”. Em cenários desse tipo, como repartições públicas, por exemplo, estar atento aos modos de elaboração e desenvolver ferramentas teórico-metodológicas para a leitura dos documentos produzidos pelos interlocutores torna-se uma atividade fundamental do trabalho de campo antropológico e da investigação etnográfica. Em outras palavras, a “papelada” que, de acordo com autores como Riles (2006) e Hull (2012), foi durante muito tempo negligenciada por antropólogos e pelos próprios agentes de Estado, converte-se em artefatos etnográficos (Ferreira, 2013) a partir dos quais é possível rastrear uma série de práticas, técnicas e memórias da gestão, bem como outros fenômenos sociais.
Pode-se perceber, também ao longo das últimas décadas, o desenvolvimento de diferentes maneiras de tratar os documentos nas pesquisas, as quais refletem o lugar que eles ocupam nos projetos intelectuais. Embora não seja o cerne do artigo, é possível elaborar uma tipologia que agrupa esses distintos modos de abordar os documentos. Assim, alguns trabalhos podem ser caracterizados como etnografias dos documentos, isto é, quando os papéis, sua localização, organização, armazenamento etc. assumem o papel de “objeto da pesquisa”, como, por exemplo, em investigações realizadas nos e partir de variados tipos de arquivo. Outros tendem para uma etnografia com documentos, ou seja, em que os documentos aparecem mais como materiais de pesquisa do que objetos propriamente ditos. Nesse segundo tipo, os papéis figuram como meios para que outras discussões e reflexões sejam desenvolvidas. Por fim, há também o que pode ser chamado de etnografia da documentação, que se dá em pesquisas que envolvem simultaneamente uma etnografia dos e com os documentos. Isso acontece, por exemplo, quando se investiga algum órgão, agência e/ou atores sociais que têm na produção de documentos uma de suas principais funções e/ou atividades. Ou seja, a própria prática de documentação se converte ao mesmo tempo em objeto e material de pesquisa.
Obviamente, tais classificações não representam qualquer valoração hierárquica em termos de qual é a melhor maneira de se fazer etnografia, seja ela dos documentos, com documentos, da documentação ou até mesmo sem envolver qualquer tipo de papel, registro ou arquivo. As categorias também não são mutuamente excludentes e nem intransponíveis, o que permite a uma mesma pesquisa transitar entre um e outro tipo tanto durante a realização da etapa de campo quanto ao longo da escrita dos resultados. A possibilidade de acionar esse repertório e os caminhos tomados serão determinados de acordo com o próprio desenho e desenvolvimento da pesquisa.
Levando isso em consideração, passo agora para um exemplo de como é possível operacionalizar isso que chamei de etnografia da documentação. Baseada em minha pesquisa de doutorado, a discussão que se segue visa explicitar como trabalhar com documentos e outras modalidades de registro escrito, visual e sonoro se apresentou como um caminho possível para capturar etnograficamente tanto a percepção quanto a materialização da realidade da “crise da saúde pública” no Rio de Janeiro na segunda metade da década de 2010.
Descrever as formas pelas quais as pessoas percebem, classificam, organizam e atribuem significados a objetos e situações ao seu redor é uma das tarefas mais elementares das ciências sociais, sobretudo da antropologia. Desde o clássico estudo de Durkheim e Mauss (1978) até os desenvolvimentos contemporâneos do subcampo da antropologia cognitiva e do debate sobre ontologias, as categorias e conceitos mobilizados pelos sujeitos para explicar o mundo sempre receberam mais ou menos atenção por parte dos antropólogos em suas investigações.
Dentre os muitos desdobramentos que o interesse pelo tema da consciência, do entendimento e dos sentidos pode ter, destaco aqui a ideia de uma etnografia das percepções tal como formulada diferentemente por Milito e Silva (1995) e Weber (2009). Os primeiros autores se dedicam a compreender o universo dos “meninos de rua” na cidade do Rio de Janeiro. Diante de um “grupo” que nunca se constitui como tal e que, portanto, não permite o emprego da observação participante tal como somos ensinados nas salas de aula, Milito e Silva optam por etnografar o que eles chamam de um “clima”, uma “ambiência” ou uma percepção acerca desse opaco e difuso “objeto” de pesquisa que são as perambulações das crianças em situação de rua. Para dar conta da tarefa de descrever uma percepção, eles reúnem um conjunto de fragmentos etnográficos espaçados tanto no tempo quanto na geografia da cidade.
Já Florence Weber parte do pressuposto de que é possível tratar as percepções como uma espécie de “dado social”. Na medida em que as percepções são sempre socializadas, interessa ao etnógrafo compreender como se dá a formação das ferramentas cognitivas que informam a percepção individual. Nesse sentido, duas são as principais questões que precisam ser consideradas pelo pesquisador. A primeira delas, de caráter metodológico, é uma interrogação sobre como é possível observar os aparatos cognitivos por meio dos quais seus interlocutores percebem o mundo. A segunda diz respeito aos modos pelos quais se conformam essas ferramentas cognitivas e busca entender quais processos de socialização influenciam a construção das percepções.
A partir da combinação das considerações e argumentos apresentados na seção anterior do texto e as estratégias adotadas por Milito e Silva (1995) e Weber (2009), discutirei como olhar para diferentes documentos se tornou uma importante saída metodológica para etnografar a “crise da saúde pública” na cidade do Rio de Janeiro. Ao lidar com um objeto espraiado e de difícil captura como uma crise, decidi circunscrever esse fenômeno a partir de distintos tipos de registros que sinalizam e dão concretude à sua existência. Meu argumento central é o de que as diversas formas de documentação da crise são, ao mesmo tempo, produtos e produtoras da percepção que designa um espaço e/ou tempo como “em crise”, em um movimento de constituição mútua. Nesse sentido, os documentos operam simultaneamente como indícios e registros da realidade da crise da saúde pública no Rio de Janeiro. Isto é, eles “não só registram realidades pré-existentes, mas também são tecnologias centrais na produção e fabricação das realidades que governam, sejam elas corpos, territórios, relações” (Lowenkron e Ferreira, 2020: 9) e, eu acrescentaria, fenômenos entendidos como “problemas” que necessitam da intervenção estatal para sua resolução.
Entre o final do ano de 2016 e ao longo de 2017, acompanhei o cotidiano de um órgão estatal chamado Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (doravante CRLS ou apenas Câmara). Formada a partir da atuação conjunta de funcionários de outras instituições3, a função da CRLS é tentar resolver administrativa e extrajudicialmente todas as demandas por direitos sanitários feitas em face do poder público. Nesse artigo, falarei menos do funcionamento da Câmara e do expediente de seus profissionais e mais do “contexto” no qual realizei a pesquisa de campo: um momento singular em que gestores, políticos, profissionais de saúde, jornalistas e outros atores sociais estavam constantemente falando sobre a grave crise enfrentada pelas unidades públicas de saúde localizadas na cidade do Rio de Janeiro.
Desde os primeiros dias que passei a frequentar as dependências da CRLS e acompanhar os atendimentos, ouvi relatos sobre os efeitos da “crise” nas unidades públicas de saúde da cidade. O completo desabastecimento de medicamentos e insumos básicos – como fraldas geriátricas, material para curativos, “remédios de pressão” etc. –, a falta de vagas nos serviços, a ausência de profissionais de saúde para atendimento e a demora para conseguir realizar exames eram vistos como consequências diretas dos cortes orçamentários efetuados por gestores dos níveis municipal, estadual e federal. Isto é, tanto funcionários quanto usuários afirmavam que as dramáticas situações vivenciadas nas clínicas e hospitais públicos eram resultado da escassez provocada pela “crise”.
A repetição dessa forma de explicação fez com que a ideia da crise adquirisse centralidade em minha pesquisa. Nesse ponto, surgiram as dificuldades e dúvidas em torno de como capturar etnograficamente essa percepção compartilhada de estar “imerso em uma crise”. Ainda que os efeitos materiais da crise fossem recorrentemente apontados pelos meus interlocutores e vividos de forma bastante angustiante, restava ainda a pergunta sobre como essa explicação foi socialmente elaborada, quais eram os elementos mobilizados na sua descrição, como ela se consolidou, se haviam divergências quanto à sua legitimidade etc. Logo, o primeiro procedimento adotado para tentar compreender de que “crise” meus interlocutores estavam falando foi mapear e sistematizar informações sobre como a crise estava sendo enunciada publicamente. Nesse sentido, busquei registros que noticiavam quais eram os atores responsáveis por “diagnosticar” a crise, que fatores eram tomados como evidências de sua existência, o que teria provocado sua precipitação, quem e/ou o que estavam sendo apontados como culpados pela situação, quais ações seriam adotadas para o seu combate e que instâncias, órgãos e/ou gestores seriam incumbidos de desenhar, propor e executar as medidas de enfrentamento.
Além das já citadas ideias de Milito e Silva (1995) e Weber (2009), esse levantamento também foi pensado segundo as propostas de mapeamento das controvérsias (Latour, 2000) e das disputas pelo enquadramento da realidade (Boltanski e Thévenot, 1991). Minha principal intenção era constituir um esquema dos principais posicionamentos, enunciados e agentes envolvidos na definição da crise da saúde pública no Rio de Janeiro descritos em diferentes plataformas midiáticas a partir de meados do ano de 2014 como ponto de partida da pesquisa. O recorte temporal estabelecido teve como marco principal um documento que substancializa a crise de modo incontornável: o decreto de “estado de emergência” na saúde pública assinado pelo então governador do estado do Rio de Janeiro em dezembro de 2015. Entretanto, é preciso deixar claro que a crise tem distintas temporalidades, pois ela não atingiu toda a rede pública de uma mesma forma e nem ao mesmo tempo.
Esse mapeamento foi composto por meio de diferentes materiais de pesquisa e distintos tipos de “documentos”. Assim, são combinados documentos no sentido mais estrito do termo – tais como decretos, planos, projetos, relatórios de prestação de contas e comunicados oficiais emitidos pelos prefeito, governador, ministro da saúde e outros agentes estatais – e dados que foram obtidos através de consultas aos acervos de jornais de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro – tais como O Globo, O Dia e Extra – e aos acervos audiovisuais de telejornais de grande audiência como o RJTV e Jornal Nacional do canal Globo, bem como o programa de entrevistas Roda Viva da TV Cultura. Além disso, acessei também artigos, entrevistas e matérias de revistas e outros portais de notícias disponíveis na internet tais como Época, Exame, Piauí, Carta Capital, Veja Rio, G1, BBC Brasil, Nexo, Empresa Brasil de Comunicação (EBC), R7, Folha de São Paulo e Estadão. Outras fontes de informação foram as páginas oficiais de comunicação de políticos, órgãos e coletivos que participam dessa disputa, tais como o site de Marcelo Crivella, a página oficial de Eduardo Paes no Facebook e no Twitter, a página institucional do movimento militante “Nenhum Serviço de Saúde a Menos” e a página de informes tanto do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ) quanto do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Além das falas, discursos, declarações, documentos, imagens etc., coletei também dados de caráter mais quantitativo, como os demonstrativos dos gastos públicos em saúde. Muitos destes dados foram obtidos em plataformas online que visam performar uma certa “transparência” das contas públicas e das instituições estatais, tais como o Rio Transparente, da Prefeitura do município; e o Portal Transparência, do Governo do estado do Rio de Janeiro. Além desses portais, foram consultadas outras fontes que agregam dados quantitativos oficiais relevantes para a pesquisa, como o DataSUS – página do departamento de informática do SUS que concentra as mais variadas estatísticas sobre o sistema de saúde nacional – e os relatórios anuais de prestação de contas públicas municipal e estadual.
Esses materiais de diferentes tipos são tratados aqui como documentos que configuram a percepção e o enquadramento de crise (Goffman, 2012; Butler, 2015). Sem ignorar suas especificidades, tomo todos eles não como documentos em um sentido restrito de um comprovante dotado de poderes oficializados, mas como artefatos de documentação. Com isso, quero salientar a propriedade desses registros escritos, visuais e sonoros de produzir objetos materiais e virtuais que podem ser arquivados, acessados e mobilizados das mais variadas formas para os mais distintos fins. Por mais que eles tenham pesos e poderes diferentes – afinal, um decreto oficial assinado por um governador não é a mesma coisa que uma entrevista de um ministro em um programa de televisão –, todos concorrem na produção e reiteração da percepção das situações vivenciadas na rede pública de saúde como sinais inegáveis de uma crise, ou, como proposto por Roitman (2014), como indicadores e “fatos históricos da crise”.
Desse levantamento, constatei a existência do que chamei de diferentes versões oficiais e contraversões da crise da saúde no Rio de Janeiro. Ainda que eu não tenha espaço para abordar detalhadamente o conteúdo de cada uma das versões e contraversões da crise, trago aqui algumas informações essenciais que nos permitam compreender quais são os elementos mobilizados pelos atores sociais na formulação de seus argumentos e de sua percepção acerca do que estava acontecendo.
As versões oficiais da crise
As versões oficias são compostas pelas alegações de políticos e outros agentes estatais que exerceram mandatos ao longo do período analisado. Na medida em que a cidade do Rio de Janeiro conta com unidades de saúde geridas e financiadas pelos três níveis da administração pública, são incluídos os posicionamentos de prefeitos, governador, ministro da Saúde, secretários de saúde e outros gestores sobre a crise. De um modo geral, todos esses atores identificam as origens e os responsáveis pela crise em conjunturas e/ou sujeitos que estão fora de sua própria alçada administrativa.
No caso das unidades municipais de saúde, temos dois ocupantes do cargo de prefeito entre os anos de 2014 e 2018. Eduardo Paes, venceu as eleições para prefeitura em duas ocasiões e exerceu dois mandatos seguidos (2009-2012 e 2013-2016). Em entrevistas e coletivas de imprensa, Paes sempre descreveu sua gestão como sendo uma das que mais investiu na rede pública de saúde nas últimas décadas. De acordo com os relatórios da Prefeitura, durante o seu governo foram inauguradas 115 Clínicas da Família4 na cidade. Segundo as notas oficiais publicadas pela equipe do prefeito e as informações disponibilizadas pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a criação dessas Unidades Básicas de Saúde (UBS) representou um importante passo na expansão da Estratégia de Saúde da Família5 (ESF) no município do Rio. Nas diferentes ocasiões em que foi questionado ou criticado por direcionar recursos para a realização de obras de infraestrutura com intenção de “deixar a cidade pronta” para os chamados “megaeventos” – a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 – e, consequentemente, ter levado o município do Rio à crise, Paes argumentou que R$ 65 bilhões foram destinados aos setores de Saúde e Educação durante sua gestão. No início de 2016 – logo após a publicação do decreto de estado de emergência na saúde pública –, o antigo prefeito afirmou que “para cada um real gasto com instalações olímpicas, 59 haviam sido investidos em Educação e 49 em Saúde”. Essa informação foi posteriormente verificada por uma agência de checagem de fatos por meio do portal Rio Transparente e classificada como “exagerada”, dada à discrepância entre os valores mencionados por Paes e aqueles que constam na prestação de contas públicas.
O prefeito seguinte, Marcelo Crivella, ocupou o cargo entre os anos de 2017 e 2020. Ele alegava constantemente que o problema na saúde era mais antigo e que a situação de crise pela qual a cidade estava passando era um reflexo da “má gestão” do prefeito anterior, que, além de ter deixado dívidas para a Prefeitura, havia expandido a cobertura dos serviços de Atenção Básica em saúde de maneira “irresponsável”, abrindo mais Clínicas da Família e contratando mais equipes do que o orçamento previsto permitiria. Crivella também responsabilizava os Governos estadual e federal pela crise na saúde municipal, pois os principais cortes orçamentários teriam sido provocados pela diminuição do montante repassado pelas referidas esferas para a gestão municipal.
No âmbito estadual, a crise atingiu um ponto particularmente dramático em dezembro de 2015. Os hospitais estaduais Albert Schweitzer, Rocha Faria e Adão Pereira Nunes foram descritos pelo Conselho Regional de Medicina como estando em “situação de extrema gravidade”; 15 Unidades de Pronto Atendimento (UPA) estavam fechadas total ou parcialmente; a emergência do maior hospital da Zona Norte do Rio de Janeiro havia sido lacrada com tapumes e o atendimento foi restrito aos pacientes em “risco de morte”. Diante dessa conjuntura, o então governador do estado, Luiz Fernando Pezão, optou por decretar estado de emergência na saúde pública do Rio de Janeiro. De acordo com o Decreto 25.521 de 23 de dezembro de 2015, “a grave crise que assola o sistema estadual de saúde, aí englobando a escassez de recursos humanos e materiais, esta decorrente da grave crise financeira que atinge o país e, em especial, o Estado do Rio de Janeiro”.
Na tentativa de “esclarecer alguns fatos da crise” e eximir o Governo do estado da responsabilidade sobre o que estava acontecendo, o secretário de estado de Fazenda afirmou que a queda na arrecadação do Imposto sobre Circulação de Moeda e Serviços (ICMS) e a desvalorização do barril de petróleo – que levou a diminuição dos valores repassados como royalties para o governo estadual – representaram um “tombo inimaginável”. Para ele, uma das principais e mais perversas características da crise enfrentada era a sua “imprevisibilidade”. Assim, ele a descrevia “como um tsunami”: uma tragédia inesperada e aleatória cuja responsabilidade não poderia ser atribuída à ninguém especificamente.
Na esfera federal, a Presidenta Dilma Rousseff sofreu um contestável processo de impeachment em 2016. Logo após seu afastamento, o Governo Federal anunciou um bloqueio de R$ 23,4 bilhões do orçamento anual. Desse montante, R$ 2,5 bilhões foram suspensos dos gastos com Saúde, que foi reduzido de R$ 91,5 para aproximadamente R$ 89 bilhões. Cerca de um mês depois de ter assumido o Ministério da Saúde, Ricardo Barros afirmou em uma entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo que o país precisaria rever os direitos previstos na Constituição, pois não haveria recursos suficientes para sustentá-los por muito mais tempo. Dentre os direitos mencionados pelo então ministro estava o acesso universal à saúde.
Para Barros, o “tamanho do SUS” era o principal problema, uma vez que ele custaria muito mais do que o Estado brasileiro poderia arcar, ou, como ele mesmo disse: “não estamos em um nível de desenvolvimento econômico que nos permita garantir esses direitos por conta do Estado”. Além de um “excesso de direitos”, outra causa para a crise da saúde seria a “má gestão dos recursos” nos níveis estadual e municipal. Segundo o ministro, era preciso saber “como é gasto cada centavo do SUS”, pois haveria um grande número de fraudes em diferentes setores do Sistema, como, por exemplo, na dispensação de medicamentos: pessoas usariam registros duplicados para retirar medicações em distintas unidades de saúde e revender.
Todas as explicações e justificativas formuladas enquanto versões oficiais da crise foram questionadas por políticos da oposição, acadêmicos, especialistas, militantes de movimentos sociais, profissionais de saúde, representantes dos conselhos regional e federal de Medicina, dentre outros atores. As críticas às versões oficiais da crise partem de um certo consenso: a precariedade que assolava as instituições públicas de saúde era fruto direto das práticas de gestão de pessoas ligadas aos diferentes órgãos do Poder Executivo. Ou seja, enquanto políticos e gestores dos três níveis de governo acusavam uns aos outros de serem os “verdadeiros responsáveis pela crise”, os atores, organizações, instituições e coletivos que produziram as contraversões são unânimes em dizer que a culpa da crise era exclusivamente da classe política.
Umas das primeiras contraversões aventadas pelos críticos da crise da saúde era a de que estava havendo uma “má gestão” por parte dos governantes e de suas equipes de secretários e diretores. Em um primeiro momento, a “má gestão” foi encarada como decorrente de dois fatores complementares: o primeiro seriam as “escolhas erradas” no planejamento e execução de políticas de saúde e custeio do SUS, bem como a priorização de recursos para outros setores e/ou projetos, tais como a realização de obras para os Jogos Olímpicos de 2016; o segundo fator seria a “falta de experiência” dos políticos eleitos e dos gestores por eles indicados no que diz respeito ao funcionamento e organização dos serviços de saúde. Na medida em que a crise se manteve através dos anos e que as medidas tomadas pelos responsáveis por conter os seus efeitos só fizeram agravar ainda mais a situação de precariedade nas unidades públicas de saúde, os atores e instituições que contestavam as versões oficias da crise passaram a incluir como sinal da má administração o que foi interpretado como uma “irresponsabilidade dos políticos para com a sociedade”.
Outro ponto de vista bastante presente sobre a situação era o de que a crise foi causada pelo desvio de verbas e por outras formas de corrupção dos políticos. Esse discurso esteve presente desde o princípio nos debates sobre a situação da saúde pública no Rio de Janeiro, ainda que nem sempre explicitado e/ou replicado pelos veículos de comunicação. Entretanto, acontecimentos que receberam ampla cobertura midiática – tais como a deflagração e as prisões ocorridas no âmbito de operações policiais, denúncias apresentadas pelo Ministério Público etc. – fizeram com que essa contraversão ganhasse força e assumisse um certo protagonismo na explicação da crise. Uma acusação subjacente aos discursos que equacionam crise e corrupção é a de “descompromisso com o bem público” e, mais especificamente, com a saúde pública brasileira. A partir de meados de 2016, os informes publicados pelo CREMERJ passaram a classificar a corrupção como um dos principais problemas não apenas do setor de saúde, mas do Brasil como um todo. Na sala de espera, corredores e balcões de atendimento da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde, não raras foram as vezes em que a corrupção dos gestores foi apontada como a “verdadeira causa” da escassez de medicamentos, da falta de profissionais de saúde, da demora para a realização de exames etc. Como disse um dos usuários da instituição durante seu atendimento: “roubaram demais, agora a gente é quem paga”.
Desde que os governantes começaram a dar as primeiras declarações afirmando que os problemas enfrentados nas unidades públicas de saúde eram oriundos de uma situação de “crise financeira”, essa ideia foi questionada por diferentes atores, órgãos e instituições. Na medida em que surgiram as primeiras propostas para a superação da crise baseadas no argumento de que seria preciso chegar a um equilíbrio entre o que o Estado poderia ofertar e o que estaria incluído no “direito à saúde”, outra forma de criticar as versões oficiais da crise passou a ganhar espaço entre especialistas, políticos da oposição e representantes de movimentos sociais. As objeções apresentadas por esses sujeitos colocavam em xeque não somente as causas da crise, mas, de certo modo, a própria ideia da existência de uma crise tal como ela é entendida no senso comum. É essa contestação da “verdade da crise” por meio da enunciação de sua “finalidade política” que classifico como uma terceira contraversão: a crise enquanto um projeto de “desmonte do SUS”.
Por mais que a ideia de que a crise faz parte de um plano específico de asfixia e sucateamento do sistema público de saúde seja o fundamento dessa contraversão, ela se configurou a partir de dois raciocínios distintos. De maneira resumida, o primeiro deles se articula às outras contraversões, dando a entender que a crise é fruto da má gestão e/ou da corrupção e que estava sendo utilizada como justificativa para a implementação de “políticas de austeridade”; já o segundo argumento descarta a hipótese de que há uma “má gestão” no sentido de “falha” ou “erro”, de modo a colocar a própria origem da crise como parte do “projeto de desmonte”. Ou seja, nesse segundo raciocínio, a crise nada mais era do que o resultado de escolhas políticas e cortes orçamentários arbitrários que objetivam a produção de uma situação caótica e problemática para justificar a necessidade de uma urgente “reforma” e intervenção estatal.
Seguindo o que foi proposto por autoras como Vianna (2014), Ferreira (2013) e Lowenkron e Ferreira (2020), considero que os decretos, comunicados, informes, entrevistas, declarações e outras modalidades de registro e documentação da crise não apenas “refletem a realidade” da crise, mas sim a constroem ativamente por meio de sua própria força social. Em termos latourianos, tomo os documentos não enquanto intermediários – isto é, elementos que fazem circular significados sem transformá-los –, mas sim como mediadores, ou seja, como instrumentos que “transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam” (Latour, 2012: 65). Dito de outro modo, minha preocupação é demonstrar de que maneira os múltiplos documentos informam, alimentam e reproduzem uma percepção sobre os acontecimentos de maneira a promover um determinando enquadramento do real.
Como mencionado, a noção de enquadramento aqui utilizada parte das formulações elaboradas por Goffman (2012) e Butler (2015). Ambos se interessam pela discussão das formas pelas quais aquilo que é tido como real é produzido socialmente, de modo que a definição da realidade é sempre atravessada por tensões e embates entre diferentes lados ou versões sobre uma mesma situação. Na conjuntura de disputas pela “realidade de crise” que etnografei, creio que os documentos ocupam um lugar decisivo, já que, de acordo com Goffman, uma pergunta tão elementar quanto a do tipo “o que está acontecendo aqui?” admite uma multiplicidade de repostas que depende do enfoque dado por quem a responde e dos elementos da cena que são destacados. Logo, sublinhar o papel dos documentos nesse processo visa demonstrar sua função enquanto elementos que não apenas conferem o reconhecimento da presença de algo ou a existência de um fenômeno, mas que também dá a ele uma outra “camada de realidade”. Em determinados casos, podemos chamar essa outra camada de realidade de “oficial”. Entretanto, cabe pontuar que essa outra camada possui apenas uma qualidade diferente, pois ela não necessariamente se sobrepõe de modo a cobrir a precedente e nem é mais ou menos importante do que qualquer outra.
Em suma, podemos entender os diferentes documentos elencados no mapeamento sobre a crise como uma espécie de objeto performativo (Freire, 2016). Isso significa pensá-los não como meros descritores da realidade, mas como capazes de produzir os fenômenos acerca dos quais eles se referem por meio de um efeito de verdade causado pela reiteração. Segundo Roitman (2014), declarar uma crise significa definir uma maneira específica de interpretar e perceber os acontecimentos. Nesse sentido, as ideias e explicações que circularam sobre o assunto em diferentes plataformas midiáticas e documentais podem ser encaradas como elementos em uma competição discursiva que tem por objetivo estabelecer a “verdade da crise”. Uma disputa travada sobretudo nos e por meio dos documentos, os quais são, como diz Evans (2014), simultaneamente uma tecnologia de persuasão, pois ajudam a visualizar e narrar ideias; e uma tecnologia de materialização, já que são o primeiro passo na realização de um projeto estatal de reestruturação do Sistema Único de Saúde.
Em um primeiro momento, pretendi discutir de que maneira a relação da Antropologia com as fontes documentais se transformou ao longo da história da disciplina. Assim, demonstrei que os documentos que inicialmente eram considerados fontes de dados cruciais para o desenvolvimento da reflexão antropológica foram posteriormente desprezados e até mesmo execrados. Explorei também como eles voltaram a ser objeto de interesse dos antropólogos a partir de meados dos anos 1980 e 1990. Na segunda parte do artigo, utilizei minha própria pesquisa como exemplo de como é possível engajar os documentos na pesquisa etnográfica. Logo, por meio do mapeamento de diferentes tipos de registro, busquei dar conta de identificar as diferentes versões oficiais e contraversões da crise que influenciavam as percepções das pessoas sobre a situação das unidades públicas de saúde do Rio de Janeiro. Ao fim da segunda parte, busquei sublinhar de que forma os argumentos apresentados se alinham a uma determinada perspectiva teórica da etnografia da documentação: a relação dos papéis com a realidade.
Para finalizar o texto, gostaria de fazer alguns breves apontamentos acerca das potencialidades da pesquisa etnográfica com documentos, em especial em contextos como o que vivemos recentemente por conta da pandemia de covid-19 em que não é possível fazer trabalho de campo segundo uma “perspectiva tradicional”. Contudo, antes de apresentar tais considerações, creio ser fundamental explicitar que o que se segue não são argumentos conclusivos, mas ponderações e reflexões que servem de abertura ao diálogo e ponto de partida para outras pesquisas e artigos.
Como descrito anteriormente, a virada histórica da disciplina propiciou uma “recuperação dos documentos” como importantes fontes de dados para a pesquisa antropológica. Nesse contexto, tal como pontuado por Hull (2012), os materiais arquivados eram mobilizados para a construção de relatos etnográficos de eventos e situações que não necessariamente foram observados diretamente pelo pesquisador. Em outras palavras, como comentam Lowenkron e Ferreira (2020), esse período é marcado por uma abordagem que olha através dos documentos e não tanto para eles. Nessa esteira, um relevante deslocamento foi feito por Stoler (2002) ao propor tratar os arquivos como artefatos culturais a partir dos quais é possível rastrear as pretensões de seus criadores e/ou mantenedores, bem como compreender os pactos – tácitos ou explícitos – que orientam o que pode/deve e o que não pode/deve ser registrado.
De todo modo, se a investigação nos arquivos e a pesquisa com documentos – que não são a mesma coisa – sempre foram essenciais para uma antropologia histórica, creio que elas também configuram importantes caminhos para outros campos da disciplina, como os da antropologia do Estado e da administração, a antropologia do direito, dentre outros. Nesse sentido, reforço uma ideia apresentada por outros autores de que os documentos não apenas nos fornecem pistas sobre o que aconteceu no passado, mas também modelam e orientam o que acontece no presente e o que pode vir a acontecer no futuro. Ao salientar essa dimensão, viso reiterar o que foi discutido na segunda parte do texto em relação ao papel dos documentos e outras formas de registro na conformação dos enquadramentos do real e na produção de percepções e materialização de fenômenos como a crise da saúde pública.
Ao olhar para os documentos na conjuntura contemporânea a partir dessa perspectiva, é possível perceber que essa “recuperação dos papéis” adquiriu uma nova camada conforme o vírus da covid-19 se alastrou ao redor do mundo. Para a prática dos antropólogos, o impacto da pandemia foi bastante significativo, uma vez que a impossibilidade de realização do trabalho de campo praticamente paralisou o andamento de um sem número de pesquisas. Nesse sentido, a continuidade das investigações e as alternativas para a realização do trabalho de campo tornaram-se pontos centrais nas discussões travadas entre cientistas sociais de todas as partes do globo durante o primeiro ano de um isolamento social bastante restritivo.
Nas primeiras semanas de decretação da pandemia – quando a perspectiva era de volta à normalidade em pouco tempo –, o que parecia estar em jogo nas variadas reflexões sobre as possibilidades e alternativas para manter as pesquisas antropológicas em andamento durante a quarentena mais rigorosa era a manutenção da interação entre pesquisadores e interlocutores. De certo modo, o que se dava a ver era uma preocupação em continuar “fiel” aos procedimentos mais elementares da etnografia, ainda que em um ambiente/espaço virtual. Em outras palavras, o debate girava em torno de sugestões para que as pessoas pudessem contornar as dificuldades colocadas pela pandemia e reinventar suas formas de “estar em campo” e conduzir suas pesquisas.
No entanto, com o passar dos meses e a continuidade da limitação tanto da mobilidade quanto da interação presencial, as pesquisas com documentos e os especialistas nesse campo começaram a ganhar uma projeção cada vez maior. Se, por um lado, essa renovada atenção ao que os antropólogos que lidam com documentos e arquivos vêm fazendo há décadas é muito bem-vinda, por outro, ela também desperta certas preocupações e evidenciam determinados riscos. Um dos principais perigos colocados pela busca ansiosa de meios de dar continuidade aos projetos – sobretudo por parte de pós-graduandos que precisam lidar com prazos muito restritos para apresentar suas dissertações e teses – é a crença de que é possível apenas alterar os métodos e as técnicas de pesquisa adotadas e, consequentemente, transformar sua investigação em uma “etnografia dos documentos”.
De todo modo, parece-me importante tentar preservar alguma precisão nesse cenário para que não percam algumas proposições básicas. Não se pode confundir, por exemplo, uma etnografia dos ou com documentos com pesquisas fundamentadas no método da análise de discurso. Como colocado por vários dos autores e autoras citadas ao longo do texto, etnografar documentos implica, dentre outras coisas, investigar como, para que e por quem esses documentos são produzidos e mobilizados em determinados contextos e cenários. Outro ponto que merece atenção quando se pretende empreender uma pesquisa desse tipo é se interrogar sobre o lugar ocupado pelos documentos no universo etnográfico acessado e se é viável e/ou pertinente abrir essa frente de investigação em dados contextos. Como afirmam Lowenkron e Ferreira (2020), se a documentação faz parte das atividades e práticas de conhecimento “nativas”, ler os documentos produzidos pelos interlocutores torna-se uma atividade fundamental do próprio trabalho de campo e da pesquisa etnográfica.
Em suma, a viabilidade da utilização das ferramentas desenvolvidas pela etnografia dos/com documentos dependerá, em última instância, da forma como serão elaborados o projeto, objeto e tema da pesquisa. Elas não devem ser mobilizadas como uma espécie de bote salva-vidas ou mecanismo de resgate em situações emergenciais como as que vivemos por conta da pandemia.
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É doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ). Atualmente é pesquisador em estágio pós-doutoral no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV).↩︎
O debate acerca das relações entre antropologia e etnografia é extenso e não será objeto desse texto. De um modo geral, de um lado, há quem afirme que a etnografia não é um mero método ou uma técnica de pesquisa, mas aquilo que define a antropologia como um todo, como colocado por Mariza Peirano (2014); do outro, há autores como Tim Ingold (2015) que defendem que não é possível tomar os dois termos como equivalentes, de modo que é preciso separar o projeto intelectual da antropologia e a finalidade descritiva da etnografia.↩︎
A CRLS é composta pela parceria entre as seguintes instituições estatais: as Defensorias Públicas do Estado do Rio de Janeiro e da União (DPE-RJ e DPU, respectivamente), as Secretarias de Estado e Municipal de Saúde (SES e SMS, respectivamente), as Procuradorias Gerais do Estado e do Município (PGE e PGM, respectivamente), pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) e pelo Departamento de Gestão Hospitalar do Ministério da Saúde (DGH/MS).↩︎
As Clínicas da Família são Unidades Básicas de Saúde (UBS) responsáveis pela Atenção Primária na cidade do Rio de Janeiro. As Clínicas estão alinhadas com a política nacional de Estratégia de Saúde da Família (ESF) e tem como foco de suas ações a prevenção de doenças, promoção da saúde e diagnóstico precoce de patologias.↩︎
A Estratégia de Saúde da Família (ESF) é uma iniciativa do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde (DAB-MS) que visa reorganizar os procedimentos de Atenção Básica no país de acordo com os preceitos do SUS. A ESF consiste na criação de equipes de Saúde da Família (eSF) que contam com profissionais de saúde de distintas formações e que atendam parcelas da população (recomenda-se que cada equipe fique responsável pelo atendimento de até 3 mil pessoas, podendo chegar a 4 mil dependendo das “condições de vulnerabilidade” das populações e dos “territórios”) em seus locais de moradia e/ou em regiões próximas. Segundo o DAB, o objetivo da ESF é “ampliar a resolutividade e impacto na situação de saúde das pessoas e coletividades, além de propiciar uma importante relação custo-efetividade”.↩︎