por Paulo César Alves1
Universidade Federal da Bahia
orcid.org/0000-0002-2802-7382
paulo.c.alves@uol.com.br
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo geral compreender a pandemia a partir de uma perspectiva da prática social. Parte do pressuposto de que a pandemia, mais do que um problema de distribuição geográfica de uma doença, constitui uma súbita ameaça ao fluxo corrente de práticas cotidianas. Sendo um processo de ruptura com o modo usual de se estar com os outros, a pandemia demanda o desenvolvimento de práticas para se lidar com as diferentes perturbações do ambiente percebido. Assim, tendo em vista a importância de compreender o que e como fazem os atores para responder aos cenários sociais, o artigo explora os princípios teórico-metodológicos de perspectivas socioantropológicas contemporâneas – as “novas sociologias” – que, inspiradas na fenomenologia-existencial e no pragmatismo, buscam esclarecer e explicitar questões acerca dos “modos de ser no mundo” de diferentes coletivos. Nessa perspectiva, a pandemia é configurada de acordo com o espaço onde se formula o questionamento; se constitui como algo que é feito na prática e de práticas, na sua materialidade, nas associações que os atores realizam em situações concretas. É justamente por estar necessariamente enraizada no mundo, que a pandemia adquire significação.
Palavras-chaves: pandemia, práticas, mundo da vida cotidiana, “novas sociologias.”
Pandemia, prácticas y vida cotidiana
RESUMEN
El objetivo general del presente artículo es comprender la pandemia desde la perspectiva de la práctica social. Parte del supuesto de que la pandemia, más que un problema de distribución geográfica de una enfermedad, constituye una amenaza repentina al flujo usual de las prácticas cotidianas. Como proceso de ruptura de la manera habitual de ser y estar con otros, la pandemia demanda el desarrollo de prácticas para hacer frente a las diferentes perturbaciones del entorno percibido. Así, dada la importancia de comprender qué y cómo hacen los actores para responder a los escenarios sociales, el artículo explora los principios teóricos y metodológicos de las perspectivas socioantropológicas contemporáneas -las “nuevas sociologías”- que, inspiradas en la existencial-fenomenología y el pragmatismo, buscan aclarar y explicar cuestiones sobre las “formas de estar en el mundo” de los diferentes colectivos. En esta perspectiva, la pandemia se configura en función del espacio donde se formula el cuestionamiento; se constituye como algo que se hace en la práctica y de las prácticas, en su materialidad, en las asociaciones que los actores realizan en situaciones concretas. Es precisamente porque está necesariamente enraizada en el mundo que la pandemia adquiere significado.
Palabras clave: pandemia, prácticas, mundo de la vida cotidiana, “nuevas sociologías”
Pandemic, practices and everyday life
ABSTRACT
The general objective of this article is to understand the pandemic from a social practice perspective. It starts from the assumption that a pandemic, rather than a problem of geographical distribution of a disease, constitutes a sudden threat to the current flow of everyday practices. As a process of rupture with everyday forms of being with others, the pandemic demands the development of practices to deal with the different disturbances of the perceived environment. Thus, in view of the importance of understanding what and how actors do to respond to social scenarios, the article explores the theoretical and methodological principles of contemporary socio-anthropological perspectives - the “new sociologies” - which, inspired by existential-phenomenology and pragmatism, seek to clarify and explain questions concerning the “ways of being in the world” of different collectives. In this perspective, pandemic is configured according to the space where the questioning is formulated; it is constituted as something that is done in practice and of practices, in its materiality, in the associations that the actors make in concrete situations. It is precisely because it is necessarily rooted in the world that the pandemic acquires significance.
Keywords: pandemic, practices, world of everyday life, “new sociologies”
Recibido: 28 de septiembre de 2022
Aceptado: 02 de marzo de 2023
CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO: Alves, Paulo César (2023) “Pandemia, práticas e vida cotidiana” Etnografías Contemporáneas, 9 (16), pp. 124-139.
“Se um criador não é agarrado pelo pescoço por um conjunto de impossibilidades,
não é um criador. Um criador é alguém que cria suas próprias impossibilidades,
e ao mesmo tempo cria um possível [...] É preciso escrever líquido ou gasoso,
justamente porque a percepção e a opinião ordinárias são sólidas, geométricas”
(Deleuze, 1992: 171)
Acredito que algumas das questões centrais do presente trabalho começaram a ser germinadas em 2021, quando, em pleno contexto de reclusão causado pela pandemia da Covid-19, fui convidado para realizar uma palestra on-line sobre doença e vida cotidiana. Duas ordens de preocupações, entre outras, surgiram desse evento. A primeira estava relacionada à compreensão socioantropológica da doença em sua dimensão pandêmica. A segunda dizia respeito ao novo contexto discursivo e técnico pelo qual me dirigia a uma plateia. Até então tinha pouca familiaridade em falar através de meios digitais. Recebi algumas instruções de como realizar determinados procedimentos técnicos para usar a plataforma que transmitia minha comunicação. Instruções certamente úteis. Ajudaram, por exemplo, a direcionar minha atenção a certos aspectos do processo comunicativo que, até então, desconhecia ou passavam despercebidos. Mas, não sanavam totalmente as minhas tensões e receios ao lidar com um novo contexto discursivo. Acostumado às relações face-a-face em sala de aula, agora, isolado no meu apartamento, me dirigiria a uma “plateia virtual”. Não me sentia seguro em como estabelecer relações de troca com interlocutores situados em diferentes localidades. Por exemplo, como me concentrar e emitir um discurso diante de uma tela de computador que apresentava algumas faces, sendo uma delas a minha, obrigando-me a ver minhas expressões faciais a todo momento?
Quando comecei a ministrar aulas à distância, logo após a essa palestra, e principalmente no retorno as aulas presenciais, tempos depois, essas dúvidas e inseguranças adquiriram outras dimensões na proporção que adquiria conhecimento – mais “familiaridade” – no uso dos meios digitais. Comecei a prestar maior atenção, por exemplo, nas diferentes associações entre discurso, imagem e escrita no contexto de aula. Em síntese, a crise causada pela pandemia da Covid-19 suscitou em todos nós, de formas diferenciadas, um saber prático, o desenvolvimento de experiências, direções, ações que realizamos no “mundo da vida cotidiana”.
O conhecimento, como observa Tim Ingold (2010), consiste, em primeiro lugar, em aquisição de habilidade (enskilment). O movimento do praticante habilidoso responde contínua e fluentemente a perturbações do ambiente percebido. Isto é possível porque o movimento corporal do praticante é, ao mesmo tempo, um movimento de atenção; porque ele olha, ouve e sente, mesmo quando trabalha. É esta capacidade de resposta que sustenta as qualidades de cuidado, avaliação e destreza, que são características da obra executada com maestria. Em outras palavras, o conhecer não reside nas relações entre “estruturas no mundo” e “estruturas na mente”; desabrocha dentro do campo de prática (taskscape) estabelecido através de sua presença enquanto ser-no-mundo. A cognição, neste sentido, é um processo em tempo real.
“Medo”, “reclusões”, “indecisões”, “incertezas”, “aprendizados” e “temporalidades” são conceitos importantes para a compreensão socioantropológica de uma pandemia. Devem ser levados em devida consideração para que possamos entender as diferentes atividades, acontecimentos e movimentos (trajetos) realizados pelos atores ao tratar, cotidianamente, com as perturbações do ambiente percebido. É importante que as pesquisas socioculturais deem mais atenção para as diferentes respostas – os “saberes práticos” – dadas pelos agentes ao lidar com as “problematizações”, “rupturas”, geradas por situações sociais críticas.
Mais do que um problema de distribuição geográfica de uma doença, a pandemia gera “rompimentos” com alguns dos pressupostos da vida cotidiana. Se constitui como uma súbita ameaça a “normalidade social”; ameaça um fluxo corrente de práticas, das coisas que usualmente fazemos no nosso dia a dia. A pandemia nos afeta em diferentes sentidos. Nela os medos se multiplicam e surge uma diversidade de alertas sobre as mudanças que estão ocorrendo no mundo da vida cotidiana. A pandemia põe em xeque muitas das nossas práticas familiares de lidar com o mundo e com os outros; confere contornos trágicos às situações de doença e aos cuidados à saúde; aponta para o inadministrável da situação. Ela nos amedronta, fundamentalmente, por nos colocar em situações nas quais as relações entre segurança e insegurança são problematizadas. Nessas situações, os atores adquirem habilidades - capacidade de associar ou arregimentar diferentes mediadores (objetos, técnicas, discursos) que lhe possibilitem agir e alcançar certos fins. São aprendizados práticos que chamam atenção para determinados aspectos no conjunto de novos arranjos sociais.
Uma questão, portanto, que nos parece central para os estudos socioantropológicos sobre a pandemia diz respeito ao seu envolvimento com o “saber prático”, com os processos de (re)associações entre diferentes sujeitos, discursos, instituições, objetos. Temática essa que requer certas atenções na condução teórico-metodológicos de uma pesquisa. Que implicações teórico-metodológicas que estão subjacentes neste conceito? O que as teorias sociais contemporâneas têm a dizer sobre o significado de “ação”, “práticas”, “experiências”? Que pressupostos ontológicos e epistemológicos essas teorias desenvolvem sobre o “que é o social” e “como estudá-lo”? Em síntese: Que desafios metodológicos elas lançam para as pesquisas interessadas na análise de processos, modos, estilos pelos quais as pessoas estão continuamente configurando, inventando e adaptando respostas para lidar com as perturbações geradas pela pandemia?
O presente artigo pretende explorar algumas dessas questões. Estamos particularmente interessados em compreender a pandemia a partir de uma perspectiva da “prática social”, o conceito central do presente texto. Para discutir o conceito de “prática”, recorremos a um conjunto de teorias sociais contemporâneas – que aqui denominamos de “novas sociologias” - que partem do princípio de que ação é o ponto de partida para o entendimento dos fenômenos sociais.
O termo “novas sociologias” foi originalmente criado por Philippe Corcuff (2001), para designar um conjunto heterogêneo de teorias sociais que emergem a partir dos fins do século XX. No presente artigo, utilizamos esse termo para referir a uma plêiade de pensadores que, embora apresentem distintas problemáticas, guardam entre si uma certa familiaridade por compartilharem determinados pressupostos teóricos do movimento fenomenológico (principalmente Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty), do pragmatismo (particularmente William James, John Dewey e George Herbert Mead) e das chamadas “filosofias empíricas” ou “da prática”, desenvolvidas por pensadores como Gabriel Tarde, Bergson, Whitehead, Étienne Souriau, Michel Serres, Gilles Deleuze, Isabelle Stengers, entre outros. Há, em todos esses pensadores uma forte preocupação com as “realizações práticas”, com incertezas, estranhamentos e tensões geradas no “mundo da vida cotidiana” (Lebenswelt). São aportes teóricos particularmente interessados em compreender o que se passa no âmbito do fazer-se (ou do “em se fazendo”) e não apenas do já feito. Assim, em vez de privilegiar a busca de formas, de estruturas, de modelos, tomam como base a noção de ação, de atividades e ordenamentos nos quais os atores se envolvem na produção da vida cotidiana. Produções essas que estão sempre além dos freios teórico-metodológicos impostos pelos pesquisadores. Nesse sentido, chamam atenção para o fato de que não há limites precisos (início – fim) nos processos sociais; estão atentos a inesgotabilidade – e mesmo a indeterminação e imprevisibilidade – das ações; abandonam as prerrogativas lógicas do princípio da identidade para se ater às diferenças. Nelas, as narrativas ocupam um lugar fundamental como fonte de dados (Corcuff, 2001; Dosse, 2003; Joas, 1996; DeLanda, 2011).
O objetivo principal do presente artigo é identificar algumas das características teórico-metodológicas dessas “novas sociologias” que podem lançar novas perspectivas analíticas para as pesquisas sobre pandemia e os distintos modos, formas, estilos de ser no mundo de diferentes coletividades. Nesse sentido, o presente trabalho tem um caráter metateórico: procura identificar um conjunto de princípios, uma espécie de matriz do conhecimento, que condiciona ou orienta um determinado corpo teórico em sua totalidade pela sugestão de problemas-tipo e indicações de solução. Acreditamos que, ao discutir tais princípios, mesmo de forma abreviada, apontamos para alguns desafios que a noção de “prática” levanta para as pesquisas socioantropológicas.
O presente artigo está divido em cinco seções. A primeira discute a relação entre “pandemia” e “medo coletivo”; a segunda analisa o significado de prática; a terceira e quarta parte referem-se às relações entre “cotidiano”, “ação” e “ato” e a quinta analisa o significado de pandemia como prática social.
Muitos estudos históricos chamam atenção para a associação entre pandemia e medo coletivo. Citemos apenas dois exemplos: analisando as alterações sofridas pelas artes visuais em decorrência do impacto da peste negra que chegou à Europa em 1348, Maria Izabel Branco Ribeiro chama atenção para o pessimismo manifesto em imagens de destruição, sepultamento, abandono dos rituais fúnebres, sentimento de impiedade em relação aos mortos, o medo da contaminação e dúvidas sobre os caminhos a seguir. “A personificação da morte, com ossadas e corpos em decomposição, passa a ser frequente, originando o tema da Dança Macabra, ilustrativo do conceito de nascimento de marcar o início do final da vida” (Ribeiro, 2012: 71). A peste negra acentuou o movimento migratório das cidades menores e do campo em direção aos maiores centros urbanos, resultando um significativo aumento da população dessas cidades, alterando os seus perfis culturais e criando assim as condições para o surgimento de uma nova geração de artistas e filósofos que passam a privilegiar cada vez mais questões espirituais e moralizantes. Algo semelhante pode também ser encontrado no imaginário sobre a gripe espanhola que surge logo após a Grande Guerra (1914-1918). Analisando o impacto da “influenza” (como os brasileiros também chamavam a epidemia) em São Paulo, Liane Maria Bertucci registra o pânico; os transtornos para a vida econômica e social da cidade (como, por exemplo, a desorganização no abastecimento de gêneros e no fornecimento de remédios, a falta de atendimento médico e hospitalar, cardáveis insepultos); os casos de loucura, as tragédias (suicídios e assassinatos) que aconteciam “no delírio da febre”. Atitudes que deixavam os paulistanos perplexos, gerando cada vez mais questionamentos. A “influenza desestruturou a organização da sociedade e colocou em xeque o saber científico sobre o sadio e o enfermo” (Bertucci, 2004: 395). Com o passar do tempo, essa pandemia instigou, entre outros aspectos, o desenvolvimento de pesquisas no mundo inteiro sobre virologia, sobre moléstias que até então tinham despertado pouco interesse na comunidade científica.
O medo coletivo explicita uma relação entre segurança e insegurança. Uma relação problemática na qual se põe em dúvida o conhecimento, a habilidade para agir em certas situações. Medo é sempre uma forma de problematização de determinados conhecimentos tidos como certos e do domínio que supomos ter sobre as coisas. Situações incertas e frágeis - provocadas por estados de “suspensão”, “quebra” - requerem aquisição de novos conhecimentos, de práticas para lidar com os novos reordenamentos no mundo da vida cotidiana, com a “nova normalidade” que aflora. Assim, podemos observar que o medo requer cuidados porque focaliza sobremaneira a atenção sobre mudanças nas interações sociais, sobre a produção de novas identidades e convivialidades que se forjam no contato com os outros.
Como é do conhecimento geral, a pandemia - Covid-19 – começou nos princípios de 2020. Uma doença infecciosa emergente, para a qual não havia tratamento, nem vacina, nem imunidade pré-existente e que se espalhava rapidamente pelo mundo. O número de pessoas infectadas aumentava diariamente; crescia a quantidade de pessoas que precisavam de estrutura hospitalar de maior complexidade para o tratamento dos sintomas graves; era assustador o número diário de óbitos. Os processos de tomada de decisão para o controle da doença se alteravam rapidamente, variando conforme aprendizado que se adquiria sobre a origem e distribuição do vírus (e infecção) em diferentes indivíduos e grupos. Apesar do intenso esforço de equipes internacionais de pesquisa, o conhecimento científico ainda era incipiente sobre o papel dos portadores assintomáticos; sobre as relações entre infecção e imunidade; a especificidade e sensibilidade dos testes diagnósticos. As mídias sociais, com grande velocidade, divulgavam dados estatísticos e informações sobre a pandemia. Nesse sentido, contribuíam para a institucionalização de um imaginário social sobre o covid-19, “espalhando” o medo.
Os dispositivos de biossegurança e práticas estavam restritos principalmente à quarentena, à instalação de cordões sanitários nas fronteiras dos Estados-Nações, ao distanciamento físico, maiores cuidados com a higienização e o uso de máscaras. Na prática, esses dispositivos assumiam múltiplos aspectos e sua implementação não só levantou uma série de desafios como produziu consequências sociais diversas. Por exemplo, o isolamento (ou resistência a ele) não se dava da mesma forma para todos: dependia de quem e de onde ou em que contexto se encontrava isolado. Não devemos esquecer também que a higienização em locais sem infraestrutura de saneamento básico é problemática, como no Brasil em que aproximadamente 48% da população não tem coleta de esgoto. Além do mais, alguns países retardaram ou foram bastante lentos ao tomar medidas públicas no controle da epidemia, como foi o caso do Brasil, conforme amplamente noticiado pela mídia nacional.
Mais do que uma crise da saúde pública e da prática médica, a pandemia da Covid-19 afetou grandes coletividades, trazendo diferentes impactos na sociedade, na vida cotidiana das pessoas. Impactos, por exemplo, ao gerar o isolamento físico preventivo e obrigatório; alterações ou descontinuidades nas rotinas que organizavam nossas vidas; nas profissões e nas relações trabalhistas. Também aguçou distintas posições políticas na mobilização do sistema de saúde e acendeu tensões entre liberdade individual e as medidas de saúde pública. No caso do Brasil a crise sanitária provocada pela pandemia foi agravada ainda mais pela instabilidade política pré-existente, gerando um cenário de incertezas, descrédito internacional, ameaça de recessão econômica, proliferação de informações não confiáveis. As histórias sobre as experiências vividas na pandemia são diversas e as suas narrativas certamente vão se proliferar nos próximos anos. Em síntese, a pandemia, como a do Covid-19, teve (e tem) um grande poder de desestabilização, afetando em vários níveis e de diferentes formas o “mundo da vida cotidiana”, gerando com isso novas problematizações que demandam novos conhecimentos e práticas para lidar com os novos reordenamentos no convívio entre os atores sociais.
Desnecessário é afirmar que as diferentes alterações sociais provocadas pelo impacto do inesperado têm estimulado a realização de inúmeras pesquisas. A literatura sobre a pandemia torna-se cada vez mais volumosa. Como em qualquer conhecimento científico, são pesquisas que associam diferentes variáveis para o entendimento do fenômeno. No caso das ciências sociais, uma grande parte delas está voltada para analisar novas demandas sociais e tem como foco principal de atenção estabelecer associações entre a crise global da saúde pública e a organização e funcionamento dos serviços de saúde (Leo, 2021; Melnikow, 2022; World Economic Forum, 2021). Assim, por exemplo, temos pesquisas que exploram as diferentes experiências da pandemia vivenciadas por atores que trabalham com a assistência à saúde; o desenvolvimento de meios não familiares desses profissionais para lidar com novas aflições; os transtornos provocados pelas mudanças significativas nos serviços de rotina; a exaustão mental e física (a exemplo do “burnout”) desses atores. Muitas pesquisas também estão sendo realizadas para compreender as mudanças nas relações de trabalho decorrente da situação pandêmica.
Contudo, ainda são poucas as pesquisas que se voltam para o entendimento das práticas, para a compreensão dos distintos modos de ser no mundo em um contexto pandêmico. A grande parte das pesquisas sociais está interessada em analisar as interpretações – portanto, ideias ou discursos - que os atores sociais têm (ou tiveram) das suas experiências; das razões que motivaram mudanças de condutas. Assim, terminam por não levar em devida consideração o que e como fazem os atores para lidar com novos cenários sociais; que habilidades e aprendizados desenvolvem; como estão associados os discursos, materialidades e práticas em situações pandêmicas.
Ao se considerar a pandemia a partir de uma perspectiva da prática social é necessário observar alguns pressupostos teórico-metodológicos subjacentes ao conceito de “prática”. Em primeiro lugar, esse conceito não se reduz a uma questão de subjetividade, ao um modo individual de ser no mundo, mas às maneiras ou modos pelos quais sujeitos concretos interagem entre si e estabelecem associações entre diferentes variáveis que compõem o mundo da vida cotidiana. Prática, portanto, está “situada” nos processos interativos –que o movimento fenomenológico designa como “intersubjetividade”– e não nos indivíduos. Nessa perspectiva, a doença, por exemplo, é primordialmente concebida como processos tanto físico-mentais quanto interativos que envolvem diferentes atores. Ou seja, diferente das análises tradicionais sobre “representações da doença”, os estudos sobre práticas estão preocupados em analisar o “que se passa” efetivamente do ponto de vista daqueles que vivem situações concretas de enfermidade, como produzem ações com significados. Os significados são intrínsecos às próprias ações ou às associações entre atores e não um simples “rótulo” aposto a um ato.
É também importante enfatizar uma questão metodológica: a preocupação com “práticas sociais” não se reduz a colecionar descrições, “exemplos adequados”. A intenção é aprender, por esses exemplos, novas “lições” que inspirem teorias, formem novas ideias, mudem concepções. Nessa perspectiva, os estudos de casos não são conclusivos. Ou seja, não se caracterizam por buscar a estabilidade do fenômeno social. Como observa Annemarie Mol (2018: 296),
É possível prestar atenção ao que acontece na prática, por imaginar o que cada elemento num cenário indica sobre a realidade (problemas e preocupações) em jogo na prática, perguntando para as pessoas para aprender como elas lidam com as coisas e interpretando o que elas falam. A maneira mais importante é estudando ‘outras’ práticas também, para aprender sobre as duas pelos contrastes entre elas.
Nessa perspectiva, uma questão fundamental da pesquisa diz respeito ao que é relevante no entendimento das práticas. No seu instigante livro “The adventure of relevance. An ethics of social inquiry” (2016), Martin Savransky argumenta que “relevância” não é algo que nós subjetivamente acrescentamos às coisas. Ela é inerente às situações específicas pelas quais as coisas se “apresentam”. Ou seja, é porque as coisas importam em situações específicas que há um senso de obrigação imanente à pesquisa social. Um senso que é aprendido e tem caráter responsivo. É importante salientar, contudo, que adquirir um senso do que é aceitável, desejável em situações específicas, é sem dúvida um desafio para o pesquisador. Um desafio não apenas de ordem teórico-metodológica, mas com implicações políticas e morais.
A preocupação em compreender práticas cotidianas é um fenômeno relativamente recente nas ciências sociais. Surge de forma mais sistemática a partir do último quartel do século XX com o florescimento de um conjunto de teorias que, embora assumam diferentes configurações conceituais e desenvolvam problemáticas distintas entre si, partem de algumas premissas de ordem ontológica e epistemológica sobre o social, diferenciando-se, em vários aspectos, da “cultura sociológica” dominante nas ciências sociais desde as décadas de 1940 (Picó, 2003).
Em termos bem sintéticos, o modelo de conhecimento científico predominante até o último quartel do século XX estava principalmente fundamentado em duas grandes vertentes interpretativas. A primeira, partia do princípio de que a ciência para ser objetiva, para que possa apreender uma realidade que subsista “nela mesma” (uma entidade, portanto) e para que seu conhecimento seja válido e rigoroso, deve apreender relações causais e regularidades (estruturas, padrões, códigos, sistemas). Nessa perspectiva, o conceito de ação cede lugar ao de “sistema social” e o termo “social” refere-se a um status estabilizado de acontecimentos. Por outro lado, partia-se da premissa de que as ciências sociais e humanas devem desenvolver um enfoque “cognitivista” na compreensão do agir humano, se ocupando em reconstruir as motivações dos indivíduos (tomados como átomos básicos nos processos sociais). Nesse enfoque, o coletivo é apreendido como o resultado das agregações de comportamentos individuais.
Como chamam atenção muitos historiadores contemporâneos das ciências sociais (como Izzo, 2021; Joas, Knöbl, 2017; Dosse, 2003; Corcuff, 2001), a partir do último quartel do século XX esses modelos de conhecimento científico começam a ser questionados de forma mais sistemática. É nesse processo de auto reflexividade do saber científico que surgem as “novas sociologias”, como a sociologia fenomenológica e existencial; a etnometodologia; a teoria do ator rede; a teoria da ação criativa.
Todas essas teorias lidam, de forma explícita ou não, com um conceito chave: “mundo da vida cotidiana”. Por ser vago, é um conceito complexo, difícil de ser plenamente delimitado e operacionalizado. Como observa Georg Simmel (1939), a “vida cotidiana” é difícil de ser capturada porque está sempre in statu nascendi, algo constantemente envolvente, emergente e aderente. O conceito “mundo da vida” é um empreendimento teórico voltado principalmente para designar os fluxos de práticas sociais, sempre em vias de transformação e de concretização.
A contribuição de Alfred Schutz para o entendimento sociológicos do “mundo da vida cotidiana” é bastante significativa. Fortemente influenciado por Husserl, Weber, Bergson e William James, Schutz (1973: 208) argumenta que esse conceito se refere ao mundo no qual o “ser humano adulto, dentro da atitude natural, atua nele e sobre ele entre seus semelhantes”. Embora ampla, essa definição aponta para três aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, é um mundo de atuações, no qual os sujeitos não cessam de responder às ações dos outros. Mundo composto prioritariamente pelas associações de diferentes níveis de proximidade e distância, de familiaridade e estranhamento entre os agentes. Para Schutz, é uma propriedade intrínseca do ser humano a capacidade de iniciar processos novos e sem precedentes (embora necessariamente assentados em “contextos” pré-existentes), cujos resultados podem ser incertos e imprevisíveis. Um mundo que é sempre dado dentro de um horizonte de perspectivas. Ou seja, não é e nunca foi um mero agregado de coisas ou de pessoas isoladas, mas um mundo comum a todos que nele participam.
Em segundo lugar, trata-se de um mundo vivido na “atitude natural” – postura mental na qual o ator realiza os seus afazeres diários de forma espontânea e rotineira. Mundo que é tomado como pressuposto, real, organizado, familiar pelos seus atores. Portanto, é paramétrico. É uma fonte permanente de referência, de significado e evidência, de valores, julgamentos. Paramétrico não apenas porque nele os sujeitos estão imersos a maior parte das suas vidas, mas principalmente porque é por ele que se estabelece “limites” em relação às outras províncias de significados (como os sonhos, delírios, ficção, êxtases artísticos ou religioso etc.). Contudo, o mundo da vida cotidiana não é imune à revisão. É posto em questionamento sempre que algo coloca em suspensão seus pressupostos; quando uma nova experiência não pode ser incorporada ao marco de referência até então não questionado.
Em terceiro lugar, trata-se de um mundo no qual os atores têm um interesse (foco de motivação gerado em uma situação específica) eminentemente prático: contam com a “realidade social” para que possam realizar seus propósitos. Em síntese, o “mundo da vida cotidiana” é o horizonte de referência paradigmático através do qual os atores sociais interagem entre si, definem ações previstas de sentido e apreendem as realidades que lhes são dadas. Ou seja, o mundo das atividades práticas que desenvolvemos cotidianamente nas nossas vidas
Para lidar com o “mundo da vida”, os atores desenvolvem “estoques” de conhecimentos e domínios. “Receitas” que podem ser precisas e distintas; vagas e obscuras; e nem sempre estão livres de incoerências e contradições. É justamente por ter conhecimento e domínio dos objetos e relações sociais que realizam no cotidiano, que as pessoas tendem a considerar como “normal”, como “seguro” as suas relações com os outros, com os acontecimentos. Mas, é importante salientar que acontecimentos podem vir a perturbar, problematizar as normas, as nossas relações e entendimento do mundo; algo que ponha em questionamento nosso estoque de conhecimento. A pandemia é um exemplo significativo de um fenômeno que aguça diferentes problematizações, não apenas em termos de saúde pública.
Antes de prosseguir, é importante chamar atenção para o fato de que o termo “mundo da vida cotidiana” é usualmente interpretado por uma perspectiva cognitiva. Por exemplo, Berger e Luckmann, duas grandes referências para a “sociologia fenomenológica”, observam que o “mundo da vida” - “a matéria da ciência empírica da sociologia” – é “tomado como uma realidade certa pelos membros ordinários da sociedade” e a principal tarefa da sociologia é “tentar esclarecer os fundamentos do conhecimento na vida cotidiana, a saber, as objetivações dos processos (e significações) subjetivas graças às quais é construído o mundo intersubjetivo do senso comum”. (1998: 36) Trata-se, portanto, de um tipo de análise que se volta mais para questões de “interpretação”, “conhecimento”, “simbolização”.
Desnecessário é dizer que a interpretação é um componente constitutivo do “mundo da vida cotidiana”. Mas é importante chamar atenção que a interpretação de uma dada experiência só é estabelecida em retrospectiva; é resultado de uma atitude reflexiva sobre ações realizadas. Assim, devemos estar atentos à distinção entre “ação” e “ato”. O termo “ação” designa a conduta humana como processo em curso, ideado de antemão pelo ator (um projeto preconcebido). “Ato”, por sua vez, refere-se ao resultado de ações realizadas. Nesse sentido, grande parte dos estudos que lidam com questões da vida cotidiana tendem a se concentrar na análise de “atos” (ver Sheringham, 2009; Jacobsen, 2009; Heller, 1987; Douglas, 1971). Ou seja, a preocupação é com as razões, as justificativas, que os atores sociais têm sobre as “ações realizadas”.
Compreender a ação como fundamento último do “mundo da vida cotidiana” requer algumas considerações teórico-metodológicas. Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que toda ação requer um ímpeto inicial do(s) agente(s) para realizar algo – o “motivo” - e indica um percurso (trajeto), uma temporalidade, portanto. Ação, portanto, tem um caráter eminentemente dinâmico, sequencial, circunstancial, espacial. Um componente essencial da ação é a de estar sempre orientada para o futuro. Logo, é sempre possível haver incertezas e indeterminações entre um projeto, a ação assumida (o trajeto) e a sua conclusão. A ação desencadeada por um ator tem o poder de atingir ou afetar os outros, cuja reação (resposta) gera uma nova ação. Assim, o ator nunca é simples “agente”, mas também “paciente”. E, como observa H. Arendt (2010), devido à sua produtividade específica de estabelecer relações entre os atores, a ação pode violar limites e transpor fronteiras. Portanto, além de ter um componente de criatividade, há uma inerente imprevisibilidade do resultado da ação.
As formas pelas quais as ações realizadas por um agente são acessíveis aos demais são designadas por Schutz de “conduta”. Ou seja, a conduta nos “informa” sobre o modo dos atores fazerem (ou negligenciarem) algo. Conduta, portanto, é tanto um modo de ser quanto de conhecer. Há um aspecto importante no entendimento de conduta: a tipificação. Como argumenta Schutz (1973: 33). A ação, “no plano do senso comum, é sempre ação dentro de um marco inquestionável e indeterminado de construções tipificadas do enquadre, dos motivos, meios e fins, os cursos de ação e personalidades envolvidas e pressupostas. Pressupostas não apenas pelo ator, mas também pelo que fazem seus semelhantes. Desse marco de construções, que formam seus horizontes indeterminados, se destacam conjuntos meramente particulares de elementos que são clara e nitidamente determináveis”.
O significado de “conduta” nos remete a um aspecto fundamental do caráter temporal da ação – o de “conduta motivada”. Motivo é usualmente entendido pelas ciências sociais como um contexto de sentido pelo qual uma ação adquire significação. Mas, argumenta Schutz, a concepção de motivo requer maiores esclarecimentos, pois é necessário estabelecer uma distinção, usualmente não levada em devida consideração, entre “linhas de conduta” e “ato motivado”.
O ator, para lidar com as restrições existentes no mundo, traça linhas de conduta que podem ser ou não levadas a cabo. Para estabelecer uma linha de conduta é necessário que o ator atribua importância a aspectos selecionados da vida cotidiana (sistemas de relevância). Eleger um determinado fluxo de conduta depende do campo de possibilidades presentes no horizonte do ator. Cada possibilidade de ação leva consigo horizontes específicos de expectativas intencionais, de antecipações. Nesse sentido, todo “motivo” pressupõe um projeto (estado de coisas imaginado, que poderá ser levado a cabo por ações a serem realizadas). Afirmar que toda a ação está orientada para um objetivo final não significa dizer que os passos que conduzem a ele sejam plenamente claros, concretos e distintos ao ator. No curso da ação - no seu trajeto – o projeto inicial pode ser reavaliado e um outro vir a tomar seu lugar seja porque as expectativas intencionais desapareceram do campo de percepção, seja porque foram encobertas por outros objetivos, ou ainda porque as previsões não se realizaram. Assim, no processo de executar a ação o ator lida com um conjunto de arranjos, de seleções de elementos significativos que a ele estejam disponíveis, para que possa alcançar um determinado fim. Em outras palavras, o estabelecimento de uma linha de conduta requer uma performance, um engajamento, uma atenção aos eventos e situações nos quais os atores estão envolvidos. A essa concepção de motivo, Schutz denomina de “motivo para” ou “a fim de”. Em síntese, a direção prática que se orienta para o futuro e as expectativas do “mundo da vida cotidiana” se expressa no “motivo para”, no “motivo a fim de”.
Mas o que é motivado pelo “motivo para”? Certamente não é o projeto em si, pois é possível projetar sem que haja nenhuma intenção de realizar tal projeto. Para que o “motivo a fim de” seja realizável é necessária uma decisão: a razão para o fazer, para transformar o projeto em desempenho. A essa classe de motivo, Schutz denomina de “motivo por que”. Do ponto de vista do ator, os “motivos por que” remetem a experiências passadas. Ou seja, alguns aspectos da situação tal e como era antes da ação são selecionados e, em seguida, considerados como as razões – no sentido de causa – da ação. Trata-se, portanto, de explicar a ação recorrendo-se ao passado. Mas, enquanto age, o ator não tem necessariamente em vista os seus “motivos por que”. A ação em curso (que ainda está se fazendo e que aparece na perspectiva de tempo futuro) – o “motivo para” - tem um componente de liberdade e criatividade. Só quando olhada retrospectivamente, sob a perspectiva do “motivo por que” é que a conduta aparece como determinada. Grande parte da produção socioantropológica está mais diretamente voltada para explicitar essas determinações, para analisar os “motivos por que”; enquanto as “novas sociologias” preocupam-se com os “motivos para”.
Em síntese, a ação está fundamentada em três importantes aspectos: a) recuperação de construções passadas (as ações são realizadas a partir de condições diretamente dadas e herdadas do passado); b) estas construções são atualizadas nas práticas e nas interações da vida cotidiana dos atores; c) e abrem de campos de possibilidades de atuação no futuro. Nesse aspecto, há sempre um componente de liberdade (que não é a mesma coisa de “livre-arbítrio”) nas ações humanas.
Tendo em vista tais considerações teóricas, cabe perguntar o que significa conceber a pandemia a partir das práticas desenvolvidas, no “mundo da vida cotidiana”, por distintas coletividades. Assim como a doença, a pandemia se constitui como uma forma de ruptura com o modo usual de se estar com os outros. Conforme argumenta Gadamer (1996), em contraste com a doença, a saúde manifesta-se em um tipo de sensação de bem-estar; uma sensação de que estamos abertos para novas coisas, pronto para embarcar em novas iniciativas e, esquecido de nós mesmos, pouco notamos as tensões e esforços a que estamos submetidos. A doença é vista como uma “alteridade”, uma experiência peculiar de incompreensibilidade que atravessa a vida do doente. Nos afeta em vários sentidos. É um obstáculo aos projetos cotidianos em que estamos envolvidos; nos conduz a inquietação, ao desconforto.
A pandemia é problemática porque gera situações duvidosas, vivenciadas muitas vezes de maneira ambígua, que contêm tendências mutuamente exclusivas, cada uma delas igualmente plausíveis. Medos. Indecisões. Incertezas. Consequentemente, tais situações levantam para os atores uma preocupação com as respostas, com o poder lidar de forma mais controlável com as questões colocadas pela pandemia; desenvolver novas habilidades práticas nas diferentes situações nas quais os atores estão envolvidos. Ou seja, a preocupação de tornar conhecido o desconhecido
Uma situação problemática põe em xeque alguns dos nossos planejamentos. Ora, planejar é antecipar eventos futuro. Planejamento pressupõe que tenhamos certa segurança com respeito às estruturas básicas do mundo da vida, uma certa concepção de que o mundo da vida permaneça inalterado e, portanto, nos permita pensar na conduta futura. Como planejar – antecipar eventos futuros – em situações problemáticas, como no caso da pandemia? Como planejar se a confiança básica do mundo da vida está confusa, onde a insegurança torna-se um componente importante do nosso cotidiano?
As soluções encontradas pelos atores sociais envolvidos nas situações pandêmicas são múltiplas. Afinal, embora partilhemos com outros um conjunto de pressupostos (uma condição necessária, fundamental, para que possamos sustentar a nossa vida), o mundo cotidiano é sempre concretamente vivido por cada um de nós de forma um tanto específica. É o que faz com que tenhamos uma biografia particular. Desnecessário dizer, o que é seguro e normal para alguém não é necessariamente o mesmo para o outro. A confusão, a incerteza, a desordem não estão eliminadas no mundo da vida cotidiana. Conviver com a complexidade, a “desordem” e aprender a gerenciá-las nem sempre é uma tarefa simples. Nesse sentido, as análises socioantropológicas sobre a vida cotidiana estão mais atentas para as diferenciações, para os planos de referências, para a dinâmica e pluralidade das ações que constituem o cotidiano.
Deve-se enfatizar, contudo, que reconhecer a pluralidade no mundo não significa reduzir as análises socioantropológicas a meras descrições de práticas ou ações significantes. Para as “novas sociologias” é importante que o pesquisador conduza seu estudo em direção à articulação de teorias, à elaboração de conceitos e o traçado interrelações entre eles (a tarefa central de uma ciência). Um pressuposto metodológico fundamental dessas novas orientações teóricas é a de que o pesquisador, interessado na compreensão do mundo da vida cotidiana, esteja bem enraizado nos dados, na sustentabilidade empírica das conjeturas, e pense analiticamente a partir dos mesmos. Em outras palavras, são aportes analíticos que requerem do pesquisador um pensamento especulativo.
O presente artigo teve por objetivo geral discutir a pandemia pela perspectiva da prática social. Para isso, recorreu-se a perspectiva teórico-metodológicas das “novas sociologias”: um conjunto de teorias que parte do princípio de que as pessoas ordenam a “realidade” em maneiras diferentes. Ou seja, mais do que procurar responder à pergunta sobre o modo como se conhece o mundo (interrogação epistemológica por excelência), as “novas sociologias”. buscam esclarecer e explicitar a questão acerca dos distintos “modos de ser no mundo” de diferentes coletivos.
Nessa perspectiva, a pandemia não se reduz a uma entidade natural – “mórbida” - que se abate sobre a sociedade; uma substância evocada por um determinado “modelo explicativo abstrato” que nomeia a distribuição geográfica de uma determinada doença. Assim, em vez de enquadrá-la como uma entidade sobre a qual pode se formular diversos pontos de vista, a ideia de pandemia depende do ambiente onde a ela está situada. É configurada de acordo com o espaço onde se formula o questionamento; se constitui como algo que é feito na prática e de práticas, na sua materialidade, nas associações que os atores realizam em situações dadas, concretas. É justamente por estar necessariamente enraizada no mundo, que a pandemia adquire significação. Não aparece, portanto, como uma entidade isolada, mas dentro de um horizonte de projetos e trajetórias humanas.
Nesse sentido, é impossível encontrar um sistema integrado de significados que defina a pandemia uma vez por todas. Não há uma só versão da pandemia: ela é múltipla. O que não significa dizer que seja plural ou relativista. As diferentes versões da pandemia são feitas em espaços e tempos específicos nos quais os atores estão vinculados. Nessa perspectiva, parafraseando Annemarie Mol, uma pesquisa sobre pandemia não pode mapear um campo total, inteiro, sobre o qual podemos contar tudo.
Em vez disso, a pesquisa praxiográfica se assemelha a seguir uma trilha ou um caminho. Como pesquisadora, posso estar presente em um momento e depois em outro e me perguntar como estão vinculados. Da mesma forma, posso fazer perguntas em um lugar e depois em outro e pensar em que tipo de vínculos podem existir entre os dois lugares. (Mol, 2018: 298)
Assim, é importante estar mais atentos para a comparação entre diferentes linhas de condutas, diferentes processos pelos quais os atores elaboram as situações que compõem o mundo de todos, a vida cotidiana. Comparações que ultrapassam o plano da mera descrição (por mais acurada ou sistemática que seja) para que possam ser conceitualmente elaborados a partir dos dados, a partir de sólida investigação empírica.
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1 Doutor em Sociologia. Professor titular do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia.