por Nádia Xavier Moreira
Escola Superior de Defesa
https://orcid.org/0000-0001-7533-4636
nadiaxmoreira@yahoo.com.br
RESUMEN
El discurso ocupa un lugar relevante dentro de las prácticas sociales, las cuales están impregnadas de creencias e ideologías. Es una forma de acción, identificación y representación. En un entorno androcéntrico por excelencia, como la institución militar, nos instiga a investigar cuáles son las representaciones sobre las mujeres militares. Es importante destacar que los rangos militares (conocidos como “patentes”) no presentan una marca genérica para el femenino, así que la mujer militar es denominada sargento, teniente primero, capitán, mayor, etc. Vale la pena señalar que el lenguaje, visto desde el prisma del Análisis del Discurso Crítico (ADC), no es solo una herramienta que reproduce las relaciones de poder asimétricas, sino, sobre todo, un recurso (o un arma) que puede cuestionar, deslegitimar tales relaciones o incluso empoderar a grupos sociales marginados. . Desde esta perspectiva, este trabajo tiene como objetivo analizar, en documentos del Ejército Brasileño que se refieren a la presencia femenina en este entorno, cuáles son las representaciones de las mujeres militares a la luz del ADC y áreas del conocimiento con las que dialoga. Para el análisis situado de textos, utilizamos categorías analíticas del ADC y, de manera más sutil, de la Lingüística Sistémico-Funcional (LSF). Los resultados apuntan a discursos legitimadores del poder masculino.
Palabras clave: discurso, institución militar, mujer militar, Ejército Brasileño, género.
RESUMO
O discurso ocupa um lugar relevante dentro das práticas sociais, as quais estão eivadas de crenças e ideologias. É uma forma de ação, identificação e representação. Em um ambiente androcêntrico por excelência, como a instituição militar, instiga-nos investigar quais são as representações sobre as mulheres militares. Importa destacar que os postos militares (conhecidos como “patentes”) não apresentam marcação genérica para o feminino, assim, a mulher militar é denominada sargento, primeiro-tenente, capitão, major etc. Vale ressaltar que a linguagem, vista sob o prisma da Análise de Discurso Crítica (ADC), não é somente ferramenta que reproduz as relações de poder assimétricas, mas, sobretudo, um recurso (ou uma arma) que pode questionar, deslegitimar tais relações ou até empoderar grupos sociais alijados. Nessa perspectiva, esse trabalho tem por objetivo analisar, em documentos do Exército Brasileiro que se referem à presença feminina nesse ambiente, quais são as representações das mulheres militares à luz da ADC e áreas do conhecimento com as quais dialoga. Para a análise situada de textos, utilizamos categorias analíticas da ADC e mais sutilmente da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF). Os resultados apontam para discursos legitimadores do poder masculino.
Palavras-chave: discurso, instituição militar; mulher militar; Exército Brasileiro; gênero.
Language and the representations of the military women
Discourse occupies a relevant place within social practices, which are imbued with beliefs and ideologies. It is a form of action, identification, and representation. In an inherently androcentric environment, such as the military institution, it leader us to investigate what representations exist about military women. It is important to note that military ranks (known as “patents”) do not have a generic marking for females, so the military woman is referred to as sergeant, first lieutenant, captain, major, etc. It is worth mentioning that language, viewed through the prism of Critical Discourse Analysis (CDA), is not only a tool that reproduces asymmetrical power relations but, above all, a resource (or a weapon) that can question, delegitimize such relations, or even empower marginalized social groups. From this perspective, this work aims to analyze, in documents of the Brazilian Army referring to the female presence in this environment, what representations of military women are in light of CDA and areas of knowledge with which it dialogues. For the situated analysis of texts, we use analytical categories of CDA and, more subtly, Systemic Functional Linguistics (SFL). The results point to discourses legitimizing male power.
Keywords: discourse, military institution, military woman, Brazilian Army, gender.
RECIBIDO: 19 de febrero de 2024
ACEPTADO: 01 de junio de 2024
CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO: Xavier Moreira, N. (2024). Linguagem e as representações da mulher militar. Etnografías Contemporáneas, 10 (18), 230-247.
Os que fizeram e compilaram as leis, por serem homens, favoreceram seu próprio sexo, e os jurisconsultos transformaram as leis em princípios”, diz ainda Poulain de Ia Barre. Legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios empenharam-se em demonstrar que a condição subordinada da mulher era desejada no céu e proveitosa à terra.
simone de beauvoir
As instituições militares são espaços tradicionalmente representativos do androcentrismo, nos quais “a força de ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação” (Bourdieu, 2002, p. 8). Em outras palavras, o domínio masculino é tão naturalizado, que independe de discursos para legitimá-lo. Isso significa que esse domínio traduz uma visão que se impõe como neutra e natural de maneira que ela parece inquestionável. Nessa perspectiva, o Exército Brasileiro, lócus desse estudo, é essencialmente uma instituição cujas regras de funcionamento foram/são feitas pelos homens e para estes.
Por outro lado, as mulheres conseguiram chegar aos mais variados campos profissionais, portanto penetraram esse outrora reduto exclusivamente masculino. A participação feminina em atividades bélicas é antiga. Caire (2002, p. 18) observa que já “na Idade Média, os exércitos reais transbordavam de mulheres”, no entanto, depois dos conflitos, elas eram rejeitadas, excluídas ou, às vezes, limitadas a funções subalternas ou de menor responsabilidade”. Tal fenômeno também foi narrado por Svetlana Aleksiévitic (2016) em sua obra “A guerra não tem rosto de mulher” que versa, através de testemunhos, sobre a participação de mulheres soviéticas na Segunda Guerra Mundial.
Importa destacar que, no ambiente militar, calcado pelos pilares hierarquia e disciplina, a divisão social das tarefas é feita baseada nos postos/graduações1 e de acordo com a especialidade dos/as militares. Vale destacar que na cultura organizacional das Forças Armadas há diferenças marcantes determinadas pelo binômio hierarquia/disciplina entre o pessoal militar do quadro de praças (soldado, cabo, sargento, subtenente, no caso do EB) e do quadro de oficiais (tenente, capitão, major, tenente-coronel, coronel e general).
Para Huntington (1996, p. 172), “a oficialidade é o elemento dirigente ativo da estrutura militar e é o responsável pela segurança militar na sociedade”, já a praça constitui em elo entre o comando e a tropa, o que significa dizer que não exerce função dirigente e, sim, de comando de tropa, e está em contato direto com o extrato mais baixo da hierarquia militar.
Leiner (1997) afirma que a diferença básica entre o grupo de oficiais e o de praças encontra-se relacionada na relação de comando e obediência, haja vista que os primeiros são preparados nas academias militares para funções de comando na administração da violência, enquanto a praça é treinada para executar as ordens do oficial. Dessa forma, teoricamente, a função que uma pessoa desempenhará dentro de uma organização militar (quartel) depende da posição que esta ocupa dentro da hierarquia, observada sua especialização, e não do fato de ser homem ou mulher.
Nesse contexto, pode parecer que, uma vez que as tarefas são determinadas pelo posto/graduação, pessoas do sexo masculino e feminino que ocupam o mesmo posto (um capitão e uma capitão, por exemplo) teriam as mesmas atribuições, isto é, fariam o mesmo trabalho. Todavia, a divisão social dos trabalhos existe, ainda que para militares com a mesma especialidade, mas de sexos diferentes.
É válido ressaltar que relações sociais assimétricas são, constantemente, sustentadas discursivamente. Ao mesmo tempo em que o discurso ocupa um lugar relevante dentro das práticas sociais, as quais estão eivadas de crenças e ideologias (Chouliaraki e Fairclough, 1999; Fairclough, 2003), este se presta ao papel de questionar a naturalidade como tais relações são apresentadas. Portanto, interessa-nos investigar, sob o prisma da ADC, o funcionamento/uso da linguagem. Dito de outra forma, ensejamos pesquisar a linguagem/discurso referente à presença de militares mulheres e verificar seu uso, se ferramenta para manutenção da naturalização de diferenças, ou se crítico, como artifício para a promoção de mudanças.
Nesse contexto, o estudo teve por objetivo analisar, em documentos do Exército Brasileiro que se referem à presença feminina nesse ambiente, quais são as representações das mulheres militares. O arcabouço teórico-metodológico utilizado é o da ADC e das Ciências Sociais. Para a análise situada dos textos, utilizamos categorias analíticas da ADC e da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF). Para isso, arrolamos o material analisado, a saber:
Para a exposição dos argumentos, este artigo versará inicialmente sobre a instituição militar, suas características culturais essenciais, sua finalidade e o seu ambiente organizacional. Em seguida, será apresentado um pequeno histórico sobre a inserção feminina nas Forças Armadas, especialmente no Exército Brasileiro e, por fim, serão feitas as análises documentais concomitantemente com a apresentação dos aspectos teóricos que balizam este trabalho.
As Forças Armadas são instituições permanentes e regulares, estruturadas com base na hierarquia e disciplina (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). Em sentido weberiano, são instrumentos para aplicação da violência legítima, monopólio pertencente ao Estado. Possuem uma estrutura complexa e um ethos próprio, tradicionalmente calcado em valores e decisões androcêntricas, voltadas para o seu objetivo fim: o poder de fogo e o uso da violência autorizada legalmente para a defesa da soberania e dos interesses de um Estado-Nação.
Em pesquisa pioneira realizada, a partir de uma etnografia com cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), Castro (2004) identifica que o indivíduo, ao fazer parte de uma organização militar, desde o primeiro momento da estada em regime de internato, é submetido a uma bateria de rituais expiatórios, treinamentos físicos e repetição, cuja principal função é forjar a construção de uma nova pessoa, de um novo “eu”, o militar, com qualidades distintas do “civil” (ou “paisanos”), cuja identidade é reconhecida a partir da ideia de pertencimento a um “mundo de dentro” (o meio ou mundo militar) em contraposição ao “lá fora” (meio ou mundo civil).
Um dos conceitos comumente utilizados por pesquisadores da área militar para dar conta desta característica institucional é sua classificação como instituição total. Goffman (2010, p.11) designa como instituição total “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada”.
Para o autor, as instituições totais promovem a ruptura das barreiras que separam os atos de trabalhar, dormir e brincar, comuns ao cotidiano da maior parte das pessoas, de maneira que essas atividades passam a acontecer sempre na companhia de outras pessoas, de acordo com um controle formal de horários e procedimentos, segundo o plano racional da instituição. Goffman (2010) inclui quartéis e academias militares como exemplos de instituições totais. Ao longo de toda a obra, o autor torna repetidas vezes a fazer referências diretas a casos militares de instituições totais. Janowitz também traz elementos para refletir o caráter totalizante das instituições castrenses. Segundo o autor (1967, p. 177), “a íntima solidariedade social [...] baseia-se num fato ocupacional peculiar. A separação entre local de trabalho e de residência, característica das ocupações urbanas, não existe.”
Estudos (Castro, 2004; Leiner 2008, 2009) apontam que as relações sociais no campo militar são norteadas, principalmente, por duas categorias centrais a hierarquia e a disciplina. Ambas possuem uma relação de interdependência e são reconhecidas pela própria organização como pilares da instituição militar. Ao serem incorporadas, tais categorias operam uma lógica de interdependência que se completa ao serem exteriorizadas por meio de práticas cotidianas do campo, caracterizando a dinâmica do habitus militar.
Para Leirner (1997), a hierarquia constitui, nas organizações militares, elemento-chave para compreensão da sua mentalidade, separação entre mundo castrense e o mundo civil e para se entender a distinção entre quem é ou não militar. A disciplina norteia as condutas individuais e coletivas no campo militar; é princípio primeiro da divisão social de tarefas, papéis e status no interior das FA; determina condutas e estrutura relações de mando e obediência.
A hierarquia no meio militar não é um sistema piramidal, como pensa o senso comum, mas um princípio segmentador, não somente entre patentes, mas de pessoa a pessoa, isto é, “cada indivíduo aparece em um lugar singular da cadeia, duas pessoas jamais estão na mesma posição, sempre há alguém que comanda e alguém que obedece imediatamente ‘antes’ e ‘depois’ de cada um. Quando a cadeia de comando ‘se move’, por exemplo na época de promoção, seus indivíduos movem-se juntos, trocando de posto (Leirner, 1997, p. 56).
Portanto, todos os integrantes militares de uma instituição possuem um “lugar” na hierarquia militar, ou seja, não há a hipótese de dois indivíduos se equipararem hierarquicamente, pois há uma ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da instituição, realizada por postos ou graduações, conforme se trate, respectivamente, de oficiais ou de subtenentes, sargentos, cabos e soldados.
Essa estrutura hierárquica se sustenta na disciplina, ou seja, sem um rígido sistema disciplinar, a hierarquia não se mantém. A disciplina assegura a hierarquia, visto que todos os códigos de classificação e equivalência dispostos pela hierarquia para situar os indivíduos dentro de um lugar específico no campo militar – que pressupõe igualmente um comportamento específico (submisso ou autoritário) – somente se efetivam a partir de um corpo disciplinado.
Como um tipo de poder, e, simultaneamente, uma modalidade para o seu exercício, a disciplina compreende um conjunto de instrumentos, técnicas, procedimentos, níveis de aplicação, agentes e pacientes. A disciplina é uma física ou uma anatomia de poder, uma tecnologia (Foucault, 1987). Para o autor, a disciplina nasce como a arte do corpo humano, a fim de deixá-lo mais dócil para torná-lo mais obediente, quanto mais útil. Denomina como disciplinas os métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, os quais realizam a sujeição constante das suas forças e lhe impõem uma relação de docilidade-utilidade.
Fortemente androcêntrica, composta por, aproximadamente, apenas 6,2% de mulheres em seus quadros e círculos hierárquicos, a instituição militar Exército Brasileiro possui uma estrutura complexa. De forma resumida, podemos considerar que essa instituição possui uma estrutura de combate e uma administrativa que dá suporte ao combate e atende os recursos humanos. Também, funcionando concomitantemente, existe uma estrutura de ensino e outra de formação de reservista para compor a reserva mobilizável.
Apesar de demonstrar características de fechamento social, não é possível considerar a instituição como um bloco monolítico completamente homogêneo, onde todos os seus integrantes opinam e decidem sobre questões que definem os rumos organizacionais. Tal característica não se aplica às instituições que se sustentam na hierarquia e disciplina. Nestas, as diretrizes institucionais são decididas pelas instâncias superiores compostas por oficiais-generais, que contam com a assessoria de oficiais superiores, preferencialmente pertencentes ao quadro do Estado-Maior; os demais, em última instância, são executores das ordens emanadas do escalão superior.
É nesse contexto organizacional, com as particularidades que caracterizam uma organização militar, tais como os pilares da hierarquia e da disciplina, o androcentrismo e as tendências de fechamento social, que as mulheres estão “inseridas”.
A participação de algumas mulheres brasileiras em combate remonta o século XIX. Dentre as mais conhecidas, a atuação de Maria Quitéria de Jesus, considerada a primeira mulher a assentar praça em uma Unidade Militar, nas lutas pela independência do Brasil. Na Guerra do Paraguai, tivemos a participação de vivandeiras2 que acompanhavam a tropa (Caire, 2002) e, em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, o ingresso oficial de mulheres enfermeiras no Exército Brasileiro. Houve a participação de 73 (setenta e três) enfermeiras, voluntárias e integrantes do serviço ativo, que ganharam patente de oficial, mas ao término do conflito foram licenciadas do serviço ativo militar.
Conforme pontua a General Valèrie, no prefácio de Caire (2002), ao longo da história as mulheres foram facilmente aceitas em tempos de guerra, porém, depois de celebrada a paz, foram rejeitadas ou, quando muito, limitadas a funções subalternas ou de menor responsabilidade.
Segundo Lombardi (2009), a feminização, no âmbito do trabalho, constitui no processo de inserção e ampliação da presença das mulheres em ambientes de trabalho e profissões hegemonicamente masculinos. Para a autora, a perspectiva teórica subjacente à categoria analítica feminização sugere o estudo das mudanças nas relações sociais entre os sexos, nas identidades e representações profissionais e transformações institucionais de várias ordens, que costumam acompanhar a integração em profissões tradicionalmente masculinas.
O processo de feminização das FA brasileiras foi iniciado na Marinha em 1980 com a concepção do Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha (CAFRM), de acesso limitado a alguns cargos e ao serviço em terra (Marinha DO Brasil, 2015), expandindo-se a seguir pelas demais forças. Para Lombardi (2009), a seleção da primeira turma de mulheres oficiais, em 1981, esteve também relacionada à necessidade de suprir de mão de obra especializada o Hospital Naval Marcílio Dias (HNMD), criado também em 1980.
Foge aos objetivos deste estudo a análise das condições político-institucionais que proporcionaram condições favoráveis à presença feminina nas FA. Estudos que já trataram desta questão (Almeida, 2008; Lombardi, 2009) apontam que o objetivo da inserção da mulher nas FA e, especificamente na Marinha, encontra-se relacionado ao suprimento de recursos humanos, necessários à substituição e “recomplemento” de funções técnicas e administrativas, desenvolvidas por praças e oficiais em terra, deslocando-os para setores operativos.
Acrescenta-se a isto a conveniência do ato, face à sua abrangência social, contribuindo para a modernização e humanização da imagem da instituição, desgastada após anos de regime militar. Esta análise é corroborada por Mathias (2009), segundo o qual, a incorporação das mulheres nas FA, feita ao final dos regimes autoritários, teve como um dos seus propósitos sinalizar, tanto para o público interno quanto para o externo, a presença feminina nos quartéis como uma barreira para abusos cometidos por seus pares ao longo do autoritarismo e de humanização do ambiente, dado o arbitrário cultural de que são as mulheres “maternais, meigas e frágeis por definição”. (Mathias, 2009, p. 47).
Na Aeronáutica, as mulheres ingressaram em 1982, com a criação de quadros femininos de oficiais e praças. Em 1995, foram aceitas na Academia da Força Aérea nos Quadros de Oficiais Intendentes e, oito anos depois, em 2003, no Curso de Formação de Oficiais Aviadores, reduto, até então, exclusivo de homens. Hoje, conforme informações obtidas na página oficial da Força Aérea, existem 40 mulheres oficialas e aspirantes aviadoras que podem voar em todos os tipos de aeronaves, como caças, helicópteros e aviões de transporte.
No Exército, a primeira turma mista, com 49 mulheres, foi matriculada em 1992, na então Escola de Administração do Exército (EsAEx), selecionada por meio de concurso público. Em 1997, o Instituto Militar de Engenharia (IME) matriculou a primeira turma de 10 (dez) alunas para compor o Quadro de Engenheiros Militares. No mesmo ano, a Escola de Saúde do Exército (EsSEx) matriculou e formou a primeira turma de oficialas médicas, dentistas, farmacêuticas, veterinárias e enfermeiras de nível superior, para o Quadro de Saúde do Exército. No ano de 2001, foi criado o Curso de Formação de Sargentos de Saúde, na área de Auxiliar de Enfermagem para a formação de mulheres praças.
Urge esclarecer que há duas modalidades de inserção da mulher nas Forças Armadas como militar: para a prestação de serviço temporário3 e para o serviço definitivo (de carreira). Também, para os quadros combatentes e não combatentes.
No Exército brasileiro, objeto do presente estudo, as mulheres foram aceitas em 1992 para integrar um quadro administrativo, o Quadro Complementar de Oficiais (QCO), como oficialas de carreira, em áreas como economia, administração, direito, informática, magistério, pedagogia etc.
Em agosto de 2012, a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, sancionou a Lei nº 12.705/2012, na qual dispôs que “o ingresso na linha militar bélica de ensino permitido a candidatos do sexo feminino deverá ser viabilizado em até 5 (cinco) anos a contar da data de publicação desta Lei” (Lei 12.705 de 2012). Visando atender à legislação, em 2016, o Exército abriu edital para o ingresso de mulheres na área bélica. O curso para formar a oficial combatente foi realizado na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), que preparou as oficialas para o ingresso na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), escola responsável pela formação do oficial de carreira das Armas (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações), do Serviço de Intendência e do Quadro de Material Bélico. Para a formação de sargento combatente, por sua vez, o curso é realizado na Organização Militar Corpo de Tropa e na Escola de Sargentos de Logística (EsSLog), responsável pelos cursos de Formação e Aperfeiçoamento de Sargentos de Material Bélico, Intendência, Topografia, Manutenção de Comunicações, Música e Saúde.
A Marinha e a Aeronáutica já contam com mulheres em seus quadros bélicos. O pioneirismo ficou com a Força Aérea quando aceitou o ingresso de mulheres na Academia da Força Aérea em 1995, no Quadro de Oficiais Intendentes, e, oito anos depois, no Curso de Formação de Oficiais Aviadores. A Força Naval admitiu mulher na Escola Naval em 2014, destinando 12 vagas para o Corpo de Intendentes da Marinha. Atualmente, no Exército, a mulher pode ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras, por imposição do artigo 7º da Lei 12.705, de 8 de agosto de 2012, no Quadro de Material Bélico, no Serviço de Intendência e, a partir do ano 2025, na arma de Comunicações.
Ao percebermos que após a admissão de mulheres nas Forças Armadas brasileiras seu trabalho ficou restrito durante um período considerável a funções administrativas, retomamos o conceito de Divisão Sexual do Trabalho e a necessidade de manter a mulher no meio privado, sendo o local público, –de combate– o lugar do homem. A questão do valor do trabalho feminino – ou do feminino em si - também está fortemente inserida nas Forças Armadas Brasileiras por três dinâmicas (Silva, 2008, pp. 12-17), a saber: o fato de “ser mulher” se sobrepõe ao “ser militar”; a mulher se aproxima mais da realidade militar quando se parece com um homem; e a identificação, por mulheres, do militarismo como um lugar masculino simultaneamente ao reconhecimento de que comportamentos femininos podem trazer mudanças positivas.
Nas esteiras desse debate, Vermeij (2020), que estudou mulheres militares em operações de paz, aponta que essas últimas continuam a enfrentar tabus e estigmas que são barreiras para sua inclusão nesse tipo de operação e nas Forças Armadas. Destaca que tais tabus e estigmas são bastantes semelhantes, independentemente de sua nacionalidade, patente ou religião, estando ligados a fatores culturais, profissionais e pessoais. Para a autora, muitas militares sentem que são tratadas como mulheres primeiro e soldadas em segundo lugar; são vistas como mais fracas e necessitadas de proteção. Além disso, há uma tendência de colocá-las em papéis “tradicionalmente femininos” relacionados ao gênero e à proteção, independentemente de suas qualificações.
Dados apresentados pelo Comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, em palestra na Escola Superior de Defesa, em abril de 2023, apontavam que o efetivo de militares do Exército Brasileiro era de aproximadamente 213.217 mil, dentre os quais 13.319 mil seriam mulheres, o que representava um percentual de 6,2% do universo da força. Um aspecto importante a considerar é o círculo hierárquico no qual a mulher se inseria, haja vista que ela ainda não ocupava, na instituição, o posto de oficial-general, restringem-na, portanto, das maiores possibilidades de disputa e ascensão no campo militar.
O quadro abaixo ilustra os principais postos e graduações existentes no Exército Brasileiro.
Quadro 1. Principais postos e graduações do Exército
Fonte: manual O Exército Brasileiro – EB20-MF-10.101.
Carreiras (2004) ao analisar as mulheres em locais ocupados por homens, a exemplo das instituições militares, invoca o conceito de token no qual um grupo é subrepresentado quando há menos de 15% do total. Por serem vistos muito mais como representações minoritárias do que indivíduos propriamente profissionais, tal aspecto finda por ocasionar sentimentos negativos nas relações laborais como “pressões no desempenho devido à sua elevada visibilidade, isolamento social resultante do exagero da sua diferença pelo grupo dominante e, ainda [...], um processo de estereotipização, assimilação da pessoa ao papel que desempenha” (Carreiras, 2004, p. 94).
Outro aspecto a destacar é sobre a formação em turmas mistas. Durante o curso, as mulheres recebem a mesma instrução militar, participam de marchas, acampamentos, exercícios de tiro e manobras logísticas. Não há um quadro exclusivo feminino, pois a mulher passou a integrar quadros profissionais anteriormente ocupados por homens, a desempenhar funções e a atender demandas idênticas aos militares do sexo masculino.
Tal questão remete aos dilemas tratados por Woodward e Winter (2006) em sua análise das políticas de igualdade de oportunidades e de gestão da diversidade no Exército Britânico. Pois, se por um lado a atividade principal dos Exército, o combate e as exigência operacionais dela decorrentes, é definida em termos de uma eficácia que exalta o masculino e é desempenhada num contexto de uma cultura mais ampla resistente à inclusão de mulher, tornando a presença de mulheres fundamentalmente desafiadora em um nível cultural/simbólico; por outro, essa instituição deve também refletir os valores da sociedade nacional em cujo nome vai à guerra.
E nesse sentido, como apontado por Masson (2020), abraçar a diferença, para as FA, requer fundamentalmente uma ‘reconceptualização’ do próprio caráter das organizações militares. Entendendo que modelo de “militar masculino absolutamente disponível” à instituição não constitui um padrão neutro, mas generificado, instaurado “durante la profesionalización del Ejército sobre la base de excluir a las mujeres del combate y relegarlas al ámbito doméstico. Se trata entonces de repensar y actualizar la lógica institucional en base a las identificaciones y roles de género que ameritan ser redefinidos.” (Masson, 2020, p. 319).
Nesta seção, serão analisados documentos que fazem referência à presença feminina no Exército Brasileiro, a saber: a) Portaria do Comandante do Exército nº 1.798, de 20 de julho de 2022, que aprova o Regulamento da Escola de Saúde e Formação Complementar do Exército (EB10-R05.007); b) Portaria nº 1.424, de 8 de outubro de 2015, que aprova o Regulamento de Uniformes do Exército (EB10-R-12.004); c) Lei nº 7.821, de 2 de outubro de 1989, que cria o Quadro Complementar de Oficiais do Exército (QCO).
Antes disso, porém, é necessário inserir os contornos da teoria na qual este trabalho está ancorado: a ADC. Esta apresenta uma concepção de linguagem vista como parte da vida social interconectada dialeticamente a outros momentos (Chouliaraki & Fairclough, 1999). Isso pressupõe a existência de uma ligação dialética entre linguagem e sociedade, uma é parte da outra, pois a interação com as outras pessoas que são parte da sociedade é feita por meio do discurso. Sendo assim, o discurso é uma forma de inter-ação, representação e identificação. Nessa perspectiva, ter acesso a meios de produção e divulgação de discursos significa ter poder para disseminá-los e para naturalizar visões hegemônicas, ideologias, crenças, enfim, relações de poder.
Dentro de instituições militares, a produção de discursos é altamente controlada, a voz é sempre do chefe, que é o representante da instituição e não há muito espaço para discordâncias. Ressalte-se que uma das premissas do EB é a disciplina, valor que traduz não só a aceitação como também a pronta obediência às ordens superiores. Dessa forma, existe uma voz oficial institucional, que é a do comandante do Exército, a qual é veiculada nos meios de comunicação oficiais4. Toda a legislação que regula o funcionamento da instituição é assinada pelo comandante ou por alguém de confiança a quem a tarefa foi delegada. Por essa razão, analisamos aqui a “voz institucional”, isto é, como as mulheres são representadas institucionalmente pela Força Terrestre nos documentos mencionados.
A primeira observação a ser feita é sobre o slogan do Exército: Braço Forte, Mão Amiga. Essa designação já suscita reflexões acerca do uso da linguagem. Rosa (2007, p. 1) sabiamente analisa essa questão: metaforicamente, o braço representa a força, o poder bélico, ao passo que a mão amiga sugere a solidariedade. Sendo o braço um substantivo masculino e a mão um substantivo feminino, temos o reforço da crença da “noção de ações bélicas como algo masculino e de ações solidárias como algo feminino”. Assim, opera a reificação5 por meio da estratégia de naturalização (Thompson, 1995) no que diz respeito à divisão social do trabalho militar segundo a qual “o braço forte é conduzido exclusivamente por homens e a mão amiga também por mulheres”.
O primeiro documento, a Portaria do Comandante do Exército nº 1.798, de 20 de julho de 2022, que aprova o Regulamento da Escola de Saúde e Formação Complementar do Exército é relativamente curto, possui 106 artigos e estabelece os preceitos aplicáveis ao pessoal e aos diversos setores integrantes da Escola de Saúde e Formação Complementar do Exército (EsFCEx), estabelecimento responsável pela formação de oficiais (mulheres e homens) que irão integrar o Quadro de Saúde do Exército e o Quadro Complementar de Oficiais, composto por militares oriundos de várias especialidades, como Direito, Economia, Magistério, Psicologia, Pedagogia, Médico Veterinário, Informática, dentre outros. A análise mostrou-se pouco profícua, pois não foram encontradas referências ao segmento feminino. Logo no primeiro artigo, parágrafo único, há a seguinte explicação: “Para efeito de aplicação deste Regulamento, o termo “aluno” se refere ao integrante do corpo discente, tanto do sexo masculino quanto do feminino.” Porém, o que se constata ao longo do documento é que não há referências a qualquer palavra relativa ao gênero feminino. Não somente a palavra “aluna(s)” não aparece, mas todas as demais que poderiam constar, por exemplo candidata(as), oficiala, instrutora, professora, coordenadora etc. O regulamento nomeia todos/as os/as integrantes da Escola utilizando o gênero masculino. Portanto, os/as alunos/as são referidos/as como “aluno” (79 vezes) e os/as outros/as profissionais que trabalham na Escola, como “instrutores”, “monitores”, “professores”, “os conferencistas”, “diretor”, “o chefe”. É mais um exemplo do uso visto como neutro do masculino, o qual utiliza “os homens” para designar “os seres humanos” (Beauvoir, 1970). Assim, as mulheres tanto profissionais que integram a Escola quanto as alunas são obscurecidas, quase negadas, quase apagadas como se somente os homens fizessem parte da instituição de ensino.
Ademais, as raras ocorrências que se referem especificamente à mulher tratam de uma condição especificamente feminina que a levaria a trancar a matrícula ou a ser excluída: a gravidez. Dessa forma, o regulamento opera como instrumento de violência simbólica, reforçando o ideário e o discurso de que as Forças Armadas não são “lugar de mulher”.
A respeito do segundo documento de análise, a legislação que regula o uso de uniforme, existe a Portaria nº 1.424, de 8 de outubro de 2015, que estabelece como as militares devem apresentar-se, isto é, como devem vestir-se, como devem pentear-se, quais adornos podem utilizar no ambiente de trabalho. A análise da portaria também se mostrou pouco profícua, uma vez que está centrada nos cabelos, nas unhas, na maquiagem e nos acessórios previstos para as mulheres, ou seja, tudo o que extrapola a padronização do fardamento. Todavia, há na mesma Portaria, orientações para o segmento masculino e tanto em um caso como no outro, predominou o uso da modalidade deôntica6 (“Os integrantes do segmento masculino/as integrantes do segmento feminino “devem fazê-lo com especial esmero”, [...] deverão usá-los”, [...] pode fazer uso...”, o que indica suas obrigações/deveres, como ela/ele deve não somente se vestir, mas como usar os adereços e complementos à sua apresentação individual. O que chama a atenção nas orientações à militar é quando se refere ao cabelo volumoso “Sugere-se corte de cabelo com efeito dégradé na franja e um repicado geral, a fim de obter um visual mais compacto e de manter boa apresentação ao longo do dia de trabalho”, ou seja, para a militar, estar com “boa” apresentação durante todo o dia é fundamental para o exercício profissional, informação que não é mencionada quando se refere à apresentação masculina.
Conforme assinala Beauvoir (1970), um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na humanidade, pois ele representa o positivo e o neutro. Da mesma forma, uma instituição tradicional e historicamente masculina não tem um documento para regular detalhes da apresentação individual masculina. Regular o uso discreto de adereços por mulheres em um ambiente outrora exclusivamente masculino pode parecer normal, todavia por que isso também não é feito em relação aos homens? O nível de detalhe contido na Portaria que regula a apresentação individual feminina difere das orientações relativas aos homens militares.
Chega ao limite de estabelecer uma paleta de cores possíveis para o esmalte a ser usado e orientações sobre o tipo de maquiagem para cada situação ou atividade, o que deixa subentendido que não é necessário tanto esforço e detalhes na orientação aos homens, mas, para as militares, há um rigor que sugere que elas não sabem se portar adequadamente para o trabalho. Tal documento funciona, portanto, como reforço da suposta condição de “o outro” atribuída à mulher, isto é, uma espécie de estrangeiro que precisa ser orientado nos mínimos detalhes para aprender a se comportar visualmente no ambiente de trabalho predominantemente masculino. Isso remete ao modo de operação fragmentação, que consiste em separar, segregar grupos, diferenciando-os (Thompson, 1995), e à estratégia de construção simbólica chamada diferenciação.7
Todavia há de se considerar em torno dessa questão que cada sociedade, revestida de seu sistema cultural, impõe ao indivíduo um uso rigorosamente sobre o corpo determinando-o (Boltanski, 2004; Le Betron, 2012). O sistema social gesta seus próprios padrões de corpo, constrói as particularidades deste último, bem como reforça os atributos que julga mais necessários para ele em detrimento de outros. Logo, “as representações do corpo, e os saberes que as alcançam, são tributárias de um estado social, de uma visão de mundo, e, no interior desta última, de uma definição de pessoa. O corpo é uma construção simbólica, não uma realidade em si” (Le Betron, 2012, p. 18).
Nas esteiras desse debate, vale observar na análise do processo da socialização militar a presença de uma pedagogia do corpo. O corpo do militar, sua hexis corporal, está fortemente investido em sua relação com o mundo, obrigando-o a sofrer modificações em favor desta relação. Militares aprendem pelo corpo, o que inclui uma maneira de andar, falar, vestir, de se dirigir a outras pessoas e de cortar ou apresentar o cabelo. E nesse último aspecto, o estudo de Sirimarco (2011) que analisou o processo de marcação dos corpos daqueles que se iniciavam na profissão de policial militar, tomando como ponto central as prescrições relativas ao uso do cabelo, indicou que tais prescrições guardam estreita relação com o período de separação da vida civil para a militar, no qual busca-se a transformação do status civil para o de policial, no qual os corpos civis são convertidos em corpos militares legítimos.
Os corpos militares constituem, portanto, expressão da ordem social da qual fazem parte, diferenciando-o dos civis, afinal atributos físicos (e comportamental) distinguem e tornam reconhecíveis militares mesmo quando não estão fardados, ou seja, mesmo quando destituídos da marca mais visível da corporação, mesmo fora do campo militar, dado que as disposições adquiridas pelo corpo, como parte do processo de socialização, são encarnadas no indivíduo de maneiras irremediáveis. O habitus militar, em muitas ocasiões, condicionará o corpo a assumir gestos, verbalizações e movimentações, exteriorizados de modo inconsciente, que escapam ao controle do próprio sujeito.
No que concerne ao terceiro documento, a lei que cria o QCO, observa-se também que é curto, são apenas três páginas. É importante ressaltar que o QCO foi o quadro que possibilitou a entrada efetiva de mulheres no Exército para desempenhar funções administrativas. No entanto, no documento também não aparecem palavras como “mulher”, “a militar”, “segmento feminino”. Todas as referências aos/às integrantes são masculinas: “Poderão ingressar no QCO os militares da ativa e da reserva não remunerada das Forças Armadas e os civis [...], porém as militares e as civis também podem ingressar. Dentre os requisitos para ingresso no QCO, figuram os seguintes: “ser brasileiro nato”; “ser julgado apto [...]”; “quando se tratar de militar, o candidato [...]”. A única referência às mulheres é feita também no masculino: “Tendo em vista a necessidade das medidas de adaptação a serem implementadas pela Administração do Exército, o regulamento disporá sobre a admissão de candidatos do sexo feminino [...]”. O documento que permitiu o ingresso das mulheres é inexoravelmente excludente em relação a elas, tratando-as como seres inexistentes. Quando, em uma única ocorrência, faz referência a estas, utiliza para isso substantivo masculino: “candidatos do sexo feminino”, o que parece estranho do ponto de linguístico-gramatical já que a língua prevê substantivo feminino correspondente para “candidatos” (candidatas). O resultado desse tipo de construção é o apagamento da existência feminina nas Forças Armadas.
Outra observação relevante do documento foi em relação aos nomes dos postos. Todos eles aparecem no masculino: primeiro-tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel. Isso significa que, depois de formadas, ao apresentar-se, a militar deve dizer “primeiro-tenente fulana de tal...”, anos depois, ela dirá: “capitão fulana de tal...” e assim sucessivamente. Existe a Lei nº 12.605, de 3 de abril de 2012, a qual determina o emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou grau em diplomas. Trata-se de uma medida simples que se refere à mulher utilizando especificamente seu gênero. Essa pode ser uma ideia a ser pensada e discutida no Exército tendo em vista que não demanda grandes esforços e ainda valorizaria as militares que o integram.
Por meio da análise inicial do slogan da instituição, foi possível verificar que o uso da linguagem, objeto desta investigação, prestou-se ao fim de naturalizar fenômenos que são, na verdade, construções sociais que dividem, apartam e segregam, isto é, categorizam as pessoas e as posicionam em grupos como se fossem dicotomias naturais. Afinal, a crença de que ao homem cabe a tarefa de proteger e à mulher, a tarefa de cuidar é, ainda atualmente, resquício da sociodiceia8 masculina (Bourdieu, 2002).
Em relação ao regulamento da EsFCEx, o qual permitiu o ingresso das mulheres por concurso nas fileiras do Exército, esperava-se que houvesse referências a estas e não houve. A explicação inicial reforça o posicionamento da desnecessária sinalização do feminino, o que reforça a legitimadora crença da superioridade masculina, sob a égide da biologização do social, segundo a qual “por mais afeminado e ‘fresco’ que seja um militar, ele continua sendo homem e, por mais ‘rústica’ que seja uma mulher militar, ela continua sendo uma mulher” (Rosa, 2007, p. 247).
Após análise do segundo documento, restou clara a diferenciação entre homens e mulheres militares na medida em as regras de apresentação individual para mulheres alcançam um nível de detalhe que se difere significativamente das orientações aos homens, sinalizando a necessidade de maior controle dos corpos e de sua apresentação, o que indica a presença feminina como o diferente, o exótico e se legitima o discurso da instituição como lugar natural de homens.
Ao analisar o terceiro documento, percebeu-se que a linguagem (ou o discurso) só serviu para manter e reforçar relações de poder assimétricas. Como salientado, na língua há previsão de substantivos femininos e eles existem justamente para serem utilizados. Todavia, faz-se necessário que dentro da instituição essas discussões façam parte da agenda. As desigualdades persistem, a divisão sexual das tarefas serve como exemplo de práticas discriminatórias.
O Exército Brasileiro é uma instituição secular, mas que não precisa ficar presa ao passado. Não almejamos discutir os pilares da instituição, pois concordamos que hierarquia e disciplina são os valores inquestionáveis e que resultam em um trabalho tão eficiente quanto sério. Também pensamos que a entrada das mulheres é recente e a instituição está aprendendo a conviver com isso. Então, estamos no início de um período em busca de relações marcadas por mais respeito e menos discriminação, no qual as mulheres possam participar de comissões e funções diversas e suas vozes sejam levadas em consideração.
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1 Postos/graduações são conhecidos como “patentes”. Estes designam a posição do/a militar em uma sequência hierárquica.
2 Vivandeiras: originalmente eram mercadores (vivandiers), comerciantes de bebidas e de víveres, padeiros e açougueiros que acompanhavam os exércitos, juntamente com suas esposas, que acabaram assumindo a função (Caire, 2002).
3 Contrato temporário de trabalho, podendo ser renovado a cada ano por até oito anos.
4 O Centro de Comunicação Social do Exército (CComSEx) e a Rádio Verde-Oliva são exemplos de meios de comunicação oficiais do EB.
5 Thompson (19995) apresenta modos de operação da ideologia, isto é, formas de representação que sustentam ideologias de grupos dominantes. Tais modus operandi funcionam por meio de estratégia típicas de construção simbólica. Para cada modo de operação da ideologia, Thompson apresenta estratégias correspondentes. No caso da reificação, que consiste em apresentar uma situação transitória como natural e permanente, as estratégias são a) naturalização, que apresenta uma construção social ou histórica como um acontecimento natural, b) eternalização, que consiste em apresentar fenômenos sócio-históricos como permanentes, c) nominalização/passivização, quando se concentra atenção em certos temas em detrimento de outros e, assim, os atores são apagados.
6 Conforme Fairclough (2003), as declarações de modalidade deôntica indicam, de modo autoritário, acerca do que é, do que será e do que deveria ser, isto é, ligam-se ao caráter de obrigação.
7 Thompson (1995) apresenta modos de operação da ideologia, isto é, forma de representação que sustentam ideologias de grupos dominantes. Entre os diversos modus operandi está a fragmentação, que consiste na segmentação de indivíduos que possam representar ameaça ao grupo dominante. Entre as estratégias de construção simbólica estão a diferenciação (ênfase em características que desunem, separam e enfraquece) e o expurgo do outro (construção simbólica do outro como uma espécie de inimigo, alguém que ameaça o grupo dominante).
8 Sociodiceia é uma narrativa popular que serve para legitimar uma crença. Bourdieu (2002) propõe que a sociodiceia masculina consegue atingir dois objetivos ao mesmo tempo: legitimar uma relação de dominação, justificando-a por meio de sua natureza biológica, quando ela é, de fato, uma construção social naturalizada.