Cosmologia emergente ou humanismo em expansão?
Animais e cidadania no Brasil contemporâneo
Por Bernardo Lewgoy1 y Caetano Sordi2
A existência de um hiato entre a esfera abstrata dos direitos, como construção teórica, e a aplicação dos mesmos por instituições da vida social tem sido objeto clássico da antropologia do direito e da política, bem como uma constante especulativa da filosofia moral. Neste sentido, o presente artigo visa ilustrar o caráter polissêmico - e muitas vezes contraditório - dos direitos animais, para além das pretensões de universalidade e unidade programáticas contidas em alguns dos seus pressupostos normativos mais radicais.
Como costuma ocorrer no campo dos direitos humanos (Wilson, 1997; Ericksen, 2001; Goodale, 2006), há um espaço bastante amplo para a contradição entre princípios universais e práticas locais nos direitos animais, tanto no que tange à sua apropriação e efetivação pelos ordenamentos jurídicos e estatais, quanto no que concerne às práticas e percepções do conjunto social em geral. Desta maneira, se a humanidade contida na expressão “direitos humanos” ainda permanece em disputa, comportando uma série de declinações heteróclitas e localmente instanciadas (Fassin, 2010), nosso intuito é demonstrar que a animalidade dos direitos animais não está livre destas ambiguidades e contradições, sobretudo se considerarmos a(s) passagem(ns) entre teoria e prática envolvidas nesta moralidade emergente.
Expor estas contradições também nos auxilia a configurar melhor a abordagem antropológica sobre direitos dos animais em sociedades complexas. Tornou-se um lugar-comum afirmar que o surgimento destes direitos representa algum tipo de revolução na normatividade ocidental, como se eles significassem algum tipo de superação forte de dicotomias modernas como humanidade/animalidade, natureza/cultura, sujeito/objeto. Este é um argumento bem difundido entre a militância animalista e empregado com muita frequência por seus interlocutores acadêmicos, que poderia ser formulado da seguinte maneira: a atribuição de direitos aos animais nas sociedades modernas pavimenta o caminho para uma simetria inédita entre humanos e não humanos, aproximando-as, portanto, do modelo ético e cosmológico verificado em sociedades não ocidentais.
Contudo, na esteira alguns etnólogos e etnozoólogos contemporâneos (Descola, 1998; Digard, 1999, 2011), acreditamos ser necessária alguma prudência frente a afirmações deste tipo. Em um artigo sobre relações humano-animais na Amazônia indígena, Descola afirma que:
proteger os animais outorgando-lhes direitos – ou impondo deveres dos humanos para com eles – é apenas estender a uma nova classe de seres os princípios jurídicos que regem as pessoas, sem colocar em causa de maneira fundamental a separação moderna entre natureza e sociedade. (Descola,1998: 25, grifo nosso).
Em linhas gerais, tendemos a concordar com esta posição. Isto porque, dada uma gramática moral dos conflitos sociais há muito tempo estabelecida no ocidente moderno (Honneth, 2003), cremos que a emergência dos direitos animais não propõe uma novíssima gramática moral, mas sim uma derivação desta, o que pode ser classificado como um subconjunto específico seu, ou uma ampliação do seu escopo em direção a novos entes, isto é, algo como a criação da “gaveta” dos animais no grande “armário” dos direitos (Sordi, 2011). Posto isso, acreditamos que, antes de enveredarmos por caminhos pós-modernos atualmente em voga, talvez fosse mais interessante investigar de que forma velhos problemas da normatividade ocidental são reconfigurados no presente à luz destes direitos (agora também) animais.
A seguir, analisaremos dois casos distintos: (1) o reconhecimento jurídico de grandes símios como pessoas, a partir do dispositivo de habeas corpus; e (2) a proliferação de políticas públicas para animais de companhia em situação de abandono nas grandes cidades brasileiras.
Recentemente, causou furor nas redes sociais dedicadas à causa animal a notícia de que a Índia havia reconhecendo a pessoalidade jurídica dos golfinhos, concedendo-os direitos e prerrogativas legais3. Embora se trate de uma notável inovação jurídica, há de se recuperar a existência de alguns precedentes jurídicos brasileiros: os chimpanzés Suíça, Lili, Megh e Jimmy, todos eles, objeto de pedidos de habeas corpus na justiça comum. Há casos semelhantes em vários outros países, bem registrados pela imprensa internacional.
No artigo que é referência central no estudo antropológico da relação entre políticas de reconhecimento de direitos para os animais e dinâmicas internas da esfera jurídica concreta no Estado Brasileiro, Ciméa Bevilaqua (2011) analisa os meandros de alguns processos judiciais envolvendo chimpanzés: a partir dos casos de Lili e Megh, no Brasil e de Hiasl, na Áustria4. O texto de Ciméa mostra as oscilações e práticas dos tribunais, confrontados à pressão social pela criação de jurisprudências, ao mesmo tempo que suas fortes âncoras doutrinárias buscam patrulhar a ancestral dicotomia pétrea entre pessoas e coisas (não-pessoas) atribuindo personalidade, subjetividade, autonomia - como propriedades distintivas - apenas da pessoa humana. A autora evidencia como, no interior de uma disputa jurídica que envolve o estatuto dos animais, os atores em disputa transitam pragmática e retoricamente entre enunciados científicos, formais, reificantes ou personalizantes, conforme a doutrina ou o cálculo da eficácia jurídica do instrumento ou argumento usado na corte.
Uma de suas mais ricas contribuições à problematização do limite político e dogmático em interpretações sobre a dicotomia estrutural "pessoa/coisas" é oferecido quando a autora desconstrói os limites que, no campo do direito, reforçam e reproduzem esse Grande Divisor: “sugiro que um corolário da oposição jurídica entre pessoa e coisa é a homogeneização da diferença: há apenas um modo de diferir e, portanto, todas as formas (jurídicas) de existência devem se acomodar em um ou outro extremo desse grande divisor” (Bevilaqua, 2011: 65). Não temos a pretensão de oferecer uma interpretação alternativa à exploração de Bevilaqua, mas apenas ressaltar o estalar de emergências e a força das gramáticas morais, especialmente o potencial de contágio das chamadas "políticas de piedade" (Boltanski, 2004) nos agentes do campo do direito.
Esse foi o caso do chimpanzé Suíça, tida como mártir da causa dos direitos animais no mundo. O habeas corpus peticionado em 2005 a seu favor é considerado pelos ativistas da causa animal como um caso pioneiro e emblemático nos direitos dos Grandes Primatas5. Originário da Suíça, o chimpanzé passou por um criadouro e foi transferido ao Zoológico de Salvador (Bahia), onde vivia há 10 anos. Com a morte de seu companheiro, os promotores de meio ambiente Heron José de Santana e Lucino Rocha Santana, alegando más condições de vida do chimpanzé, impetraram um pedido de habeas corpus, sendo o mesmo liminarmente negado pelo juiz baiano Edmundo Cruz.
No entanto, o mesmo juiz pediu alguns dias de prazo, solicitando mais informações sobre o tema à direção de Biodiversidade da Secretaria de Meio Ambiente daquele Estado. Nesse ínterim, a chimpanzé veio a falecer. Em sua sentença, o juiz Edmundo Cruz admite a importância do debate sobre o assunto no meio jurídico -tendo confessado a ousadia de ter visitado o animal de forma anônima no zoológico como parte de seu processo de conhecimento sobre o caso-, mas não se pronuncia sobre o mérito do pedido, tendo extinto o mesmo pelo desaparecimento de seu objeto. Todavia, outra foi a versão dos promotores Heron Santana e dos ativistas do Projeto Grandes Primatas (principal fonte de enunciados e narrativas sobre o episódio) para quem não apenas o habeas corpus teria sido concedido, como teria sido a primeira vez em que “se reconhece os animais como sujeitos de uma relação jurídica com as pessoas” no Brasil. O interessante neste caso é que a sentença de fato proferida pelo juiz foi mais conservadora que do que tenta fazer crer a interpretação que os ativistas deram a ela: o mero aceno de simpatia expresso na sentença foi propalada pelos ativistas como uma revolução jurídica de grande vulto.6
Já no caso de Lili e Megh, Bevilaqua (2011) relata que estas filhotes haviam sido doadas a um empresário paulista após a interdição do zoológico particular de Fortaleza (Ceará) onde haviam nascido. Após o translado dos animais até Ubatuba, no litoral de São Paulo, fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) constataram uma série de irregularidades na sua documentação e registro, assim como a existência de condições inadequadas de sobrevivência no seu novo lar. Os animais foram então transladados para um santuário em Ibiúna (São Paulo), onde o IBAMA verificou novas irregularidades. Na iminência de perder a posse sobre os animais, o empresário ingressou em maio de 2005 com um mandado de segurança visando assegurar a propriedade da chimpanzé mais velha (Lili), seguido de três outros processos de conteúdo similar (compreendendo também a posse de Megh).
Cumprindo a lógica dos ritos jurídicos, estes processos se desdobraram em uma série de recursos que tramitaram de modo relativamente autônomo nas varas cíveis da justiça federal de São Paulo, até sofrerem uma inflexão na segunda instância, que Bevilaqua classifica como “profunda”:
Nas etapas anteriores, as chimpanzés figuravam inequivocamente como objeto de uma disputa judicial que parecia comportar tão somente dois desfechos: ou bem elas permaneceriam com o empresário ou seriam entregues ao Ibama, a quem caberia determinar seu destino posterior. A manifestação da desembargadora faz emergir uma terceira alternativa que, como se verá adiante, incide diretamente sobre o próprio estatuto das chimpanzés, até então indisputado, tanto em termos jurídicos (como coisas) quanto no plano ontológico (como seres não humanos). (Bevilaqua, 2011: 69-70).
Dado que a desembargadora havia decidido que os animais deveriam ser “reintroduzidos na natureza” (idem: 70) -de modo a deixarem de ser “mero adorno para o desfrute/deleite humano” e recuperar seus “padrões naturais” (idem: 70)- as advogadas do empresário decidiram impetrar um habeas corpus em favor das chimpanzés no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), com o propósito, relata Bevilaqua, “de evitar que se consumasse uma decisão cujo efeito, tanto para o empresário como para o órgão ambiental, seria a morte das chimpanzés” (idem: 70). De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, o habeas corpus se fundamenta no artigo 5º da Constituição Federal, que em seu inciso 68 dispõe: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Percebe-se, com isso, a qualidade da “inflexão profunda” sublinhada por Bevilaqua: aquele ente que até então era tratado como algo, concernente a uma disputa pela sua posse, torna-se alguém, um indivíduo alegadamente privado de liberdade.
O mesmo dispostivo jurídico foi empregado por trinta entidades protetoras dos animais no caso do chimpanzé Jimmy, que buscavam transferi-lo de sua solitária cela no zoológico de Niterói para um santuário de primatas do interior de São Paulo. O pedido acabou sendo negado pela 2ª Câmara Criminal do TJ-RJ, que acompanhou o entendimento do relator do processo, desembargador José Muiños Piñero Filho, segundo o qual o dispositivo constitucional do habeas corpus não poderia ser aplicado para animais.7 Há de se notar que a apreciação deste magistrado coaduna com a interpretação de um notável doutrinador brasileiro sobre a questão:
Todo homem, mas tão-somente o homem, é capaz de direitos e obrigações. Não pode ser sujeito de direitos uma coisa, nem tampouco um animal irracional. Já houve tempos em que se atribuíram direitos aos animais, mesmo sem falar no episódio ridículo de Calígula garantindo situações excepcionais a seu cavalo, ou, ainda, sem fazer referência ao tirano renascentista que obrigava todos os seus concidadãos a saudar com reverência o seu chapéu. (...) Tais fatos estranhos representam momentos da evolução jurídica, sendo hoje unânime o consenso de que tão-somente o homem é sujeito de direitos. Mas se assim é, como se explicam os dispositivos legais que protegem os animais irracionais e as plantas? (Reale, 2009: 230-231).
Em seu compêndio de introdução ao direito, bastante empregado nos cursos de graduação no Brasil, Miguel Reale defende que a proteção de entes não humanos pelo ordenamento jurídico se faz num sentido “civilizatório” devido aos “bons sentimentos” que se deve nutrir por eles (idem: 231). A ancestral clivagem romano-germânica entre “direito das coisas” e “direito das pessoas” permanece, para todos os efeitos, inalterada. Do ponto de vista desta tradição ou “cultura jurídica” (Garapon e Papadopoulos, 2008), é extremamente difícil enunciar o direito de algo que não seja humano, de modo que introduzir novos entes no mundo do direito, em contextos regidos pela tradição romano-germânica, exige algum grau de antropomorfização da coisa visada. Isto se torna claro em alguns dos argumentos arrolados pelas advogadas no pedido de habeas corpus de Lili e Megh:
A petição sustenta: “[…] a vida dos animais, mormente dos Chimpanzés, que possuem 99% do DNA Humano, está acima das leis, requerendo que seja aplicada a equidade”. Novamente, não se argumenta que chimpanzés são humanos (nem mesmo Lili e Megh, cujas vidas são indissociáveis da socialidade humana), mas que a estreita proximidade entre as duas espécies demanda um tratamento jurídico compatível com sua similitude biológica. Ademais, se o direito (humano) inalienável à vida antecede o próprio sistema jurídico, uma vida “99% humana” não pode ser excluída desse direito (Bevilaqua, 2011: 78).
Em juízo, considerou-se interessante, como argumento, evocar o parentesco filogenético entre as espécies, como se esta proximidade biológica entre chimpanzés e humanos fosse suficiente para fundamentar juridicamente o pedido de habeas corpus. Assim como o relator do caso de Jimmy, o ministro do STJ designado para o caso das duas filhotes foi categórico em sua exegese, decidindo pela extinção do processo e considerando “incabível a impetração de habeas corpus em favor de animais” (idem: 83). Todavia se o direito brasileiro ainda é refratário à subjetivação jurídica de grandes primatas, em outros campos da vida social as coisas são mais flexíveis, denotando um forte grau de antropomorfização destes animais. Conforme Bevilaqua:
De acordo com o que foi noticiado pela imprensa na época do julgamento no STJ, as duas chimpanzés dormem em camas com cobertores e travesseiros e saboreiam cinco refeições diárias com cardápio igual ao de seres humanos, preparadas por babás que se revezam nos seus cuidados 24 horas por dia (idem: 84).
Algo similar ocorreu com Jimmy. Ainda que a sua “humanidade” jurídica não tenha sido considerada no campo jurídico, sua “humanidade” expressiva ou estética fora reconhecida ao menos no campo artístico, já que se realizou até mesmo uma exposição de suas pinturas numa galeria de Niterói.8 Quiçá, poderíamos falar aqui de campos sociais mais rígidos e mais flexíveis em relação à subjetivação dos animais, sendo o campo jurídico nos países romano-germânicos um dos mais duros de todos. Baseado como está na exegese de normas e princípios cuja ontologia remete a uma profunda cisão entre “coisas” (não-humanos) e “pessoas” (humanos), torna-se difícil para este paradigma lidar com a emergência de uma novidade normativa como os direitos animais.
Em todo caso, esta dificuldade pode ser apenas aparente. Na história deste mesmo paradigma romano-germânico, percebe-se que, durante muito tempo, classes inteiras de seres humanos foram consideradas desprovidas de direitos. No mundo clássico, escravos e bestas de trabalho possuíam estatuto jurídico similar, pois enquanto os primeiros eram considerados instrumentum genus vocale, os segundos tinham o estatuto de instrumentum genus semi-vocale (Ingold, 2000: 73). Mediante isto, cabe perguntar: se um dia já foi possível aproximar juridicamente homens e bestas em sentido privativo, não seria possível assimilá-los agora em sentido inclusivo? Em outras palavras, se a humanidade jurídica já foi mais restritiva do que agora (deixando de fora do seu escopo muitos indivíduos biologicamente humanos), o que a impediria de ser mais inclusiva do que agora?
Para responder esta pergunta, cumpre refletir sobre que “humanidade” estamos falando quando nos referimos à cultura jurídica romano-germânica. Tudo leva a crer que a cultura jurídica anglo-saxônica é mais permeável à questão dos animais porque seu horizonte normativo tem um forte caráter utilitarista, e grande parte da construção filosófica dos direitos animais se justifica a partir do utilitarismo. Ainda que argumentos sobre dignidade dos animais remontem à Antiguidade, serão filósofos utilitaristas britânicos dos séculos XVIII e XIX, como Jeremy Bentham e John Stuart Mill, que desenvolverão de forma mais efetiva a teoria do animal como centro de interesses. Segundo esta matriz normativa, um ente se torna sujeito de direitos por ter a capacidade de sentir dor ou prazer, e não por possuir alguma faculdade de reminiscências metafísicas, como a racionalidade. Já a cultura jurídica romano-germânica se orienta por uma diferença metafísica entre humanos e animais, ou, como afirma Ingold (1995), pelo aparecimento da humanidade como condição, de modo que cabe agora compreender o que esta fronteira significa.
Seguindo a sugestão de Safatle (2012), poderíamos nos aproximar da condição de humanidade apregoada pela tradição continental –o espelho filosófico do direito jurídico romano-germânico– a partir de suas três declinações conceituais: autonomia moral, pela qual o sujeito é considerado responsável e imputável pelas suas ações; autenticidade pessoal, pela qual o sujeito pode imprimir às suas ações e à sua existência um sentido singular, um “estilo”, que o torna identificável como indivíduo irrepetível e insubstituível; e, por fim, unidade reflexiva, pela qual o sujeito se torna consciente de si mesmo na constatação imediata de que todas as suas percepções, ações e representações são suas, isto é, fazem parte de um mesmo self, durável no tempo e localizado no espaço.
A tradição filosófica continental erigiu esta “humanidade” como superação metafísica da “animalidade”, ou seja, de tudo aquilo de natural e extensional (isto é, não espiritual) que os seres humanos compartilhariam com os demais. Para este paradigma, entre humanos e animais se interporia um grande abismo, e não haveria similaridade genética ou evolucionária capaz de atravessá-lo. No limite, como vimos no caso da expressibilidade artística do chimpanzé Jimmy, uma ou outra declinação desta humanidade acaba sendo concedida contextualmente aos animais, sobretudo as últimas duas: autenticidade de estilo (Jimmy é reconhecido como um “pintor”, etc.) e unidade de consciência (os animais “se recordam” de quem os maltratou, etc).
Contudo, as coisas se complicam quando se trata de autonomia moral. Mesmo os abolicionistas da libertação animal não conseguem ir tão longe e argumentar que o leão possa “escolher” que não vai mais caçar, baseado em algum tipo de imperativo deontológico específico.9 Assim sendo, é forçoso reconhecer que há um resíduo de especismo10 que permanece irrevogável no animalismo, já que, mesmo para o militante mais radical, a exceção humana perdura de alguma maneira, sob a forma da inimputabilidade dos animais. No limite, somente o ser humano é sujeito de deveres. Todos os demais são sujeitos de direitos. A consequência desta inimputabilidade acaba sendo a atualização dos direitos animais num sentido cada vez mais tutelar, não muito diferente daquele que já existe sobre classes de pessoas consideradas juridicamente incapazes.
Em sua dissertação de mestrado, Matos (2012) fornece uma série de exemplos desta dinâmica, ligados à implementação de uma Secretaria Especial de Direitos Animais (SEDA) na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Criada em 2011, a secretaria tem como foco o controle reprodutivo de animais de companhia (castração), o combate aos maus-tratos e o encaminhamento de cães e gatos para guarda e adoção, sob o paradigma da “posse responsável”. No contexto deste órgão, o animal é constituído como sujeito de direitos a partir de sua vulnerabilidade, cabendo ao Estado protegê-lo através de uma série de mecanismos governamentais. Em organismos como a SEDA, a inclusão do animal no mundo dos direitos se faz através da sua fragilidade existencial, o que não está muito distante da categoria de vítima como figura jurídico-política por excelência da contemporaneidade (Bruckner, 1997; Sarti, 2011; Fassin, 2004; Boltanski 2004).
De acordo com Sarti (2011:52), esta categoria tem por base a “construção prévia de determinados grupos sociais, recortados por gênero e idade, como vulneráveis à violência, portanto como vítimas potenciais e detentores do direito a uma assistência específica”. Pensando numa possível ampliação desta categoria ao caso dos animais, poderíamos incluir um recorte de espécie junto a estes arrolados pela autora, o que coloca os animais de companhia (cães e gatos, acima de tudo) num patamar diferenciado em relação aos demais bichos. Além disso, Sarti reconhece que o que está em jogo na construção social de vítimas é a “tensão, de ordem moral, entre a dimensão subjetiva do sofrimento e as (im)possibilidades sociais de sua expressão” (idem: 57). Ora, os animais são incapazes de comunicar e simbolizar (em termos proposicionais, ao menos) o sofrimento de que são sujeitos, e isto talvez se constitua como caso-limite do corolário segundo o qual “a violência se constitui em avesso da possibilidade de comunicação” (idem: 57). Bem por isso, não é incomum encontrar materiais de divulgação da causa animal estruturados em torno da “defesa dos que não têm voz”, ou do imperativo político de “dar voz aos que não têm”.
Neste sentido, como argumentamos alhures (Lewgoy, Sordi e Pinto, 2015), a gramática dos direitos se hibridiza com uma “política da piedade” (Boltanski, 2004). O surgimento da SEDA em Porto Alegre emerge de um contexto mais amplo de proteção animal, constituído por redes voluntárias de adoção e castração de animais domésticos. Em sua maioria, estas redes são formadas por mulheres de classe média e média alta, com alto grau de escolaridade, e que empunham uma narrativa moral diferente daquela empregada pela militância mais radical ou abolicionista.11 Enquanto estes últimos se orientam a partir de critérios mais afeitos ao racionalismo utilitarista e à ideia de justiça (não raro, de corte revolucionário, propondo iniciativas de ação direta como o resgate de animais de laboratório, etc.), estas primeiras têm uma agenda marcada por valores como a empatia e a compaixão, oscilando entre uma ética privada do cuidado (Parry, 2011) e uma militância pública em prol do “direito à vida” (Brossat, 2010).
Esta nova ortodoxia moral em torno da vida como valor primeiro, quando aplicada aos animais, tende a produzir confrontos na esfera política. Eleita em 2014 para a Assembleia Legislativa estadual, Regina Becker Fortunati (Partido Democrático Trabalhista, PDT) -então primeira-dama de Porto Alegre e viabilizadora política da SEDA em 2011- tomou como primeira bandeira do seu mandato o combate ao sacrifício de animais nas religiões de matriz africana, colocando-a em rota de choque com os seus adeptos e representantes institucionais. Com efeito, a polêmica não era nova, pois reeditava uma querela já ocorrida no legislativo gaúcho em 2003, quando outros parlamentares haviam tentado proscrever os sacrifícios rituais pela primeira vez (Oro, 2006). Naquela ocasião, destacara-se a intervenção do deputado Edson Portilho (Partido Comunista do Brasil, PCdoB) no processo, que conseguira excetuar os rituais africanistas do Código Estadual de Proteção aos Animais.
O projeto apresentado por Regina Becker previa a retirada do parágrafo único inserido por Portilho, sob a justificativa de que “externação da fé não pode afrontar os direitos alheios” (Projeto de Lei n. 21/2015, AL/RS). Entre os argumentos levantados pela deputada e seus aliados, destacava-se a recorrente evocação à evolução moral e espiritual da humanidade, o que foi percebido pelos adeptos religiões de matriz africana e seus aliados como um argumento de coloração racista e colonialista.
Nas audiências públicas organizadas pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul sobre o projeto, era perceptível que duas concepções distintas sobre o estatuto do animal, sua morte e sua vida, estavam em jogo, baseadas em parâmetros distintos de sacralização. De um lado, os defensores do projeto –majoritariamente protetoras– argumentavam que a vida do animal era preciosa e inviolável, não podendo ser instrumentalizada para fins rituais. De outro, o povo de santo argumentava haver desconhecimento, por parte da deputada e seus aliados, do real significado do sacrifício no africanismo, bem como do modo com que os animais são criados, abatidos e consumidos, “melhor do que em muitos abatedouros e frigoríficos”.
De fato, como bem notou Rhoda Wilkie (2010) em sua etnografia junto aos criadores de gado na Grã-Bretanha, parte expressiva dos militantes da causa animal não está diretamente envolvida, e tampouco familiarizada, com várias das espécies evocadas em seus discursos.12 O mesmo salienta Descola:
Nascida da indignação com os maus-tratos infligidos aos animais domésticos e de estimação, em uma época na qual burros e cavalos de fiacre faziam parte do ambiente cotidiano, atualmente, a compaixão nutre-se da crueldade a que estariam expostos seres com os quais os amigos dos animais, urbanos em sua maioria, não têm nenhuma proximidade física: o gado de corte, pequenos e grandes animais de caça, os touros das touradas, as cobaias de laboratório e os animais fornecedores de pele, as baleias e as focas, as espécies selvagens ameaçadas pela caça predatória ou pela deterioração de seu habitat etc. (Descola, 1998: 23)
Se a sensibilidade moral com estes animais não provém, na maior parte dos casos, de um contato diário, intensivo e prolongado com eles, qual seria então sua origem? Uma das hipóteses mais habituais é a de que se trata de uma projeção, para animais de outros contextos, de sentimentos e afetos cultivados em ambientes urbanos, com animais de estimação ou pets. Esta é uma hipótese que se encontra bastante assentada no senso comum e na obra de alguns críticos do animalismo contemporâneo, como Digard (1999, 2009) e Bulliet (2005).
Para este último, a simpatia pela animalidade distante e idealizada teria a ver com o afastamento pós-doméstico de situações anteriormente “domésticas” e corriqueiras para a maioria das pessoas, como a proximidade para com os ciclos de vida, reprodução e morte dos animais. Já para Digard (2009), a relação estabelecida entre as diversas linhas da causa animal e os próprios bichos seria de ordem ficcional, uma vez que se trataria de um ideal de animalidade bastante distinto das relações efetivamente travadas com eles. Neste mesma esteira, o autor compreende o fenômeno pet como uma espécie de dominação afetiva tendente à infantilização, o que reforçaria, portanto, a ideia do animal como vítima.
Para concluir, gostaríamos de retornar à questão da suposta ruptura ontológica representada pelos direitos animais. Como bem nota Bevilaqua (2011), os chimpanzés cujos casos são levados a juízo, assim como os animais de estimação abandonados e maltratados acolhidos pela SEDA, são tratados de forma tutelar, porque considerados vulneráveis à ação humana. No entanto, mais do que uma política dos afetos, baseada num ideal de integração do pet à unidade familiar, a atribuição de direitos aos chimpanzés parece se legitimar por uma escala de valor “cujo ápice é ocupado pelas espécies percebidas como as mais próximas do homem em função do seu comportamento, fisiologia, faculdades cognitivas ou da capacidade que lhes é atribuída de sentir emoções” (Descola, 1998: 24).
Nesta escala de valor, prevalecem naturalmente os mamíferos superiores, como primatas e golfinhos, destinados a serem protegidos e terem seus direitos reconhecidos devido àquilo que possuem em comum conosco (fisiologia, inteligência, sociabilidade, linguagem articulada, entre muitas outras figuras do humano identificadas nestas espécies privilegiadas). A simples existência de uma escala de valor deste tipo já aponta para uma série de objeções possíveis à ideia de que os direitos animais se constituem como uma ruptura ontológica forte em relação ao antropocentrismo, mas preferimos retornar à questão da vulnerabilidade para demonstrar o quanto a tese da ruptura ontológica forte pode estar equivocada.
Como afirma Descola (1998), em cosmologias nos quais os estatutos sociais e ontológicos de humanos e animais são efetivamente simétricos, estes últimos podem ser imputados e punidos pelos “delitos” que cometem. Não raro, procedimentos cinegéticos mal conduzidos podem dar ensejo a vendettas animais, o que faz do animal um sujeito simétrico ao ser humano não pelo fato dele ser vulnerável como um incapaz, mas sim pelo fato dele ser perigoso como um inimigo (Fausto, 2001, 2002). Em contraste, a efetivação de direitos animais nas sociedades do ocidente moderno não parece abrir margem para sanções legais sobre os bichos, já que sua entrada no ordenamento jurídico é predominantemente tutelar. Trocando em miúdos: há muitos dispositivos de proteção e acolhimento para animais que são vítimas de abuso, maus-tratos e abandono, mas desconhece-se, no ordenamento jurídico brasileiro, qualquer dispositivo de responsabilização legal de animais que se comportam mal. Curiosa e paradoxalmente, o destino de vários cães e animais de zoológico que atacam pessoas acaba sendo o abate puro e simples, de modo que a sua morte imediata é lado oculto da sua desresponsabilização como agente moral.
Pergunta-se, hoje, se a figura da vítima não acabou por substituir o cidadão nas disputas políticas atuais (Sarti, 2011; Bruckner, 1997). Acreditamos que esta é uma questão importante a ser colocada por aqueles que advogam por direitos animais, dado que uma parte importante de seus argumentos radica numa gramática do sofrimento e no direito à vida como princípio normativo universal (Brossat, 2004). Assim, por orbitar em torno do animal como um vulnerável ou paciente moral, não nos parece que o animalismo contemporâneo esteja cruzando um umbral ontológico que, no longo prazo, acabaria por aproximar o ocidente de saberes e tradições não ocidentais, nas quais imperaria a simetria entre uns e outros. Ao contrário –e sem qualquer demérito aos militantes da causa– o que tudo indica haver aqui é mais um capítulo do humanismo moderno ou seja, da convencional construção moderna de sujeitos de direitos, acoplada à expansão das responsabilidades do Estado-Providência.
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul / CNPq.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
http://www.dw.de/dolphins-gain-unprecedented-protection-in-india/a-16834519, consultado em 01 de abril de 2013.
O caso austríaco, que atribui aos animais um estatuto nem de pessoas nem de coisas (não-coisas) proporciona a Bevilaqua a discussão comparativa entre sistemas jurídicos. Os Códigos Civis e Penais da Europa Ocidental tendem a adotar uma noção de animalidade que, sem afastar-se de seu estatuto de coisas (propriedade de pessoas) tendem a conferir um estatuto protetivo aos animais, fundado a partir de seus interesses individuais e específicos, sendo não-alienáveis como objeto de penhora, por exemplo (Bekoff, 1998; Linzey, 2013). Ainda Bevilaqua (op. cit.) salienta como as cortes, mesmo adotando concepções mais liberais, são refratárias ao reconhecimento de personalidade jurídica aos animais, pois contrariam o dogma da exceção humana, tida como o único fundamento efetivo do drama jurídico. O caso espanhol de aprovação, em 6 de junho de 2008 pela Comisión de Medio Ambiente, do Parlamento Español, da “Proposición No de Ley de apoyo al Proyecto Gran Simio” não apresenta mudanças no plano legal ou jurídico mas político e simbólico, conforme Terrados (2013).
E foi inspirador da ação do Projeto Grandes Primatas no Brasil. O GAP (Great Apes Project) foi fundado em 1993 pelos filósofos Peter Singer e Paola Cavalieri, inicialmente na Espanha, tendo criado uma network de parceiros por diversos países, promovendo ações de resgate e mudanças na legislação com base num arcabouço científico e filosófico equalizante dentro das espécies da família dos grandes primatas (Terrados, 2013).
No artigo “A Tragédia de Suiça: Último Ato” (04/10/2005) assinado por Pedro Yinterian, curador do Projeto Grandes Primatas no Brasil, lê-se “O Juiz Edmundo Lúcio da Cruz, da 9° Vara Crime de Salvador, aceitou o pedido do Habeas Corpus, impetrado pelos eminentes Promotores do Meio Ambiente da Bahia, Dr. Heron José de Santana e Dr. Luciano Rocha, professores de Direito, ONGs ambientalistas e um grupo de estudantes de Direito. Esse grupo inédito em qualquer outra ação era na realidade os representantes da sociedade brasileira, que desafiavam a Justiça com um instrumento legal humano, porém, como eles bem explicam pode ser aplicado a qualquer ser.” http://www.projetogap.org.br/noticia/a-tragedia-de-suica-ultimo-ato (consultado em 14/02/2017). Ao contrário, em matéria de 27/09/2005, assinada pela repórter Gabriela Manzini, o Jornal Folha de São Paulo publicou a seguinte reportagem “Chimpanzé morre antes que Justiça decida sobre Habeas Corpus na Bahia”. http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u113510.shtml
(consultado em 14/02/2017).
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/04/justica-nao-concede-habeas-corpus-chimpanze-morador-de-zoo-no-rj.html, consultado em 22 de julho de 2014.
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/04/justica-nao-concede-habeas-corpus-chimpanze-morador-de-zoo-no-rj.html, consultado em 22 de julho de 2013.
Versões radicalíssimas do abolicionismo, como aquela apregoada pelo filósofo britânico David Pearce, defendem até mesmo a extinção tecnologicamente mediada da predação entre animais como forma de erradicar o sofrimento da face da Terra e operar a “justiça” abolicionista para todos os animais, inclusive aqueles predados por outros animais.
Conforme Peter Singer, um dos popularizadores do conceito, o especismo refere-se ao “preconceito ou atitude tendenciosa de alguém a favor dos interesses de membros da própria espécie, contra outras” (2010: 11).
O abolicionismo animal prega o fim de todo e qualquer uso humano de animais não-humanos, seja na indústria alimentar, na produção agropecuária, no entretenimento, esporte ou experimentação científica. Seu corolário é o veganismo: prática de consumo que prescinde do uso de produtos de origem animal.
Para a autora, este curioso traço permanece constante mesmo se tomadas em conta as diferentes perspectivas existentes no meio animalitário (bem-estarismo, abolicionismo gradual ou pragmático, abolicionismo radical): “Há pontos de vista diversos e concorrentes [no meio animalitário], sustentados, no entanto, sobre uma base comum: a maior parte dos seus comentários provém de pessoas não ligadas ao meio rural e distantes da indústria” (Wilkie, 201: 39)