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Etnografías Contemporáneas

Año 4, No. 7

Emoções narradas

Entre herança, dádiva e joias de família

Por Aline Lopes Rochedo11. Doutoranda no (…)

Emociones narradas: entre herencia, dádiva y joyas de familia

Resumen: La herencia y la dádiva son temas clásicos en la historia de la antropología, y ambas son evocadas en este artículo para explorar la complejidad de comprender y transmitir las joyas de familia. Como joya familiar, considero las cosas que se impregnan con valor sentimental, emocional o de afecto – para usar expresiones recopiladas con mis entrevistados – que se mueven entre generaciones físicamente, a través de imágenes o en crónicas familiares. Entre las propiedades que actúan en la cotización de estas cosas, que no siempre están hechas de oro, plata o piedras preciosas, identifico el poder de las narrativas en la construcción de una economía interna y propongo, a través de la exposición de experiencias etnográficas, nombrarlas emociones narradas.

Palabras clave: Herencia, dádiva, joyas de familia, valor, emoción.

Narrated emotions: between inheritance, gift and family jewels

Abstract: Inheritance and gift are classic themes in the history of anthropology, and both are analyzed in this article in order to explore the meaning of inheriting family jewels. By family jewelry, I consider objects invested with sentimental, emotional or affective value – to use expressions collected in my interviews – that move among generations physically, through images or in family chronicles. Among the properties that act in naming these objects, which are not always made of gold, silver or gemstones, I identify the power of narratives in the construction of an internal economy. Hence in the analysis of ethnographic experiences I suggest naming them narrated emotions.

Keywords: Inharitance, gift, family jewels, value, emotion.

 

Recibido 1 de enero de 2018

Aceptado 9 de julio de 2018

 

Introdução

No prefácio do livro Hértier, no qual Anne Gotman (1988) expõe sua pesquisa sobre transmissão de patrimônio na França, Marc Augé (1988) cita a herança como um campo de estudos clássico da Antropologia. Quando a disciplina ainda ganhava contornos, recorda-nos Augé, relatos de oficiais e administradores europeus informavam o Ocidente sobre a centralidade do repasse de bens e cargos por eles observado nas colônias. Filiação, regras de residência e alianças matrimoniais foram apenas alguns fenômenos constatados e analisados no vaivém de coisas que conectam gerações em diferentes sociedades (Augé, 1988).

Outro tema fundamental da teoria social é a dádiva, esboçado por Marcel Mauss (2003) no início do século XX, e ainda hoje evocado por autores que olharam para presentes e circulação de dons em perspectivas distintas (Simmel, 2004; Lévi-Strauss, 2003, 2011; Gregory, 1982; Sahlins, 1983; Weiner, 1992; Godelier, 2001; Caillé, 2002, 1998; Godbout e Caillé, 1999; Strathern, 2006, 2014). Pois a extensa produção bibliográfica sobre a dádiva não se restringe às obrigações maussianas dar-receber-retribuir. Caillé, por exemplo, questiona se seriam, de fato, universais (Caillé, 2006:29). Às vezes, dar poderia ser retribuir (Lobet, 2006). Mesmo assim, inspira-nos Caillé, a dádiva continua entre nós e segue como alternativa potente e desafiadora para se refletir em múltiplas direções, estejam elas em meio a relações horizontais (entre pares e contemporâneos), verticais (radicalmente assimétricas, entre deuses/divindades e humanos) ou transversais (assimétricas, entre gerações). Esta última pensada no registro de fluxo de coisas imbuídas de afetos em trânsito num circuito restrito (Caillé, 2006:29), que é o dos parentes, consanguíneos ou não (Schneider, 2016).

O presente texto se inscreve numa pesquisa, ainda em produção, sobre transmissão de joias de família no Brasil. Trarei exemplos etnográficos do que venho chamando de emoções narradas acerca da movimentação desses artigos com propriedades valorativas para além da ideia de joia ordinária, ou seja, daquilo que se entende tão somente como adorno corporal feito de metais preciosos e gemas. Falarei sobre bens ligados a noções de ancestralidade e obrigações, e cujas cotações de afetos e sentimentos oscilam conforme critérios subjetivos. São histórias, mitologias, relatos que chegaram a mim principalmente por meio de rede social. O fato de as crônicas escolhidas para ilustrar este artigo serem proferidas por mulheres se justifica pela qualidade descritiva e narrativa das entrevistas. Poucos homens se dispuseram a falar e, quando narravam suas joias de família, demonstravam repertório limitado, recorrendo a genitoras, irmãs, tia, avós e madrinhas para complementar os relatos. Ademais, foram elas quem mais me acionaram, reforçando o indicativo de gênero associado à categoria joia de família.

Algumas entrevistadas já me conheciam, outras não e se aproximaram por indicação de pessoas que conheço. Em comum, têm o fato de colocar à disposição minha, e dos leitores, narrativas sobre o que entendem como suas joias de família, herdadas ou repassadas a outras pessoas. Todas têm pelo menos um relato guardado e que desejam revelar sobre suas famílias, suas coisas, suas emoções, o que parece ser uma estratégia para prolongar a vida, as reminiscências, os sentimentos.

Ao longo do texto, portanto, observo que, a exemplo de dádivas, joias de família não são sempre tangíveis, nem necessitam sê-las se as pensarmos como “relações metafóricas de espírito” (Lobet, 2006:32). Também não precisam ter em suas composições ouro, prata ou gemas para serem valiosas. Às vezes, aparecem como ideias, lembranças, imagens, trechos da vida, metáforas ou mesmo artefatos feitos de madeira ou de quaisquer outras matérias-primas. Mas, invariavelmente, são coisas sentidas, vividas e, às vezes, disputadas. Elas operam tristezas, saudades, paixões, mágoas, alegrias, inveja. Transmitidas por alguns, herdadas ou desviadas das rotas acordadas coletivamente, reconfiguram-se a partir de relações entre vivos e vivos, vivos e mortos, entre os que já morreram e aqueles que nascerão e entre pessoas e objetos.

Em minha etnografia busco, junto com meus interlocutores, encontrar possibilidades para explorar dinâmicas afetivas e simbólicas realçadas através de interações com e por meio de repasses entre gerações. Com a intenção de identificar variáveis que atuam na cotação do valor de afeto ou sentimental, categorias recorrentes no campo, para explicar o zelo e a afeição por certas coisas de família, indicar percursos, justificar o esforço para mantê-las e embasar conflitos, litígios e alterações em rotas de transmissão para fora da cadeia genealógica (Lobet, 2006; Gotman, 1988; Bonnot, 2006).

Propriedades

Em sua pesquisa sobre transmissão de patrimônio na França, Gotman (1988) identifica características distintivas entre as coisas deixadas pelos antepassados. Nem todos os bens são classificados e tratados da mesma maneira, diz. Há hierarquias, negociação da materialidade e divisão sexual dos objetos, e os critérios são amplos, subjetivos e fluidos. Mas, para ser herança, é necessário ser transmitida e, se possível, retransmitida.

O caso de joia de família implica a ideia de cadeia genealógica, uma noção que evoca mitologias de laços ancestrais. Recebê-las é receber obrigações morais de conservação e cuidados para que os legados continuem sendo repassados a gerações vindouras. Alguns bens herdados não estão à disposição dos herdeiros, como pontua Gotman (1988). Móveis triviais e utensílios domésticos, por exemplo, são divididos segundo critérios utilitários e imediatistas. Imóveis, empresas, contas bancárias e obras de arte, por sua vez, são inventariados, obedecem a regras previstas na lei e são tributados pelo Estado. Já joias de família aparecem no registro de herança livre (Gotman, 1988), pois não contribuem para o crescimento do patrimônio, e não costumam constar de inventários tributados, mesmo quando comportam valor no sentido econômico clássico.

As joias de família compõem o conjunto de objetos que desfruta status diferente no total das coisas a ser divididas entre herdeiros e não são repartidas com base no valor econômico. Acessei um testamento rascunhado numa página de agenda e que foi reconhecido e respeitado pelos herdeiros na partilha. Embora não estivesse registrado em cartório, aos olhos de filhos e filhas, tinha efeito de documento, ainda que nem todos tenham sido contemplados e que não houvesse acordo unânime na divisão das coisas. A herdeira que recebeu “a aliança de cinco brilhantes da mãe”, a mais cobiçada por ser a “preferida” da anciã, não ostenta o adorno em família para evitar conflitos com as irmãs, que exprimem mágoa na presença do anel. Portar o objeto coloca a beneficiada em posição privilegiada na hierarquia dos afetos, mas essa era a vontade da falecida, explica-me minha interlocutora, apresentando-me o envelope com o certificado de garantia da joia e com a dedicatória a ela expressa à mão pela matriarca: “Favor entregar à minha filhinha Iolanda22. Nome fictício (…) ”.

Assim como nos casos analisados na França por Gotman (1988), percebo que, no Brasil, atenta-se para um viés de gênero na transmissão, ficando brincos, anéis e colares, entre outros adornos, na cota de filhas, netas e noras. Armas, livros, facas, condecorações militares, alfinetes de gravata, relógios, canetas, anéis de grau e abotoaduras figuram entre o que se reconhece como joias masculinas, e filhos e netos costumam ser contemplados. É comum, no entanto, “coisas de homens” serem repassadas a mulheres da família, como veremos em narrativa exposta na sequência. Guardar, zelar e entregar as crônicas sobre essas coisas, no entanto, é, claramente, atribuição legada àqueles que desempenham papéis femininos na família.

Mas, o que caracteriza as joias de família? Não tenho uma resposta precisa, e a pesquisa continua em andamento. Ainda, observo que é imperativa a presença da personalidade do doador na coisa passada e das narrativas criadas e recriadas, contadas e recontadas. O doador não costuma ser quem adquiriu ou fez o objeto, porém, sim, a primeira pessoa que repassou a coisa na lógica da dádiva. Aliás, o processo de aquisição da peça, geralmente, é omitido nas entrevistas – sabe-se que, na maioria das vezes, são pais, noivos e maridos que compram as joias, que ainda não são “de família” –, assim como o preço que marcou a sua passagem da fase mercadológica para bem pessoal (Appadurai, 2008; Kopytoff, 2008). Inseridas numa cadeia de repasses entre gerações, tudo se passa como se essas coisas não tivessem preço (Carrier, 1992). Ademais, a portabilidade dessa dádiva em fluxo permite viagens, festas, passeios, desejo, deleite e cobiça, entretanto é fundamental lembrar que, ao receber a coisa, o herdeiro recebe também a obrigação moral de conservá-la, cuidá-la e transferi-la, preferencialmente, às gerações seguintes (Lobet, 2006; Gotman, 1988).

Há outras características a serem sublinhadas. Por exemplo, as joias de família tendem a ser expressas como posses inalienáveis, pois não devem ser vendidas nem dadas, mas guardadas no grupo (Mauss, 2003; Carrier, 1992; Weiner, 1992; Godelier, 2001; Thomas, 1991). A ideia é que se movam numa rede de sujeitos ligados por sangue ou não, sujeitos que se reconheçam como família ou parentes (Schneider, 2016; Lévi-Strauss, 2003, 2011).

Ocorre que a joia, quando é de família, não é totalmente transmitida ao próximo guardião. É confiada, esperando-se que continue em movimento, reconfigurando relações, afetos, saudades, vergonhas, silêncios e segredos. Seu futuro importa tanto quanto presente e passado. Por isso, sustento que a joia de família se funde à dádiva na medida em que está a serviço do vínculo, dos sentimentos. O que se pretende transmitir, na verdade, é o laço social. Mas, como bem observam Claudia Barcellos Rezende e Maria Cláudia Coelho (2010), emoções não são expressas da mesma maneira pelos sujeitos diante de situações e coisas, e uma mesma pessoa pode, em diferentes etapas da vida, exprimir sentimentos distintos em relação a um objeto singular em estágios múltiplos de suas trajetórias feitas e refeitas. No caso das joias de família, a transmissão marca o início de nova história ao que foi repassado, a quem fez o repasse e a quem recebeu. Ao herdar, o herdeiro torna-se portador e acolhe a obrigação de, um dia, passar a dádiva a outrem. Um transmite, outro herda e, adiante no tempo, retransmite, e o novo herdeiro se constitui para, um dia, se tornar quem repassa – ou vende, perde, penhora.

Quanto ao artefato, sua identidade também se altera do ponto de vista simbólico. A partir de Nicholas Thomas, para quem “os objetos não são o que foram feitos para serem, mas o que se tornaram” (Thomas, 1999:4), vemos um anel ordinário se converter simbolicamente em anel de noivado depois de vendido, comprado e ofertado. No pedido de casamento, o objeto se torna presente conjugal, performativo. Ao seu valor é acrescida uma história singular, e a partir das emoções narradas que se renovam em torno da coisa em movimento, a cotação do anel oscila sempre incerta e incompleta. Repasses de coisas, assim com nascimentos e mortes, não encenam atos finais. Aqueles implicados nesse drama social são atores em retrospectiva e em perspectiva (Masson e Gotman, 1991).

Como mencionei anteriormente, a herança é tema clássico na Antropologia, mas tem sido pouco estudada, exceto quando trata de aspectos do mercado, tributação, sucessão empresarial e redistribuição estatal (Godbout e Caillé, 1999). Joias de família enquanto peças de ouro, prata e gemas podem ter valor econômico, ou valor de mercado, para além de tantos outros valores mencionados pelos interlocutores. Outros artefatos podem ser avaliados em termos de antiguidade, e alguns são bem contados em valores de mercado. Embora, ocorre que preciosas emoções contidas em joias de família não fazem sentido na lógica economicista. Falamos em valores no plural, em valores qualitativos, que envolvem pessoas e pessoas ou pessoas e coisas pensadas, em alguma medida, como pessoas ao tornarem visíveis relações interpessoais (Strathern, 2006). Como apontou David Graeber (2005:440), as pessoas negociam através de uma variedade de domínios e regimes de valores. O interessante de olhar para a forma como algumas coisas são avaliadas em relação a outras é uma maneira de tornar algumas relações visíveis. Atentar para o valor, insiste Graeber (2005:452), leva-nos adiante da economia clássica, coloca-nos no território da moral, da estética, do simbólico.

Assim, neste processo da pesquisa, vejo uma economia íntima delineada pela emoção narrada, propriedade acoplada a determinados bens e que emerge de formas específicas de interação. Essas crônicas familiares são nutridas e circulam como elementos fundamentais na compreensão do tempo em retrospectiva e prospectiva, pois tratam de memória e estratégias de repasse (Masson e Gotman, 1991).

Enfim, uma joia de família (uma aliança, um relógio, uma adaga de prata, um crucifixo de ouro ou qualquer coisa considerada assim pelos sujeitos da pesquisa) pode ser, às vezes, uma das poucas lembranças materiais, narradas ou imagéticas, deixadas por um antepassado. Essa pequena herança livre oferece um caminho alternativo para acessarmos a produção de valor de afeto, simbólico ou emotivo e a construção e produção de relações sociais e de emoções na contemporaneidade.

Diante da variedade de casos recolhidos até o momento da pesquisa, escolhi Godbout e Caillé como interlocutores privilegiados, pois, para eles, dádiva não se caracteriza por um fato isolado nem seria “uma coisa”. Precisaria ser entendida como relação social, como encadeamento de ações relacionadas, nunca descontínuas tampouco unilaterais (Godbout e Caillé, 1999:16). Ainda segundo esses autores, a dádiva formaria um sistema que pressupõem confiança e reciprocidade, envolvimento (1999:21). A partir dessas proposições, compreendo joias de família como uma noção associada a bens que circulam a serviço da criação, do fortalecimento e da recriação de vínculos sociais entre parentes consanguíneos ou não.

Método e ética

Norteio-me pela História de Família, instrumento metodológico proposto por João de Pina-Cabral e Antónia Pedroso de Lima (2006). Trata-se de “uma metodologia de contextualização social de pessoas” (Pina-Cabral e Lima, 2006:357) pensada especialmente para contextos metropolitanos contemporâneos, embora possa ser aplicada em outras realidades. Tem sido um recurso potente na confecção de um fichário com arranjos de relações, subjetividades, temporalidades, narrativas e, em alguns casos, imagens, considerando os percursos de vida dos Egos e das joias de família por eles narradas e as suas interações intersubjetivas nos universos de parentesco. Porque esses sujeitos e as suas coisas, que podem ou não estar sob as suas posses, mas que lhes pertencem enquanto bens de família, nunca estão sozinhos e jamais estão finalizados. Em transmissão e retransmissão, vemos a instituição de novos papéis sociais, como é o caso do receptor/herdeiro que se torna transmissor/ancestral no movimento transgeracional de dádivas (Masson e Gotman, 1991).

Nas entrevistas, entrelaçam-se, ainda, algumas pessoas e coisas, enquanto tantas deixam de ser evocadas. Não são todos os membros da parentela incluídos no movimento de joias de família. Os sujeitos referidos permitem a construção e a consagração de um status adquirido – se é quem se é por ascendência/descendência ou qualquer outra variável de pertencimento ou merecimento.

Da mesma forma, são evocados nomes aos quais algumas coisas jamais deveriam estar vinculadas, sobretudo quando confiscadas sem consentimento coletivo, o que é mais corrente em casos de mortes inesperadas. Às vezes, recorro com meus interlocutores a imagens para recontar capítulos da história econômica, cultural e política do grupo. Reivindicam-se qualidades, privilégios e habilidades. Os ancestrais podem ter partido, mas deixaram algo de si e, nesses contatos, a ancestralidade é revivida, (re)experimentada, até porque a separação entre pessoas e coisas/sujeitos e objetos, elementos da modernidade, não é uma percepção universal, mas foram forjadas num contexto ocidental (Mauss, 2003; Strathern, 2006). E quem recebe a joia de família parece se tornar um representante, detentor de um vínculo primordial entre gerações. O mesmo não ocorre quando a coisa sofre rapinagem, mesmo quando praticada por um familiar.

Também conto com a ajuda de informantes de ocasião (Teixeira, 2004), ou seja, de pessoas que encontro no percurso. Nessas convergências – algumas ao acaso –, quando menciono a pesquisa com o objetivo de obter quaisquer informações sobre o campo33. Acatei essa su (…) , esses sujeitos oferecem histórias, anedotas, lendas e informações variadas sobre usos, práticas e consumo de joias de família, um conteúdo que produz insights e me escolta a estranhamentos num contexto onde sou “nativa”. Lanço mão de análises de inventários, diários e cartas, fotografias, pinturas, produções literárias e cinematográficas e de confluências com objetos a mim expostos como joias de família para explorar como a relação com essa classe de coisas realça entendimentos sobre dívidas, gratidão e obrigações morais (Simmel, 2004).

A maioria das fontes são mulheres com idades entre 25 e 85 anos e alta escolaridade (graduação ou pós-graduação) e que se identifica como pertencente a “camadas médias”. Algumas dessas entrevistadas dizem fazer parte da primeira geração com acesso à universidade, pois teriam origem “pobre”. Vivem no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Pará. Muitas me acessaram na internet, pelo Facebook, por indicação de conhecidos ou porque já me conhecem. Essas narradoras – são cerca de 40, até o momento – podem ou não deter a posse das joias de família contadas – algumas falam sobre coisas que estão sob a custódia de outros parentes, mas sobre as quais se sentem à vontade para comentar, pois “são de família”, são entendidas como coletivas e devem continuar circulando de alguma maneira nas gerações futuras.

Escutar as metáforas e prestar atenção no campo. Tudo isso precisa estar registrado em diários, anotações, rascunhos, inclusive trivialidades, anedotas, aquilo que não parece importante. Numa loja, por exemplo, uma comerciante começou a falar sobre as joias que herdara da sogra. No meio da narrativa, baixou a voz (embora estivéssemos apenas nós duas no estabelecimento) e me confidenciou que ganhara do marido, havia poucos dias, uma joia arrematada num leilão da Caixa Econômica Federal (CEF), um anel com uma pérola, “antigo”. Sabendo que as joias leiloadas pela CEF são objetos penhorados e não resgatados44. Sobre o penhor (…) , minha interlocutora considerou que aquela era uma joia de outra família. Temendo “a coisa ruim” que “sentia” ao colocar o anel no dedo, retornou à instituição financeira escondida do marido para penhorar o objeto novamente, sem a intenção de resgate. O dinheiro obtido no penhor teria sido doado a uma instituição de caridade, pois nem isso ela considerava manter. Às vezes, dádiva pode ser algum tipo de veneno55. Mauss (2003) p (…) (Mauss, 2003; Godbout e Caillé, 1999; Benveniste, 1995).

A maioria das entrevistadas não se importa em revelar nomes reais. Em narrativas de conflito explícito, modifico prenomes em respeito também às pessoas narradas, pois nem todas sabem da realização da pesquisa, e meu objetivo não é provocar constrangimentos. Todos os sujeitos entrevistados são informados por questões éticas e de segurança deles, dos familiares e da própria pesquisadora.

Costumo mostrar aos “principais personagens” os textos por mim redigidos. Em geral, não gravo as entrevistas, e, na maioria das vezes, anoto alguns pontos. Portanto, depois de redigir nossas conversas, retorno o material aos entrevistados para confirmar dados e garantir a integridade dos colaboradores da pesquisa. Por enquanto, apenas uma entrevistada pediu, após a leitura, para retirar alguns detalhes, pois, relendo, achou suas palavras duras em relação a um tio. Por isso, além de devolver os textos, acho importante retomar alguns pontos da entrevista alguns meses depois da nossa conversa.

O anel de um homem brilhante

A advogada Paola me recebeu na casa onde vive com os pais e o filho adolescente, em Porto Alegre, no sul do Brasil. Trata-se de um sobrado de classe média alta, confortável, amplo e localizado numa rua tranquila de um bairro afastado do centro da cidade. Com expressão amável e olhos risonhos, ela me saudou junto ao portão como se já nos conhecêssemos, afinal, eu fora recomendada por sua irmã, minha amiga.

Ao chegarmos à sala, onde cristaleiras, armários e recantos guardam uma profusão de objetos de decoração legados por ancestrais de origem alemã e com formação luterana, Paola se acomodou numa poltrona, e eu, no sofá. Sua mãe, a psicóloga Milda, juntou-se a nós, assim como a cachorrinha da família. Minhas anfitriãs haviam depositado sobre a mesa de centro algumas joias de família, e Paola me informou que começaria sua narrativa por aquela que considera “a principal”: o anel do avô materno.

É o anel de formatura dele. É que eu sou a única neta formada em Direito. Ele mesmo preparou tudo. Limpou, deixou tudo pronto. Era para me dar no dia da minha formatura, na festa. Eu não sabia que ele ia me dar o anel. Nem imaginava. Eu cobiçava os livros dele. (...) Faleceu no dia 14 de janeiro de 2011, e eu me formei em 19 de fevereiro. Ele tinha 91 anos. (...) Foi a minha avó, a viúva dele, quem me entregou anel na festa. (...) Chegou com a caixinha. Eu imaginei que havia uma joia dentro, mas foi uma surpresa quando eu vi o anel do vô. Foi uma choradeira absurda. [...] Essa é a história que eu vou contar para meus netos, porque esse objeto tem toda uma carga emocional. (...) Eu não sei se é um ouro valioso, até porque não tem valor monetário. Não tem dinheiro que pague. Na verdade, eu nem teria coragem de mandar avaliar o anel do vô. Não é reduzir um homem tão brilhante a uma coisa, mas tem uma carga emocional.
 O anel de formatura do vô herdado por Paola. Foto: Aline Lopes Rochedo, 2017.
O anel de formatura do vô herdado por Paola. Foto: Aline Lopes Rochedo, 2017.

Nesse relato, Paola evoca a noção de valor de afeto, tão frequentemente associada à ideia de joia de família. Posse inalienável para ela, o anel de formatura do seu avô provavelmente seguirá para o seu filho e transmitirá uma narrativa para os netos por conta do que ela chama de “carga emocional”. Para a guardiã do anel, uma mulher que acaba de ingressar na faixa dos 30 anos, a peça não tem preço, não pode ser quantificada. Avaliá-la é desrespeitoso. Seguindo os ensinamentos de Godbout e Caillé (1999), ao tornar a relação quantitativa, ela deixaria de ser uma relação entre pessoas. Reduzir a ideia de valor a algo equivalente a uma quantia monetária não seria aceitável.

É tenso falar em valor de uso e valor de troca nos termos de Marx (1974). Lúcia Helena Müller e Décio Soares Vicente (2012) evidenciam isso em uma pesquisa sobre o penhor como instrumento de crédito, sobretudo em momentos de avaliação de joias de família pelos técnicos da CEF, que acessam critérios valorativos diferentes daqueles comumente empregados pelos portadores desses bens. Para estes últimos, a avaliação segue parâmetros afetivos, e estas não estão desconectadas de tradições étnicas, narrativas acumuladas na circulação das peças e tantas outras variáveis da vida social.

Paola não teria coragem de mandar avaliar o anel do avô, esse “homem tão brilhante” – a metáfora soa providencial – que ela se recusa a reduzir a um artefato, mas que a ambos recorre para compor a crônica familiar e situar-me em suas emoções. Seus olhos se enchem de lágrimas enquanto põe e retira a peça dos dedos nesse encontro com o ancestral. Olho para a Milda, a mãe, e a vejo enxugar o rosto. Mesmo o valor de vínculo é relacional e plural, pois não é o mesmo demonstrado a todos os objetos deixados por uma pessoa. As narrativas produzidas no contato com outras joias legadas por tias e madrinhas, ou mesmo pela mãe de Milda, não eram exprimidas com a mesma carga emocional irradiada pelo anel de formatura do avô de Paola.

O que tem esse anel que o torna diferente das outras coisas, que faz com que seu valor de afeto seja mais alto e que a neta se emocione ao tocá-lo, ao fitá-lo, ao narrá-lo? Talvez seja a capacidade de a relação veicular, alimentar e promover vínculos sociais em meio à repetição da emoção narrada. No caso da Paola, ainda há transferência por ofício. Como seria a retribuição ao patriarca? Pelo repasse ao filho, diz Paola. Na sua explicação, a transmissão de joias de família se mistura à dádiva na medida em que ao dar ela fará a retribuição. Quem entra nesse ciclo, ao receber, precisa dar a descendentes para honrar antepassados. Dádiva esta que só se completa quando transmitida em crônicas densas de emoção. Criam-se, a partir dos gestos de contar e ceder, novos capítulos nas histórias de coisas e pessoas, fundando e refundando identidades e produzindo a continuidade de afetos na constante transformação.

Enquanto Paola e eu conversávamos sobre as joias de família, sua mãe acrescentava detalhes com base nas lembranças do pai, o dono do anel. Mãe e filha discordavam, reformulavam relatos, concordavam, duvidavam de suas memórias, riam, embargavam a voz e se lembravam de parentes, fatos, lugares. Numa saída da sala para preparar café, Milda parou de súbito no primeiro degrau. Deu meia volta, fitou-me e disse: “Você está mexendo com nossos sentimentos físicos”. E retornou com a bandeja.

O tempo da sorte

Alguns objetos chegam a um herdeiro por caminhos inesperado para o primeiro dono. Por vezes, este nem conviveu com a pessoa da geração posterior que dará continuidade às suas histórias, encarregando de repassá-las, ainda que transformadas, mas não desprovidas de afeto. Existe, inclusive, a possibilidade de o artefato que não é feito nem de metais nobres se converter em joia de família em sua biografia cultural (Kopytoff, 2008). A narrativa de Elyene é exemplar.

Eu havia encerrado uma fala sobre esta minha pesquisa num colóquio realizado na capital paulista, em maio de 2017. Ao final da sessão, fui abordada por Elyene, uma jovem na época com 23 anos, natural do norte do Brasil. “Quero te mostrar a minha joia de família”, disse ela, estendendo o punho direito na minha direção.

 O relógio da tia Alacy no braço de Elyene. Foto: Aline Lopes Rochedo, 2017.
O relógio da tia Alacy no braço de Elyene. Foto: Aline Lopes Rochedo, 2017.

Em seu pulso, havia um relógio com visor pequeno, até embaçado, encravado numa pulseira prateada. No mesmo braço, li uma tatuagem you are art. Elyene contou que se formou em Moda no Pará e que se mudara para São Paulo para continuar seus estudos. Disse-lhe que gostaria de conhecer sua história e passei a ela meu e-mail, pois eu partiria dali a pouco. Em nossa primeira troca de mensagens, ela me confiou o seguinte relato por escrito:

Minha tia Alacy, irmã da minha avó, era a mais velha de cinco irmãos. Nasceu em Colatina (no Estado do Espírito Santo), descendente de italianos, tinha talento nas artes. Pintava, bordava, costurava. (...) Ouvi isso da minha vó e dos tios. (...) Ela morou no Brasil, na Itália e em Nova York. Teve três filhos e a única filha deu três netas a ela. Acabei nunca a conhecendo, por morar em Belém e nunca estando no Rio ou em Vitória quando ela estava no Brasil. Além de quadros e lembranças, minha tia deixou o relógio. Lindo e delicado, havia dado à minha vó quando ela o elogiou. Quando minha mãe, sua nora, que ainda era namorada do filho mais novo, elogiou o relógio, minha vó a presentou com ele. Minha mãe deixou de usar o relógio por ele ter parado de funcionar. Quando eu tinha 17 anos, no primeiro ano da faculdade de Moda, decidi usá-lo numa festa. Passei a usá-lo regularmente, porque o achava belíssimo. Um dia, minha mãe me contou de quem era e como o relógio chegou até ela. A joia se tornou mais importante para mim, afinal, era a lembrança material de alguém que não conheci, mas por quem tinha grande admiração e carinho. Nunca soube de qual material o relógio é feito ou seu valor monetário. Nunca me interessei, nem penso sobre isso. O relógio não funciona, mas o uso como se ele fosse minha contagem de tempo da sorte, e simplesmente tudo parece ser um pouco melhor quando estou com ele.

O presente que tia Alacy dera à irmã, portanto, foi repassado à nora desta, que, por sua vez, o deu à sua filha. Elyene não conheceu a tia-bisavó, mas, em sua experiência com o objeto, conta e reconta a própria história, situando-se num mapa de parentesco e evidenciando a transformação de seus afetos em relação à ancestral e ao artefato.

Passados uns dias, enviei a Elyene uma primeira versão do texto que elaborei a partir de seus e-mails. Queria saber se ela se sentia confortável com as informações e se gostaria de contar mais alguma coisa, talvez sobre ela mesma. Foi quando minha interlocutora me reafirmou que levava o relógio também como um objeto de “proteção” e como “a presença” de Alacy. “Não parece também estranho o fato de eu não conhecê-la pessoalmente, mas, ainda assim, senti-la como uma velha amiga? Novamente, nunca havia me dado conta o quão profundos eram esses sentimentos até você me perguntar sobre eles”, escreveu ela.

Organizar a narrativa e as emoções sobre a tia-bisavó fez com que Elyene retomasse o assunto com a avó. “Quero dizer a você que falei há pouco com minha vó pelo telefone e ela ficou muito feliz em saber que o relógio que a irmã lhe deu tinha se transformado em uma história”, comentou Elyene dias depois. “Muito obrigada por me fazer contar essa história, é realmente boa a sensação. Está me fazendo descobrir como me sinto em relação ao relógio e à minha tia.”

A partir da minha experiência etnográfica no campo sobre transmissão de joias de família, escuto diversos relatos retirados de cofres e porta-joias e percebo o quão potente são as emoções narradas, na produção e reformulação de identidades individuais e coletivas ao serem reveladas. Na convergência de crônicas, algumas surgem potencializadas pelo encontro com o que minhas entrevistadas consideram seus bens mais caros do ponto de vista afetivo. São bens e relatos misturados que concatenam pais, avós, netos, filhos e outras possibilidades de parentesco não apenas por simbolizarem relações, mas por serem eles próprios incluídos nas composições.

O relógio, o relicário e a pérola

A jornalista Marta tinha sete anos quando sua mãe faleceu. O pai morreu no final da década de 1990, quando ela somava pouco mais de 20 anos. “Digo que nasci para ser órfã”, expressou ela, mãe de uma adolescente e grávida do segundo filho, casada com um escritor renomado e residente numa confortável casa de um bairro residencial de Porto Alegre. Na hora, compadeci ao ouvir suas palavras. Marta sabia que me provocara e estava preparada para meu desconforto inicial. Então, ela falou:

Tudo bem. Eu não conheci outra forma de viver. Minha filha fica um pouco espantada com essas histórias, com o fato de eu ter ficado órfã de mãe tão cedo, mas acho que, quando a gente perde a mãe mais tarde, quando a gente tem noção do que perdeu, é mais difícil. Para mim, é claro que eu me lembro de ter ficado triste, mas acho que criança assimila um pouco mais facilmente uma perda dessas.

Sentada no sofá de sua sala, sorvendo chimarrão – o mate do Rio Grande do Sul – numa bomba que traz as iniciais do marido, ela se recordava das rápidas passagens ao lado daquela mulher de saúde frágil que faleceu prematuramente de enfermidade pulmonar, deixando a caçula Marta, dois outros filhos e um marido 18 anos mais velho. Embora a conheça há mais de duas décadas, eu pouco sabia de sua história familiar. Foi a própria Marta, hoje com pouco mais de 40 anos, quem ofereceu a mim suas crônicas e suas emoções narradas ao ler sobre minha pesquisa em postagem numa rede social.

Dentre as lembranças da minha informante naquela manhã de domingo em que nos encontramos estava o dia em que o pai a levou a um ourives na cidade de Alegrete, no interior do Rio Grande do Sul, para encomendar um relicário de ouro no qual ela carregaria no peito uma foto da mãe. Marta tinha 13 anos, uma data significativa na tradição judaica. “Minha família era de cristãos novos. Em geral, os 13 anos são importantes para os meninos, e os 12 seriam para as meninas. Mas eu tinha 13 quando meu pai me levou para fazer o relicário”, narrou. Hoje, ainda mais próxima do judaísmo, muito em função do casamento, ela guarda essa peça como uma das joias de família mais preciosas de seu acervo, embora ainda não tenha sido repassada entre gerações. No entanto, não foi a primeira peça a se revelar na entrevista.

 O relicário de Marta. Foto: Aline Lopes Rochedo, 2017.
O relicário de Marta. Foto: Aline Lopes Rochedo, 2017.

Do porta-joias prateado, a primeira joia que Marta retirou foi um relógio de bolso redondo e dourado. “Era do meu avô, passou para meu pai e ele me deu.” Seus irmãos não teriam interesse no objeto, assegurou-me. Percebi que a tampa do mostrador estava solta, com engate rompido. Pedi licença para manipular a peça. Perguntei se poderia abrir a parte de trás, onde se guardavam fotografias. Marta estranhou: “Abre?”. Abri. Questionei de quem eram as iniciais – AT – gravadas na tampa traseira do relógio. “Quais iniciais? Devem ser do meu avô. Me deixa ver”. Ela aproximou o objeto: “São as iniciais do nome do meu pai! (risos) Só tu pra ver isso!”

Marta contou que o avô nascera na Espanha e chegara ao Rio Grande do Sul atravessando a fronteira com o Uruguai, onde seu navio aportou. Subira ao altar com uma estancieira de Alegrete, uma mulher que havia se casado tarde para os padrões da época. “Dizem que a vida do meu avô foi muito difícil com ela. Ele era capataz e casou com essa mulher que meio que colocou ele para trabalhar para ela. Bom, ele se enforcou”, contou ela, causando-me novo desconforto.

Sublinho que, durante a pesquisa, foram-me relatados poucos casos de desavenças familiares causadas especificamente pela partilha das joias. De antemão, eu pensava que essas crônicas seriam abundantes. O que surpreende no percurso etnográfico, entretanto, é a quantidade de conflitos de convivências familiares narrados a partir das joias, tensões que emergem nas presenças dessas coisas. Não significa que não haja disputas específicas por esses artefatos, elas existem. Mas, ao serem narradas, as emoções e as crônicas extrapolam o adorno.

O fato é que os avós de Marta tiveram seis filhos, dentre os quais o pai dela, que também se casou tardiamente e, segundo a entrevistada, “passou a vida trabalhando” para sustentar a família. “Ele tinha 56 anos quando eu nasci, era bem mais velho que a minha mãe.” Depois da morte da genitora de Marta, seu pai “nunca se organizou”. “A vida dele se desestruturou. Ele era apaixonado pela minha mãe.” Como os irmãos eram mais velhos e o pai intensificou a dedicação ao trabalho na viuvez, Marta circulou na rede de afetos deixada pela mãe. Amigas, familiares, pessoas que, de alguma maneira, já estavam envolvidas com a criação dela mesmo quando a mãe estava viva, “porque ela estava sempre doente”. Marta ia para a escola, comprava os próprios cadernos, livros e lápis e precisou amadurecer cedo, mas não guarda rancores nem relata a experiência em tom choroso, o que não significa que a fala não contenha carga emotiva.

Tanto que no dia em que defendeu sua tese de doutorado em Comunicação Social, Marta exibiu o relicário com a foto da mãe no pescoço. Queria ter a mãe por perto. Foi uma das poucas vezes, aliás, em que ousou exibir a peça fora de casa. Essa relação especial com o bem inspirou sua filha lhe pedir algumas vezes para ter o próprio relicário, recebendo a promessa de que aquele com a foto da avó, um dia, será dela. “São coisas que valem pelo valor sentimental, pelo valor emocional. É minha filha, então, minhas joias serão dela.” E Marta retirou do porta-joias uma terceira peça:

Esse anel com a pérola tem uma história interessante. Minha mãe tinha dois filhos e achou que não teria uma filha. Então ela deu de presente para uma sobrinha, minha prima. Eu não sei de onde vem, mas o acho muito bonito. Talvez ela tenha ganhado do meu pai. Eu não sei... Na verdade, acho que era um anel que ela já tinha da juventude... Bom, eu nem conhecia a existência dele, ela não me falou. Antes de eu nascer, a mãe deu o anel para a sobrinha dela quando esta fez 15 anos. Eu nasci, minha mãe morreu quando eu tinha sete anos. Quando eu fiz 21 anos, a minha prima me devolv... ela me deu o anel. Eu fiquei muito emocionada. Como eu falei, nem sabia que ele existia.

Cumpre observar que, a cada narrativa, Marta sucumbia a um tom mais emotivo. Diferentemente de Paola e Milda, ela não chorou nem embargou a voz. Porém, era visível e audível a emoção que se construía no ato de contar e rememorar a mãe, o pai e sua história coletiva.

Alianças e discórdias

Uma das desavenças em torno de disputa por joias de família que mais me impressionou no campo durante a pesquisa foi a relatada, em meados de 2016, pela geóloga Rosália, 32 anos. Nós nos conhecemos num curso de idiomas, e ela entrou em contato comigo numa rede social porque lera minha postagem sobre a pesquisa. Em mensagem privada, contou-me ter ascendência italiana, localizando-se no mapa genealógico como bisneta de italianos que imigraram para a região serrana do Rio Grande do Sul. “Gente simples e pobre”, definiu, acrescentando que, até a década de 1980, não havia banheiro dentro da casa. Tudo isso para me advertir do seguinte: “Não temos jooooias”. Ainda assim, queria me contar a história da aliança de sua avó materna, dona Gema, já falecida. Marcamos a entrevista num café do campus universitário.

Quando minha Rosália chegou, olhei para suas mãos em busca da aliança da avó, mas não havia anéis. Sentamo-nos de frente uma para a outra, pedi seu consentimento para ligar o gravador, ela abriu a bolsa. Achei que, dali, sairia a joia. Mas não. Ela apanhou o seu celular, buscou uma fotografia em seus arquivos e foi a partir da imagem que a narrativa se iniciou:

Essa é a minha vó. Se tu deres um zoom aqui na mão dela, tem uma aliança. É a aliança dela. Não é a aliança original do casamento. Nessa aliança, ela juntou a aliança original do casamento dela, a aliança do meu vô e acho que um ou dois dentes de ouro que ela tinha. Daí fez essa aliança grossona. Acho que, na época em que meu avô faleceu, ela recebeu algum dinheiro e pode arrumar os dentes. Meu vô faleceu antes de eu nascer, então eu sempre via a minha vó com essa aliança. A minha vó e a aliança, entendeu?

A contagem de tempo no visor do gravador não tinha registrado nem um minuto de fala e já havia lágrimas escorrendo em Rosália. Busquei uma garrafa d’água e copos. Minha entrevistada secou os olhos, desculpou-se, tomou um gole e prosseguiu:

Quando ela faleceu, tipo (soluço), eu queria a aliança pra mim (soluço), porque eu era a neta mais chegada. Só que a minha tia Maria66. Nome fictício (…) que morava com ela ficou com a aliança. Ela usa sempre no dedo, porque também era muito apegada com a minha vó, e ela nunca mais tirou a aliança da vó do dedo. Ela tem uma filha, mas a Gabi77. Nome fictício (…) não é muito... É uma longa história. Quando a Gabi nasceu, minha tia entregou para a madrinha dela criar. Depois se arrependeu, mas a madrinha dela disse “não, tu me deu ela pra criar, então eu vou criar”. Então a gente nunca teve muita proximidade com a Gabi, sabe? Então eu sei que isso (a aliança) não vai fazer muita diferença para ela no futuro. Esse é um símbolo da minha vó (voz embargada), não é grande, mas é a minha vó (chora). Se eu parar para pensar em joia de família, penso em um colar imenso, num anel de diamantes, num colar de pérolas. Mas este é o tipo de coisa que vai ficar na família. Tem uma representatividade dentro da família.

Maria é a filha mais velha de três – um homem e duas mulheres –, jamais se casou, não teve autorização dos pais para trabalhar fora de casa e acabou cuidando dos genitores até o fim da vida deles, residindo sob o mesmo teto. Ainda segundo Rosália, sua tia é uma mulher dura e amargurada por ter sido incentivada pela rede familiar a renunciar à criação da filha naquele início dos anos 1980, quando seu universo católico de classe operária se envergonhava da gravidez fora do casamento. A relação de Maria com a filha de sua irmã, desta forma, era marcada pelo conflito, pois avó e neta eram muito próximas afetivamente em função da morte prematura do pai de Rosália.

Pois dona Gema, a avó, faleceu em decorrência de um atropelamento em 2006 perto de casa, de onde saiu sozinha para comprar balas num armazém próximo. A catarata afetara sua visão, e aquele já era seu terceiro atropelamento ao tentar cruzar uma rua. Nesta última vez, foi internada no hospital em estado grave, o quadro se agravou por causa de uma infecção hospitalar, e dona Gema faleceu em poucas horas. Até a sua morte, disse Rosália, a avó não havia manifestado intenções para com a aliança.

Eu queria estar com ela (a aliança) pendurada numa corrente. Eu sei que está lá, que está bem guardada, bem cuidada. Por nada a minha tia tira aquele anel da mão dela. Se ela der o anel para a Gabi, vou lá conversar. Vou dizer que esse anel não representa nada pra ela. Minha tia colocou o anel quando a minha vó foi para o hospital e nunca mais tirou. Cheguei a pedir o anel, mas ela disse não. Sempre que falo nisso eu choro. A minha vó ajudou a minha mãe a me criar, era minha mãe também. Em outras circunstâncias, acho que a minha vó teria me deixado o anel. Uma vez eu estava na casa da minha vó e ela me disse que tinha um dinheiro escondido da minha tia. Quando a vó faleceu, falei para a minha mãe ir ao armário da cozinha, olhar atrás da lata de arroz, dentro de um livro, que tinha um dinheiro escondido. Minha tia não sabia disso.

A crônica narrada por Rosália é densa de sentimentos ambíguos acerca do caminho da dádiva da sua avó. Ao mesmo tempo em que reconhece a sua posição no mapa de parentesco em relação à Gema, minha entrevistada não considera legítimo o fato de a aliança estar sob os cuidados da tia mais velha, próxima em termos sanguíneos e geográficos e, na sua interpretação, distante nos laços de afeto. Em outros casos etnografados por mim, joias de família femininas comumente seguem de mães para filha ou para uma das netas – movimento feito, geralmente, “em vida”, sendo que as mais velhas costumam receber as peças mais importantes na hierarquia dos objetos.

Todavia, Maria se apropriou da aliança da mãe sem comunicar o ato aos demais membros da parentela. Segundo Rosália, a tia colocou a peça num dedo como um direito individual e, em certa medida, político, tentando assumir a posição da matriarca no grupo, o que não foi aceito por minha interlocutora. Rosália até reconhece que a aliança está bem cuidada. Sua aflição se dirige para o futuro, para o risco de a coisa, as histórias, as reminiscências e os sentimentos que compõem a dádiva escorrerem pelos dedos da prima Gabi, filha da tia, retirando a joia de família da cadeia genealógica (Lobet, 2006; Gotman, 1988; Bonnot, 2006).

Sabemos que uma das características da dádiva é a incerteza e a incompletude, pois ela está em ação. Entretanto, isso não reduz a apreensão acerca de quem herdará as emoções narradas, essenciais para o entendimento de bens como dons. Pensa-se no futuro dessas coisas, e não apenas em seus passados. Importa para os implicados saber como a história continua e para onde a joia de família vai, e não há garantias de continuidade. O que se narrará no futuro? Não por acaso governa a proibição moral em torno da compra e da venda. Indício de que a joia de família é tão próxima do portador que sua alienação ou não é permitida ou é condenada (Carrier, 1995, p. 30). Teme-se perder o controle da coisa, da identidade de grupo, da perenidade, das emoções.

Considerações finais

Herança não liga apenas o doador a receptor, mas entrelaça relações anteriores e rascunha as futuras. Da bisavó para a avó, do avô para o pai, do pai para o filho, do filho para o neto, do neto para o bisneto e assim por diante. O anel de formatura do avô que fica aos cuidados da neta em função desta ser a primeira a se formar em Direito depois dele. O anel de pérolas da tia, a aliança, ou o relógio que conecta pessoas que jamais se viram. De avô para a neta, do pai para a filha, das relações anteriores e posteriores a casamentos, nascimentos e falecimentos. Por onde andam essas dádivas? Que relações familiares nos mostram? Como se mapeiam os afetos? Que narrativas instigam?

Habitadas por familiares e incluídas nessas relações, joias de família entendidas como dádivas podem conceder a quem as guarda boa ou má reputação. E recorro ao verbo “portar” porque, como vimos, o portador tem a posse temporária do que lhe foi confiado com a condição ou expectativa de repasse. Parece haver regras prescritas, conhecidas, compartilhadas, filhas e netas seriam receptoras preferenciais, e, embora não tenha aprofundado neste artigo, filhos ou netos primogênitos tenderiam a receber artefatos masculinos. Sobre eles, recairia certo poder, responsabilidade e/ou tentativa de controle dos destinos dessas coisas. De mão em mão, de pescoço em pescoço, de pulso em pulso, de orelha a orelha, criam-se dívidas e assumem-se riscos, com perdas, sucessos, lucros ou fracassos. Legam-se disputas, silêncios, vergonhas, sonhos, honrarias, expectativas. Mas nem sempre as regras são seguidas ou compreendidas da mesma forma por todos os familiares e em todos os momentos das vidas dos sujeitos. Por razões particulares, portadoras e portadores que entrevistei deram fins (ou continuidades) diferentes aos presentes, realçando dimensões das biografias culturais das coisas (Kopytoff, 2008) – bens que experimentam rotas e desvios às vezes imprevisíveis e conflitivos (Appadurai, 2008). Circunstâncias econômicas e familiares também interferem nesses percursos. A cada transmissão, inicia-se uma nova história para o que foi repassado, para quem recebeu a joia de família e para quem um dia a receberá. Coisas que permanecem vivas na transmissão das emoções narradas, sem as quais deixam de pulsar. Como escreveu John Steinbeck (1961:131): “Creio que todas as famílias possuem uma coisa mágica, uma coisa permanente que inflama, consola e inspira geração após geração.”

Tocar, sentir, fitar, guardar, provocar, exibir não só a ancestralidade, mas também quem se é, de onde se vem e quais lugares se ocupam nos afetos de quem gostamos ou com quem imaginamos elos. Vão-se os anéis, ficam as emoções narradas, crônicas que se atualizam dando a sensação de continuidade. E essas narrativas precisam se acoplar a dádivas para que sigam em frente, afirmando a sobrevivência de coisas e pessoas nas gerações futuras, num jogo entre memória e estratégias de repasse, entre passado e futuro, entre os que foram e os que virão, entre emoções que se transformam.

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1.

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

2.

Nome fictício para evitar conflito familiar.

3.

Acatei essa sugestão do professor Sérgio Teixeira na minha pesquisa de mestrado, e foi uma excelente ferramenta – aliás, uma das mais frutíferas. Ao compartilhar dados, acessamos opiniões e contribuições de colegas, professores e pessoas que não estão ligadas à academia, mas que, de alguma maneira, conhecem e participam dessa realidade social. Quando falo sobre joias de família num congresso, numa festa ou com um companheiro de assento numa viagem de avião, dificilmente não escuto algum comentário ou narrativa acerca do tema. “Eu tenho uma história” é uma abordagem comumente dirigida a mim nesses encontros.

4.

Sobre o penhor como instrumento de crédito, ver Müller e Vicente (2012).

5.

Mauss (2003) percebeu a ambiguidade da dádiva na raiz germânica do termo, que pode levar a gift (inglês)/presente ou a das Gift (alemão)/veneno.

6.

Nome fictício para preservar a personagem.

7.

Nome fictício para preservar a personagem.