Vol. 5 Núm. 9: Etnografías de lo digital: reflexiones y experiencias de campo multisituadas y (des) situadas

Poeira do Tempo e as figuras do imaginário no sul do Brasil, os desafios para a produção de jogos de eletrônicos

Por Ana Luiza Carvalho da Rocha1 y Cornelia Eckert2

Carvalho da Rocha, Ana Luiza, y Eckert, Cornelia (2019) “ Poeira do Tempo e as figuras do imaginário no sul do Brasil, os desafios para a produção de jogos de eletrônicos3 Etnografías Contemporáneas, año 5, N° 9, pp. 114-136.

As ideias se relacionam com as coisas
como as constelações com as estrelas.

Resumen

Este artículo aborda el proceso de creación del juego electrónico Poeiras del tiempo, figuras de la memoria en el sur de Brasil, en el cuerpo de las investigaciones del “Banco de Imagens e Efeitos Visuais” (BIEV/UFRGS) a partir de los desafíos de transponer las artes de narrar de la Antropología audiovisual para la producción de juegos electrónicos. En la producción de una obra híbrida, relatamos el desafío de crear un diálogo intertextual entre los géneros narrativos del documental etnográfico, por un lado, y de los juegos electrónicos, por otro lado. Seguimos las reflexiones de Janet Murray [2003] para quienes los juegos digitales se destacan por su potencialidad de contar historias. Se trata de una invitación al jugador / espectador para conocer un poco de las viejas leyendas y historias sur río-grandense cuya antigüedad subsiste en el folclore popular y en la tradición oral, tramada en los paisajes de antaño y en los recuerdos de los antiguos.

Palabras clave: Juegos digitales, Narraciones etnográficas, Etnografía hipermidiática, imagen, ciudad

“Dust of Time” and imaginary figures in Southern Brazil: challenges in the production of electronic games

Abstract

This article delves in the process of creating the electronic game Dust of Time, figurations of memory in southern Brazil, as part of the research of “Banco de Imagens e Efeitos Visuais” (BIEV/UFRGS) taking into account the challenges of the narration arts of visual anthropology to the production of electronic games. In the production of a hybrid work, we examine the challenge of creating an intertextual dialogue between the narrative genres of the ethnographic documentary, on the one hand, and electronic games, on the other hand. We follow the reflections of Janet Murray [2003] for whom digital games highlight their storytelling potential. It constitutes an invitation to the player / spectator to get to know some of the old legends and stories of Rio Grande do Sul, that survive in popular folklore and oral tradition, woven into the landscapes of the past and the memories of the ancestors.

Keywords: Digital games, Ethnographic narratives, Hypermedia ethnography, Image, City

 

Recibido: 27 de diciembre 2018

Aceptado: 17 de abril 2019

 Introdução

A Antropologia Visual tem sido, tradicionalmente, um instrumento de pesquisa vigoroso, que tem promovido trocas e diálogos entre as diferentes culturas que convivem em nosso planeta. A pesquisa com imagens vem sendo, hoje, uma das principais vertentes dos estudos sobre culturas contemporâneas, justamente por propiciar que os grupos sociais estudados expressem a sua voz, partilhem suas lógicas e arranjos sociais. A antropologia está cada vez mais atenta a estes suportes que facilitam processos colaborativos, compartilhados, que, não raro, respondem a demandas de grupos pesquisados, alcançando, assim, uma ressonância muito mais ampla do que a circulação restrita aos meios acadêmicos.

Temos argumentado sobre o potencial da pesquisa com imagens no campo antropológico em diversas e diferentes oportunidades (livros, artigos, papers em congressos). Em especial, revisitamos a produção da Antropologia Visual no Brasil para considerar os núcleos de pesquisa neste campo de conhecimento e as linhas de pesquisa em Antropologia Visual consolidadas nos programas de pós-graduação em Antropologia Social e a expressiva participação destes pesquisadores em associações científicas brasileiras, como a Associação Brasileira de Antropologia (Eckert e Rocha, 2017). No que tange à etnografia em multimídia, a produção é mais tímida, não tendo sido ainda reconhecida pela comunidade de antropólogos no sistema de avaliação e qualificação científica desenvolvido no âmbito da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) na especificidade denominada Qualis Imagens. Este setor da área de Antropologia, se restringe a mesurar a produção de fotografias, vídeos e sons com base em pesquisa etnográfica. Esta dificuldade de reconhecimento dos TICS, porém, como produção científica na área, não é sinônimo de ausência de pesquisa neste novo campo teórico e metodológico.

No caso do Banco de Imagens e Efeitos Visuais/Biev4, desde 1997, a criação sites, blogs, dvds interativos e jogos digitais tem ocupado boa parte das atividades de pesquisa realizadas por seus integrantes, ao lado dos trabalhos de produção audiovisual de documentários e de exposições fotográficas. As TICs são há mais de 20 anos uma das dimensões por nós privilegiadas no âmbito deste projeto, não apenas de construção do texto etnográfico, mas de reflexão acerca do processo de produção do conhecimento em Antropologia. Buscamos, portanto, contribuir para os estudos das interfaces entre antropologia, comunicação e a produção audiovisual multimídia, analisando suas intertextualidades, recorrendo às interpretações diferenciadas seja na sua especificidade histórica, seja na sua singularidade técnica.

No que tange aos recursos das redes eletrônicas e digitais, não se trata para nós apenas do esforço de ampliar o processo de divulgação dos resultados de nossas pesquisas etnográficas5 para uma ampla comunidade acadêmica e para além dela. Trata-se de focar no campo da produção antropológica, o uso das tecnologias digitais e eletrônicas e de expandir as formas mais convencionais de narrativas etnográficas para o campo da produção de dvds multimídia interativos e jogos eletrônicos, permitindo pluralizar o debate em torno das formas de tratamento documental de coleções etnográficas na Web como fato que integra os processos de produção do conhecimento antropológico.

Nosso eixo de interesse, sempre esteve mais orientado para a investigação detalhada dos sistemas de representações (imagens, imaginário, linguagens, sistema de valores) que caracterizam a vida nos territórios urbanos tanto quanto de suas redes afetivas, a partir dos procedimentos de pesquisa advogados por nós: etnografia da duração e etnografia de rua. Considerando a cidade como objeto temporal, a etnografia da duração prioriza o estudo das formas de tratamento de imagens, textos e áudios pesquisados em acervos, ou produzidos durante o trabalho de campo, ou interconectados por hiperlinks e disponibilizados num mesmo ambiente de consulta por meio das redes digitais e eletrônicas. Esta prática de pesquisa esta relacionada ao método da convergência na perspectiva do estruturalismo figurativo que procuramos aplicar ao processo de produção, geração e circulação de coleções etnográficas na Web. Na etnografia da duração, a cidade desponta como sede de sentidos de toda uma coletividade (Rocha e Eckert, 2013). A etnografia de rua, por sua vez, se constitui em exercícios de deslocamento por ruas e bairros na cidade para a prática de observações e conversações (interações com interlocutores). Nessas caminhadas individuais ou coletivas, objetiva-se a produção de fotografias, vídeos, captação de sons, desenhos e diários que serão editados, interpretados e disponibilizados na forma de banco de conhecimento para a produção de coleções etnográficas ou como base de filmes etnográficos, exposições fotoetnográficas, ensaios sonoros, blogs e produção de artigos. Tanto a etnografia da duração quanto a etnografia de rua, são instrumentos significativos para o estudo antropológico nas cidades, problematizam seus ciclos temporais e os jogos de memória de seus habitantes, no esforço de compreender suas formas de sociabilidade e os itinerários nas grandes metrópoles contemporâneas, assim como a construção/criação de um banco de conhecimento multimídia sobre o processo de instalação da moderna civilização urbana, em particular no Brasil (Eckert e Rocha, 2014).

Eis aí uma das razões para se investir numa pesquisa sistemática em torno da multiplicidade e do dinamismo da construção do conhecimento, com base na tecnologia intelectual oriunda das redes digitais, e de seus efeitos correlatos, para a apropriação e recriação de memórias coletivas no mundo contemporâneo. Nestes termos, o desafio é compreender as novas formas de expressão do patrimônio cultural que destilam feito imagens sobrepostas de pessoas, cenários, lugares, acontecimentos, entre outros, enquanto paisagens das memórias vividas nos espaços praticados.

A partir do resultado fílmico e fotográfico de um projeto sobre a paisagem fantástica no contexto rio-grandense e da pesquisa de campo nas regiões missioneiras do estado, realizada entre os anos 1998 a 2005, optamos por ampliar os exercícios de novas formas de produção etnográfica no caso hipertextual, de acordo com a noção de intertextualidade, problematizando a criação de um jogo eletrônico como forma de geração e criação de narrativa etnográfica em hipertexto. Reconhecemos que no caso da nossa pesquisa com os jogos da memória nas modernas sociedades urbano-industriais, a transformação de acervos patrimoniais (objetos, vestígios da cultura material, fragmentos visuais, textos históricos, informações diversas) em dados digitais tem gerado uma mudança significativa na forma como tais documentos são dispostos em um conjunto de informações pelo antropólogo com a finalidade da produção de narrativas etnográfica.

Os procedimentos de produção de narrativas etnográficas hipertextuais

A virtualização da informação por desconexão em relação a um meio particular implicou, na história da humanidade, a transformação do espaço-tempo ordinário das coletividades abrindo-as para outros meios de interação cognitiva com seu meio cósmico e social. Este processo, como bem apontou Roger Chartier (1999) e Jean Clement (2015), entre tantos outros estudiosos dos anos 90 do século passado, faz parte da variabilidade de espaços e de temporalidades em que registros da vida humana e seus diversos sistemas de transmissão (oral, escrita manuscrita, impressão, fotografia, filme, vídeo, redes digitais) constroem diferentes ritmos e velocidades para a criação/destruição do patrimônio da humanidade ao longo dos tempos.

No caso particular das TICs, se a imagem digital tem, por um lado, a vantagem de armazenar, sob a forma de dados, as informações retiradas do original, por outro lado, entretanto, ela própria é incapaz de construir conhecimento por completo das culturas humanas sem o recurso às ferramentas de um sistema de processamento dos dados, capaz de armazenar, extrair e organizar, de forma seletiva e analítica, suas informações. Estamos nos referindo aqui ao fato de que quanto mais enveredamos pelo território da imagem digital mais temos que compreender um processo que envolve coleta, qualificação, transformação, análise e distribuição de suas informações tanto quanto os cenários onde elas são disponibilizadas.

Questão que nos aproxima do paradigma dos quatro universos que regem a modelagem matemática da imagem digital apresentado por Gomes e Velho (1995), e que nos permite compreender como a imagem-síntese faz a passagem do mundo real, onde os sinais são contínuos, para o mundo do computador e de suas redes digitais e eletrônicas, onde tudo é discreto. O paradigma dos quatro universos refere-se a: 1) o universo Físico, onde estão os objetos do mundo real; 2) o universo matemático, onde são formuladas as descrições abstratas desses objetos; 3) o universo de representação que transfere as descrições abstratas para o mundo digital (é onde se dará a discretização dos sinais contínuos) e, finalmente, 4) o universo de implementação onde é feita a codificação do sinal discretizado na memória do computador através de uma estrutura de dados.

Por esta razão precisamente, ou seja, capacidade narrativa que subsidia o processo de discretização da representação etnográfica contínua do mundo real, é que pontuamos relevância, para o nosso caso, do uso das mídias eletrônicas e digitais e suas linguagens para a escrita etnográfica dos jogos da memória, sob a forma de práticas etnográficas hipertextuais, no contexto de uma etnografia da duração. Tal processo nos permite refletir sobre os novos procedimentos de sínteses intelectuais para o estudo dos dados etnográficos captados desde o seu fluxo original, ao longo do trabalho de campo do antropólogo, nas pesquisas de campo, tanto quanto dos conjuntos documentais presentes nos arquivos públicos (museus, bibliotecas, centros de pesquisas) ou nos acervos pessoais de nossos parceiros de pesquisa.

O tempo vivido e narrado: a pesquisa de campo

De Porto Alegre (capital do Estado) até a região das missões, no noroeste do Rio Grande do Sul, são cerca de 8 horas de viagem por transporte rodoviário. A terra vermelha anuncia ao viajante a aproximação à região missioneira. Esta deferência regional se deve ao processo histórico colonizador (desde o século XVI) pela criação das missões evangelizadoras pelos padres jesuítas espanhóis da Companhia de Jesus. A leste do rio Uruguai, as missões orientais deram origem a sete reduções com destaque para a de São Miguel Arcanjo pelo monumental patrimônio arquitetônico concluído em 1745 e destruído em guerras e saques, em especial no início do século XIX (Guerra Cisplatina). Os panfletos turísticos apresentam a origem das cidades missioneiras com base em sete aldeamentos indígenas criados pelos jesuítas, ou sete povos das missões. As cidades missioneiras, como podemos apelidar os múltiplos núcleos urbanos que emergiram neste processo colonial, guardam rastros destes tempos fundacionais, como as ruínas do complexo jesuítico edificado e os sítios arqueológicos (cemitérios indígenas) tombados pela UNESCO como patrimônio mundial em 1983.

Filmar a paisagem missioneira implica em percorrer estas territorialidades de Santo Ângelo, São Luiz Gonzaga, Bossoroca e outras cidades do noroeste gaúcho como Cruz Alta e Vicente Dutra que visitamos. As viagens se deram entre os anos 1998 a 2005. Lugares que chegamos por redes de amigos e parentesco de alunos e colegas de profissão. Sempre recebidas por pesquisadores com estudos nestes contextos, para mediar nossa inserção, chegávamos aos grupos citadinos ou rurais para as visitas da equipe, sendo acolhida em suas casas. Entre rodas de chimarrão e cafés próximo ao fogão de lenha, as apresentações se davam para inserir o propósito do projeto fílmico de ouvir suas histórias. Logo os interlocutores nos levavam para longas caminhadas na cidade em suas ruas, praças, museus locais e outras instituições oficiais, ou nos deslocávamos para a zona rural, conhecendo os sítios arqueológicos, as ruínas, os cemitérios indígenas. Por fim nos assentávamos com os anfitriões nos pátios ou nos galpões para ouvir suas narrativas sobre os lugares encantados com prováveis tesouros enterrados ou relatos de aparições e assombrações.

IMAGEM 1

As colaborações com a pesquisa foram generosas. Famílias de descendência indígena, portuguesa, italiana, alemã ou afro descendentes, a multiplicidade étnica coloria nosso imaginário sobre a trajetória histórica dos lugares de pertença dos narradores. As narrativas registradas, as fotos realizadas, as documentações inventariadas foram sendo trabalhadas como acervo das coleções etnográficas do Banco de Imagens e Efeitos Visuais resultando em filmes, exposições, dvds, artigos, orientação de dissertação e de tese, e, finalmente, em imagens visuais e sonoras para o jogo eletrônico publicado na forma de capítulo de livro (Rocha e Eckert, 2015).

As estruturas constelares e a escrita de uma etnografia da duração

Para nós, no caso que aqui relatamos, trata-se de abraçar o desafio da produção de narrativas etnográficas com base na criação de coleções etnográficas multimídia, oriundas de diferentes fontes de origem, e da sua disponibilização nas redes mundiais de computadores na forma de dvds interativos ou jogos digitais, tendo por base o método de convergência desenvolvido por G. Durand (1982, 1984, 2000) em seus estudos de “mitodologia”, conforme já comentamos em outras de nossas produções escritas (Rocha e Eckert, 2013, 2015).

Por um lado, ao se operar com acervos digitais os estudos e pesquisas desenvolvidos no âmbito do Banco de Imagens e Efeitos Visuais se aproximam de núcleos de pesquisas de outros tantos "lugares" onde se processa o estudo da memória da contemporaneidade, nacionais ou internacionais, considerados como espaços de preservação de simulacros das culturas e sociedades humanas, tais como os arquivos, as bibliotecas e os museus. Lugares simbólicos onde se concentram as comemorações e os emblemas de uma comunidade, em que podemos escutar suas narrativas das experiências temporais e geracionais (Ricoeur, 1994). Por outro lado, os acervos digitais que estão sob a guarda do Banco de Imagens e Efeitos Visuais, resultado dos anos de pesquisa de seus integrantes, tem nos permitido uma reflexão acerca das diferentes possibilidades da representação etnográfica de dialogar com os dados sensíveis da vida social por intermédio das formas como o teatro da vida urbana nas grandes metrópoles contemporâneas se manifesta como um sistema adaptativo complexo e não linear (Jenks, 1995).

Para o caso da criação de uma etnografia hipertextual, há que se pensar que, no ilusionismo provocado pela imagem-síntese, o observador interage com a representação: clicar na imagem ou no menu, tomando decisões ou selecionando, caracterizando-se por uma dinâmica temporal singular: a relação do usuário com os atos artificiais, incompletos e desconstrutivos da máquina do computador.

Neste ponto, a criação de acervos digitais multimídia não obedece a lógica clássica das formas de exposição de conjuntos documentais, sem que os mesmos estejam reunidos em um único e mesmo lugar, já que as visitas virtuais desafiam e provocam o espectador a diferentes tipos de atos cognitivos: analisar diferentes conjuntos de informações, processar uma busca, iniciar suas aplicações, navegar através das páginas da tela, novamente iniciar outra busca, e assim sucessivamente, num mesmo tempo, através de múltiplas telas abertas, que vão lhe exigir sempre novas perguntas e novas respostas.

Trata-se de um ato de busca por uma pluralidade de dados que as novas tecnologias mais integrativas e interativas permitem. Para nosso projeto, implica em acolher, em seu processo contínuo de criação e recriação de imagens da cidade, os espaços praticados (De Certeau, 1984), os tempos pensados e vividos (Bachelard, 1963), a produção de novos registros visuais e sonoros da vida urbana local a partir da investigação de narrativas etnográficas baseadas nos efeitos de poesis das imagens passadas e presentes (Debray, 1994).

Na perspectiva de uma etnografia da duração, procuramos inserir “os objetos perdidos” de uma determinada sociedade e cultura numa ordem de sentido, a do tempo presente e de sua força de germinação. Em especial, no caso de uma antropologia em hipertexto os/as leitores são convidados a contemplarem as lembranças dos fragmentos e dos objetos não como formações naturais de uma cultura urbana, mas como “imagens culturais” dispostas segundo certos laços de proximidade entre si. No BIEV, a produção de hipertextos de documentos etnográficos orienta a pesquisa pelo sistema de navegação em sua base de dados. O sistema é guiado pelos laços que os unem. Tais laços correspondem às formas de classificação adotadas para esse tipo de documento (sons, vídeos, fotos e textos), não mais pensados isoladamente, conforme a especificidade de seus suportes, mas reunidos em coleções de fragmentos hipertextuais.6

Para o caso dos acervos digitais de objetos e fragmentos da cultura a destruição da linearidade de sua leitura é um passo importante rumo a uma estrutura constelar que presidem os jogos da memória, contrariando o imobilismo e a cristalização de seus significados. As coleções etnográficas aqui podem ser consideradas em seu caráter de ruína (no sentido de Georg Simmel apud Souza, 1998) e de farrapos, escombros e detritos (no sentido de Benjamin, 1986:574).

IMAGEM 2

O jogo e a arte de jogar como possibilidades narrativas

Poeira do Tempo, percursos etnográficos: figurações da memória no sul do Brasil

Sinopse: “Vamos aprender um pouco das velhas lendas rio-grandenses cuja ancianidade subsiste na tradição oral, hoje quase perdida e meio confusa, tramada no acervo das paisagens de antanho e nas lembranças dos antigos.” O jogo eletrônico não linear que foi desenvolvido pelo Banco de Imagens e Efeitos Visuais, constrói uma experiência de imersão nas lendas e estórias do folclore gaúcho. Em meio a jornada, o usuário percorre ambientes diferentes segundo os múltiplos temas que as narrativas contemplam.

Normas: Existe a duas etapas: a primeira é a execução do aplicativo que faz a instalação do game, a segunda é a execução do próprio game.<p/>

Instalação: Ao executar o arquivo da mídia DVD, inicia-se a cópia e descompactação do game do DVD para dentro do PC, isso porque ficaria muito lento usar o game lendo direto do DVD. Algumas telas de diálogo vão informando esse processo que pode levar de 4 a 12 minutos dependendo da configuração do PC, drive, etc. A velocidade de gravação é feita na mais lenta para eliminar erros que possam ocorrer em drives de DVD mais antigos.

Execução: Para executar o game: clicar uma vez somente no ícone “Poeiras do Tempo” e aguardar. Deve-se ter paciência nesta etapa da carga do game, ele é muito pesado, visto que 2/3 das referências de todos os vídeos do projeto são carregados nesse momento. Em nossos testes em PC mais atuais, a primeira tela do game aparece em 20-30 segundos, em outras pode levar até 3 minutos. As vezes o usuário pode achar que não carregou e clica várias vezes no ícone e isso só piora porque várias cópias são executadas ao mesmo tempo, tornando tudo mais lento.

Coordenação de Projeto: Ana Luiza Carvalho da Rocha, Cornelia Eckert

Coordenação de Projeto: Ana Luiza Carvalho da Rocha. Cornelia Eckert

Pesquisa de campo: Ana Luiza Carvalho da Rocha, Cornelia Eckert, Flávio Abreu da Silveira, Rafael Victorino Devos, Rosane Rubert

Paisagem sonora: Ana Luiza Carvalho da Rocha, Viviane Vedana, Pedro da Rocha Paim

Designer/ Produção de Arte: Luiz Antônio Carvalho da Rocha

Programação/Game: Sergio Mello (Enovative Design e Tecnologia)

Os jogos digitais ou jogos para computador tem hoje um grande mercado, sendo maior que o do cinema, movimentando, segundo Moita (2006), bilhões de dólares anualmente, ficando atrás apenas “da indústria bélica e da automobilística”. Fora o seu valor na indústria do entretenimento, os games tem sido objeto de estudo e pesquisa na área da psicologia e da pedagogia, como o caso dos estudos da referida autora.

Quanto a indústria de games, não se trata de um campo tranquilo de produção intelectual. Ora reconhecidos pelas novas formas de aprendizagem que possibilitam em termos do desempenho de competências cognitivas por parte dos indivíduos, ora, ao contrário, detratados por serem artefatos culturais “alienantes”, uma vez que, segundo tal ponto de vista, cultivam valores sociais e culturais de uma sociedade de consumo, influenciando de forma nefasta o comportamento dos indivíduos. Os jogos digitais e seus ambientes virtuais despertam as mais variadas reações por parte dos intelectuais e pesquisadores.

No entanto a formação de grupos de investigação sobre o tema do entretenimento digital no âmbito das universidades brasileiras, além dos inúmeros editais FINEP/CNPq7, fomentando a área de entretenimento, tem conduzido ao reconhecimento dos jogos computadorizados como uma obra audiovisual de impacto no campo científico e seu mercado como um fenômeno cultural significativo das sociedades contemporâneas. Nesta via citamos a criação da linha de “financiamentoJogoBR” (2015), concurso promovido pelo Ministério da Cultura (http://www.cultura.gov.br/edital-jogos-eletronicos) e destinado ao financiamento de jogos eletrônicos de temática livre, voltados “para adolescência e juventude” assim como o desenvolvimento de pesquisas aplicadas em jogos computadorizadas no âmbito acadêmico.

Para nós o DVD Poeiras do tempo, percursos etnográficos significou no corpo das investigações do BIEV, o desafio de expandirmos a arte de narrar da Antropologia audiovisual para a modalidade de jogos eletrônicos. Um desafio metodológico e uma aposta nos procedimentos de criação de novas formas de produção de conhecimentos no campo das práticas e saberes antropológicos. E como veremos a seguir, a produção da referida obra audiovisual não resultou num esforço de simples adaptação dos formatos clássicos das narrativas etnográficas audiovisuais que o Banco de Imagens e Efeitos Visuais vem produzido já há algum tempo no campo da pesquisa da Antropologia Visual e/ou da Imagem (etnografias em hipermídias), agora direcionada ao processo de fabricação de jogos eletrônicos.

Bem ao contrário, na feitura do game acabamos cruzando fronteiras de linguagens bem complexas, na produção de uma obra híbrida, resultado de um diálogo intertextual mais intenso entre o gênero narrativo do documentário etnográfico, e de suas influências do cinema documental, por um lado, e os gêneros narrativos que acompanham o processo de criação dos jogos digitais, por outro lado. O projeto do qual resulta o game Poeiras do Tempos, figurinos do imaginário sul-rio-grandense traduziu uma oportunidade singular de mergulharmos mais profundamente em outras formas de contar histórias sobre o processo de instauração de uma civilização urbana e industrial no sul do Brasil, a partir das lendas e estórias fundacionais de ocupação territorial de sua terras, e onde a participação do usuário nos enredos apresentados se torna fundamental para o desencadeamento da trama a ser narrada.

Seguindo Janet Murray (2003) em seus estudos sobre as formas das narrativas digitais, consideramos trabalhar os jogos eletrônicos por suas novas potencialidades multissequenciais de contar/narrar histórias mediada pelo computador. O que aproxima a perspectiva de nossos estudos e pesquisa sobre os jogos da memória, com base nas contribuições de G. Durand (1984) acerca das estruturas antropológicas do imaginário com os estudos de J. Murray, é o fato da autora apontar que os jogos eletrônicos, no âmbito de suas formas de narrativas interativas, remeterem a algumas estruturas arquetípicas das narrativas lendárias e míticas das sociedades humanas, tendo por argumento e/ou roteiro, em sua maioria, histórias de mistério, envolvendo enigmas e charadas. Neste sentido, em termos de uma gênese dos jogos eletrônicos podemos compreendê-los como parte integrante de uma série de artefatos culturais produzidos pelas sociedades humanas, assim como o cinema e o vídeo, teatro e literatura, pintura e música, etc.

Dito isto, não estamos reduzindo uns aos outros. Sem dúvida, como apontam autores tais como Espen Aarseth (2005), Jesper Juul (2003), entre outros, os jogos digitais não são uma simples “mistura” do cinema e do vídeo em termos de suas possibilidades narrativas ainda que possamos combiná-los, nem se confundem como “estórias”, discordando de Murray (2003: 2), segundo o qual, “games are always stories”. Para alguns profissionais da área dos jogos eletrônicos influenciados pelos estudos de Wittgenstein, em suas Investigações Filosóficas (1975), e suas ponderações sobre as formas de vida e os jogos de linguagem como práxis comunicativa interpessoal, o ato de jogar se diferencia do ato de narrar estórias.

Cabe ressaltar um série de outros autores, aos quais nos filiamos, que apontam para uma influência recíproca cada vez mais forte entre os jogos de simulação por computador e as outras mídias. É graças aos recursos gráficos e computacionais cada vez mais sofisticados que os jogos eletrônicos ganharam novas potencialidades narrativas, tornando-se, cada vez mais, dotados de características fantásticas ou similares à realidade, criando uma atmosfera imersiva para o jogador.

Em nossas ponderações não vamos nos deter nos debates específicos acerca dos jogos digitais objetos versus processo ou das relações que existem entre os aspectos de funcionalidade, jogabilidade ou referencialidade dos jogos eletrônicos e seus contextos sociais, culturais ou históricos de origem a partir da simples aplicabilidade de conceitos e teorias do campo da Narratologia para os estudos dos jogos digitais. Como antropólogas que somos é fundamental se reconhecer que, não por acaso, seja por aproximação, seja por distanciamento, os estudiosos dos games tem como referência os estudos clássicos sobre o lúdico de J. Huizinga (Homo Ludens, 1992) e de Roger Caillois (Les jeux et les hommes, le masque et le vertige, 1992) para suas reflexões. Neste sentido, de uma forma ou de outra, conforme aponta Janet Murray, entre os formatos digitais, os jogos eletrônicos podem ser considerados como um dos roteiros ficcionais que mais evoluem nos dias atuais. Segundo a autora, as inovações tecnológicas na área de produção de games nos últimos 15 anos abriu espaço para a criação de estruturas de jogos mais complexas e elaboradas, agregando virtualmente elementos da linguagem cinematográfica como a música, a animação, os efeitos especiais, etc., tanto quanto aproximou as suas linguagens com processos narrativos oriundos dos livros, de quadrinhos, cinema, vídeo, desenhos animados, televisão, entre outros.

Alguns apontamentos de partida

Como primeiro apontamento do processo de criação do game Poeiras do Tempos, figurinos do imaginário sul-rio-grandense é importante assinalar sua feição transdisciplinar uma vez que sua produção não abarca apenas as funções do software adotado para a sua criação mas traduz o esforço conjunto de vários profissionais: artista, designer, roteirista, antropólogo, programador, etc.

O primeiro desafio foi o de compor uma lista de metas do jogo. Segundo Henry Jenks (2009) uma história transmidiática desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. A convergência de mídias que daria origem ao game nos demandava uma nova mudança de paradigma em relação a produção de narrativas etnográficas a partir da criação de dvds interativos. Estudos como de Hunicke, Leblanc e Zubek (2015), que descreve três componentes básicos para o desenvolvimento de jogo (mecânica, dinâmica e estética), nos dava pistas para esta ousadia, ainda que apoiadas que estávamos nos procedimentos dos estudos de “mitodologia” (Durand, 2000) aplicados por nós ao processo de produção de coleções etnográficas, no formato de constelações, seguindo os núcleos semânticos em torno dos quais se reuniam tais conjuntos documentais.

Tratamos, assim, de construir o diálogo entre os estudos durandianos de mitocrítica e mitoanálise aplicados os estudos das narrativas transmidiáticas, nos moldes dos estudos de H. Jencks. Para o autor, os estudos de narrativas transmídia exige “um descolamento de conteúdo de mídia específico a um conteúdo que flui por vários canais, em direção a uma elevada interdependência de sistemas de comunicação, em direção a múltiplos modos de acesso a conteúdos de mídia e em direção a relações cada vez mais complexas entre mídia corporativa, de cima para baixo, e a cultura participativa de baixo para cima” (2006: 325).

A composição da lista de metas nos conduziu, por sua vez, a refletir ainda que de forma provisória sobre a estrutura narrativa do game a ser construída, e que fora pensada originalmente como uma aventura no interior do imaginário popular gaúcho, com o jogador seguindo sua estrutura de labirintos e de níveis, organizados previamente de acordo com seus símbolos, esquemas e gestos nos moldes proposto por Gilbert Durand (1984), na sua obra As estruturas antropológicas do Imaginário.

Nossa inspiração primordial foram os jogos de enigma que tem por base o uso de recursos avançados de gráficos e sons para criar ambientações da paisagem rio-grandense, apostando no engajamento mais lento na história para sugerir um mergulho no poder dramático das estórias que são narradas segundo seus respectivos cenários e personagens. Novamente nos apoiávamos nos comentários de J. Murray (2003) para a qual os jogos eletrônicos adquirem possibilidades inéditas de narrativas interativas a partir da mídia digital. Sons, gráficos, desenhos e personagens passam a ser especialmente criados para orientar o jogador para um passeio na ficção. Tendo em vista o apelo a navegabilidade, esta é mais presente no ambiente digital do que nas mídias tradicionais.

Passamos, assim, a uma das primeiras etapas do processo de elaboração do jogo que é o que costuma denominar a “confecção do design bible”. Isto significou pensar um universo ficcional a partir do detalhamento de todas as especificações dos conjuntos documentais multimídia que fariam parte do desenvolvimento do jogo, organizados no formato de três constelações de imagens: Figurinos do Imaginário, Histórias Fantásticas, Mundo dos Antigos. Cada uma delas orientada no sentido das três grandes estruturas concebidas por G. Durand para pensar o espaço fantástico da memória e suas modalidades narrativas em conformidade com o dinamismo de seus símbolos: Figurinos do Imaginário (simbolismo das sombras, simbolismo da animalidade, simbolismo da espada), Histórias Fantásticas (simbolismo das visagens, simbolismo da lua, simbolismo do sepulcro) e Mundo dos Antigos (simbolismo da roda, simbolismo da árvore, simbolismo dos grãos). As três grandes constelações de imagens desdobravam-se, cada uma, por três esquemas e seus simbolismos correspondentes na modalidade de coleções etnográficas multimídia (reportagens em forma de texto, sons, vídeos e fotografias) a elas associadas.

Apoiando-nos nestes procedimentos de organização de imagens universais (arquetípicas) em constelações, e em narrações, a proposta inicial seria a de mergulhar o jogador-personagem do game numa ambiência transformadora de sua experiência com os relatos históricos e mitológicos da formação da sociedade gaúcha, segundo o método da convergência que pressupõe que não há nenhuma anterioridade entre as três classes de estruturas e de seus símbolos organizadores das modalidades simbólicas de controle do Tempo.

Para a criação das ambientações e cenários, os personagens e seus enredos ao adotarmos estas três classes de estruturas pensamos nos três esquemas8 que comportam os gestos fundacionais da sociedade gaúcha: o gesto do herói solar, correspondente à verticalidade da postura humana e a dois schèmes: o da subida e o da divisão (visual ou manual), sintetizado na figura do conquistador da terra gaúcha (O mundo dos antigos); o gesto do herói lunar, corresponde ao schème digestivo e seus simbolismo, do repouso, do refúgio, da comunhão, onde se destaca a figura do missionário (Histórias fantásticas) e, finalmente, o gesto do peregrino, correspondendo aos schèmes erótico do progredir e do avançar, associado a figura do colonizador (Figurinos do imaginário).9

Um ponto importante a ressaltar acerca da produção de um roteiro para jogos eletrônicos em comparação com roteiros de documentários e de filmes é que, apesar da semelhança, precisamos pensar na interferência do usuário para o desencadeamento da estória a ser narrada, disto dependendo o estilo de jogo a ser desenvolvido.

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Adentramos, neste momento, no desafio de pensar o desenho do jogo (game design) propriamente dito, ou seja, sua conceituação artística. Tendo em vista a complexidade de imersão do usuário nas estórias e nos seus respectivos cenários, suas 3 divisões, níveis e subníveis, pensamos as peculiaridades das paisagens do Rio Grande do Sul para situar as diferentes intrigas e tramas da história. A escolha de cada uma das paisagens, dos personagens (animais) e dos enredos que conduzem a as estórias narradas se deu em função da adequação dos enredos e seus esquemas aos schèmes, aos gestos e as posturas que orientaram os mitos fundacionais da sociedade gaúcha.

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Seguindo no processo de criação do jogo, iniciamos a parte de concepção do game play, momento em que foi necessário descrever o princípio da sua “jogabilidade”, ou seja, parte das regras do jogo e o seu balanceamento na medida em que as estórias narradas se desenvolvem (game balancing). Nesta parte, foi fundamental a participação do game designer (o artista plástico Nico Rocha) no sentido de guiar os programadores no interior das ideais iniciais que tínhamos para o jogo (etapa de scripting).

A conceituação artística do jogo pelo game designer nos permitiu avançar na criação dos cenários e dos seus entrelaçamentos complexos e, assim, permitir a visualização dos múltiplos enredos em termos do detalhamento de suas ambientações e suas texturas fundamentais, das características dos cenários, do esboço dos personagens, mapas e descrições das fases (level design) da trama a ser narrada seus reflexos para o adensamento das estórias a seguidas pelos jogadores.

A proposta inicial da “jogabilidade” seguiu o seguinte percurso:

Elaboração de roteiros a partir da produção de imagens acervadas no Banco de Imagens e Efeitos Visuais.

Os roteiros seguiram as seguintes proposições: 

Histórias fantásticas (a gruta, as fendas, as galerias e os salões)

Argumento: O deslocamento no interior de uma caverna, o jogador percorre os ambientes derivados do anterior, deparando-se em objetos que o conduzem a reportagens sobre a passagem do tempo na vida cotidiana no interior do Rio Grande do Sul.

Schéme: O gesto de descer, penetrar, possuir

Movimento: da luz para as sombras

 Figurinos do Imaginário

Argumento: Entardecer, anúncio da lua no céu, o jogador prossegue mato a dentro e se embrenha numa trilha do mato e se desloca até encontrar uma clareira, sobre os escombros de ruínas. No percurso deparando-se em objetos que o conduzem a reportagens sobre a figura do gaúcho e seu cortejo de símbolos no interior do Rio Grande do Sul.

Schème: O gesto de ligar, de tecer, de tramar, de avançar

Movimento: Progressão horizontal

 Mundo dos antigos

Argumento: O percurso do jogador no ambiente de falésias e vales entrelaça o deslocamento das estórias narradas pelos “antigos”, abarcando biografias, seus saberes e seus fazeres.

Schème: O gesto de ascender, do separar

Movimento: progressão ascensional e vertical

 Histórias fantásticas

Deslocamento sinuoso no interior de uma caverna, sempre descendo, cada vez mais até o escuro de uma caverna, onde a presença de sombras nos conduz a tesouros enterrados. O sentimento de ser engolido pela terra, e de descobrir no seu ventre um mundo de riquezas e de abundância de tesouros.

Nas fendas, as estórias de aparições (interligam trechos inclinados ou mesmo abismos internos de galerias)

Nas galerias, as estórias de assombros (Constituem a maior parte dos caminhos internos da caverna. Se forem largos e altos, permitem a caminhada em pé. Quando estreitas ou muito baixas, exigem que se rasteje para atravessá-las. Podem ter desníveis de diversos ângulos.)

Nos salões, as estórias dos guardados (Os salões podem adquirir dimensões monumentais de até centenas de metros de largura e altura. Grandes rochas desabadas e outros sedimentos podem se acumular no chão e dificultar o trajeto.)

 Figurinos do Imaginário

O mato, o pequeno curso de água, as clareiras, as ruínas cobertas de vegetação. O que move a estória narrada é o deslocamento no final do dia até o anoitecer e o encadeamento a partir da passagem diferenciada pelos ambientes no interior do capão, de sua entrada até a sua saída, com a chegada da noite.

Na entrada da mata/capão as estórias contendo as figuras do bestiário

Nas ruínas abandonadas as estórias contendo o simbolismo das sombras

Ao longo do curso de águas as estórias contendo o simbolismo da viagem

 Mundo dos Antigos

O voo se inicia no fundo do vale (curso de um rio), se desloca pelas encostas e termina sobre o cume do desfiladeiro. O voo da águia real, de baixo para cima, do abaixo ao acima, do baixo e do alto.

No fundo do vale, as gargantas localizam-se as estórias contendo o simbolismo da queda

Nos paredões e encostas localizam-se as estórias contendo o simbolismo da verticalidade.

Acima do desfiladeiro localizam-se as estórias contendo o simbolismo do sol

No esforço de criar uma interface lúdica para o jogo digital Poeiras do Tempo, figurinos do imaginário gaúcho, foram produzidos roteiros como guia das inúmeras estórias e narrativas apresentadas.

Tais roteiros implicavam, por sua vez, certos procedimentos e regras de navegação nas paisagens ficcionais criadas e que o jogador-personagem descobre durante a própria exploração de seus cenários (movimentos horizontais, verticais, de aceleração, etc.), criados por estéticas específicas segundo certos critérios (cores, efeitos sonoros, desenhos gráficos): capões, matas, montanhas, coxilhas, vales, rios, cavernas, etc.), nos termos descritos por Schell (2008).

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O jogo e os atos de jogar, em suas múltiplas interpretações

Passamos agora brevemente a uma descrição de uma diminuta parte de todo esse processo. Um jogo pode ser representado de diversas formas. Entretanto, em sua forma extensiva, dentre as principais formas de representação gráfica obedecemos a estrutura de árvore, de forma que fosse possível na ambiência 3D do jogo representar os percursos etnográficos no mundo ficcional das lendas e estórias que conformaram alguns dos mitos fundacionais da sociedade gaúcha, segundo mudanças sequenciais de paisagens.

A motivação principal da equipe, envolvida na criação do jogo digital Poeiras do Tempo, não foi a de promover desafios, disputas e recompensas ao jogador-personagem mas sim a de oferecer mecanismos para que o mesmo pudesse usufruir das diferentes paisagens nas quais as estórias e as suas diferentes faces se tornam presentes ao longo dos diversos percursos. A proposta para o(a) jogador(a)-personagem é de aprender um pouco das velhas lendas rio-grandenses cuja ancianidade subsiste na tradição oral, dispersa nas lembranças, tramada no acervo das paisagens de antanho e nas reminiscências dos antigos.

Sem dúvida, desenvolver um caráter lúdico para o jogador ao percorrer os trajetos foi um dos outros tantos desafios. Seguimos assim a proposta de Schuytema (2008) para os jogos digitais, ou seja, que ele se traduza numa atividade lúdica formada por ações e decisões que resultam numa condição final de acesso ao amplo universo onde o jogador é desafiado a aventurar-se por percursos a serem descobertos (obviamente tais decisões e ações tem um escopo limitado em razão de ser regido por um conjunto de regras geridas por um programa de computador).

Numa perspectiva mais pragmática da composição do campo de possibilidade das decisões e ações do jogador no interior das paisagens e ambiências propostas para evocar as lendas e as estórias apresentadas no Poeiras do Tempo, preocupamo-nos basicamente com as três partes que Battaiola (2006) afirma ser importante para a criação de um jogo eletrônico: enredo, motor e interface interativa.

O interior da gruta

Os portais

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Neste sentido, o enredo (uma aventura no interior do imaginário popular gaúcho, com o jogador seguindo sua estrutura de labirintos e de níveis, organizados previamente de acordo com seus símbolos, esquemas e gestos) definiria o tema das paisagens que se entrelaçam no jogo; a trama revela evidentemente os objetivos dos percursos etnográficos propostos e as sequências às formas como as estórias e lendas surgem associadas a certos tempos e espaços.

O motor do jogo, ou seja, a criação de roteiros, foi sendo concebido a partir do detalhamento de todas as especificações dos conjuntos documentais multimídia que fariam parte do desenvolvimento do jogo, organizados no formato de três constelações de imagens: Figurinos do Imaginário, Histórias Fantásticas, Mundo dos Antigos. Mecanismo que controla a reação do ambiente às ações e decisões do jogador, efetuando as alterações de estado neste ambiente, noite/dia, vales/montanhas, etc.

Finalmente, foi a interface interativa criada que permitiu o deslocamento e comunicação do jogador com o motor do jogo, que fornece um caminho de entrada para as suas ações e um caminho de saída referentes às mudanças do estado dos ambientes e das paisagens ao longo dos seus diversos percursos.

Neste ponto, a nossa proposta de jogo digital, seguimos as orientações apontadas por Juul (1998, 2003) que afirma que a existência de mundos fictícios, no interior de um mundo lúdico único onde o jogo se desenvolve através de elementos gráficos interativos dispostos num monitor, ser a principal característica que distingue os jogos digitais dos não-digitais.

Dentre as características e critérios mais comuns, pode-se citar o objetivo do jogo, segundo as categorias propostas por Crawford (1982): o jogo Poeiras do Tempos, figurinos do imaginário sul-rio-grandense, dialoga, por um lado, ainda que timidamente, com jogos de ação, onde o jogador-personagem, na maior parte do tempo, é desafiado a reagir diante dos estímulos audiovisuais das múltiplas paisagens que lhes é apresentada, num formato que alude ao labirinto na medida em que o jogo apresenta um ambiente composto por vários caminhos que, eventualmente, o jogador necessita descobrir até um local específico, onde as estórias se desenrolam. Por outro lado, também dialoga com jogos de aventura para crianças onde o jogador, com base em um raciocínio exploratório, deve se mover por mundos e ambientes diversos para que sejam alcançados os locais onde os narradores e suas estórias habitam.

Obviamente, a questão ficcional da realidade virtual criada, ativa e dinâmica, faz parte do jogo proposto. No caso aqui descrito e alvitrado, não se trata de um jogo que tenha em suas regras formais metas contraditórias e/ou conflitos determinados que estão associados ou são dependentes das ações escolhidas pelo jogador-personagem.

Na modelagem do jogo, está previsto, o fator tempo. Como uma variável da entrada de determinadas transições de paisagens e cenários. O que indica ao jogador-personagem que suas ações no ambiente virtual gráfico, com base na lógica da sua exploração, afetam o enredo na medida do desenrolar dos percursos. Percursos cujas aventuras serão vividas na primeira pessoa (FPA, First Person Adventure), onde a posição do jogador é a do próprio personagem em suas experiências lúdicas nos diversos ambientes que tem como objetivo a exploração dos cenários onde vão sendo apresentadas as estórias e narrativas do folclore popular gaúcho.

A guisa de conclusão

Uma grande aprendizagem, para nós antropólogas oriundas do campo de pesquisa da Antropologia Visual e da Imagem, foi a de interagir com os componentes básicos para o desenvolvimento de jogos digitais aos quais, como linguagem e tecnologia, não estávamos acostumadas em termos de modalidades de narrativas etnográficas. Nossa experiência com as linguagens audiovisuais (fotografia, vídeo, desenhos, etc.) assim como a escrita não tinham sentido no âmbito do processo de desenvolvimento do jogo. Neste ponto em particular os estudos de Hunicke, Leblanc e Zubek (2015) para descrever os três componentes básicos para o desenvolvimento de jogo (mecânica, dinâmica e estética) foram de extrema relevância para a modelagem de nossas narrativas etnográficas a partir da ambiência de um jogo eletrônico.

Seguimos inspiradas no método de convergência, nos moldes descritos por Gilbert Durand em seus estudos de mitocrítica e mitoanálise. A estrutura das coleções etnográficas com base em multimídias foram fundamentais para definir a mecânica do jogo. Tendo a disposição os materiais produzidos, foi possível ao artista criar a composição visual das distintas ambiências ficcionais do jogo tanto quanto os movimentos, objetivos e as opções de controle a serem disponibilizados para o jogador-personagem em seus percursos nos diversos cenários onde as estórias estão apresentadas. Da mesma forma, os conjuntos documentais separados segundo seus núcleos semânticos (Figurinos do imaginário, Mundo dos Antigos e Histórias fantásticas) que orientaram a formação das coleções multimídia foram fundamentais para construir a dinâmica do jogo, ou seja, os comportamentos que resultaram da aplicação da sua mecânica tanto quanto da fruição estética que acompanharia tais desempenhos.

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1. Doutora em Antropologia Social, Paris V Sorbonne. Professora no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, IFCH, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre

2. Doutora em Antropologia Social, Université Paris V, Sorbonne. Professora no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, IFCH, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. Pesquisadora CNPq.

3. O projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais recebeu apoio da FAPERGS, CNPq e CAPES. Este trabalho é fruto de inúmeras contribuições de bolsistas de iniciação científica CNPq e FAPERGS, bolsistas de apoio técnico CNPq e pesquisadores associados ao BIEV com bolsas CNPq ou CAPES que contribuíram ou têm contribuído, desde 1998, com o seu trabalho para a realização da pesquisa.

4. https://www.ufrgs.br/biev/

6. Para uma reflexão mais aprofundada sobre como o Biev trabalha com hipermédia e hipertexto e um debate sobre o tema, sugerimos a leitura do livro Rocha e Eckert (2015).

7. Financiadora de Estudos e Projetos / Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

8. Fazemos aqui uma diferença, seguindo os comentários de G. Durand, com base nos estudos de J. Piaget (1978) sobre a psicologia da inteligência entre esquema (schemá) entendido mais comumente segundo as estabilidade das estruturas das invariantes operatórias de um diagrama, plano ou modelo e o schème, relacionado a mobilidade/movência o pensamento inteligente, que se lança em ação, se projeta em relação ao mundo cósmico e social.

9. O fundamento da adoção de tais arquétipos, schèmes e esquemas para a narrativa transmidiática do jogo esta relacionada aos argumentos da tese de doutorado de Ana Luiza Carvalho da Rocha (1994).