A sexualidade como campo de batalha no Twitter: grupos religiosos e movimento feminista e LGBT na luta em torno
dos direitos sexuais
por Jair de Souza Ramos1
de Souza Ramos, Jair (2019). “A sexualidade como campo de batalha no Twitter: grupos religiosos e movimento feminista e LGBT na luta em torno dos direitos sexuais”, Etnografías Contemporáneas, año 5, N° 9, pp. 204-226.
Resumo
A partir de sua estruturação na Web 2.0, as tecnologias de comunicação digital tem aprimorado e difundido uma agência algorítmica que estimula e administra socialidades digitais de forma cada vez mais ampla e disseminada às inúmeras relações sociais e, entre elas, as que constituem a dimensão da política. Nosso objetivo nesse artigo será apresentar algumas ideias acerca do modo como as plataformas digitais fornecem uma moldura a embates políticos para, a partir daí, examinar, em dois momentos específicos, as estratégias que opuseram na Internet grupos religiosos e movimentos feministas e LGBT em lutas políticas ocorridas no Brasil. Estas lutas tiveram por objeto ações no legislativo e, em certa medida no judiciário, articulando as dimensões online e offline, e tiveram como foco temas relativos a corpo, sexualidade e religiosidade.
Palavras-chave: Ciberativismo, Direitos Sexuais, Neopentecostalismo
Sexuality as a battlefield in Twitter: religious groups, feminist movement and LGBT in the struggle for sexual rights.
Abstract
Since its structuring in Web 2.0, digital communication technologies have developed and spread an algorithmic agency that enhances and manages digital socialities in an increasingly broad and disseminated way to countless social relations and, among them, political struggles. The purpose of this article is to present some ideas about how digital platforms provide a framework for political struggles. We will examine the strategies put into action, in two specific moments of political conflict in Brazil, in the clashes between religious groups and feminist and LGBT movements on the Internet. These struggles have involved actions in the legislative and, to a certain extent, in the judiciary, articulating the online and offline dimensions, and focusing on topics related to body, sexuality and religiosity.
Key words: Cyberactivism, sexual rights, neopentecostalism
Resumen
A partir de su estructuración en la Web 2.0, las tecnologías de comunicación digital han difundido una agencia algorítmica que estimula y administra socialidades digitales de forma cada vez más amplia y disseminada en las innumerables relaciones sociales y entre ellas las luchas políticas. Nuestro objetivo en este artículo es presentar algunas ideas acerca de cómo las plataformas digitales proporcionan un marco para los conflictos políticos. Examinaremos las estrategias puestas en acción, en dos momentos específicos de las luchas políticas ocurridas en Brasil, en los conflictos entre grupos religiosos y movimientos feministas y LGBT en Internet. Estas luchas han involucrado acciones en el ámbito legislativo y, en cierta medida en el poder judicial, lo que configura una articulación de las dimensiones online y offline, y tuvieron como foco temas relativos a cuerpo, sexualidad y religiosidad.
Palabras clave: Ciberactivismo, derechos sexuales, neopentecostalismo
Recibido: 18 de febrero 2019
Aceptado: 23 de abril 2019
Introdução
A eleição presidencial de 2010 evidenciou o esforço de grupos religiosos em fazer da politização da sexualidade um campo moral de lutas capaz de exercer impacto sobre a reputação dos candidatos a cargos executivos e, através disso, aumentar a capacidade destes grupos influírem em políticas públicas que tem a sexualidade como objeto. Mais adiante, nesse artigo, iremos localizar, identificar e observar no campo do ciberespaço, as disputas politizadas que giram em torno da sexualidade em torno de duas situações que se desenrolaram em maio de 2011. Para tal, examinaremos a circulação de informação através do Twitter levada a cabo, de um lado, por políticos e militantes progressistas, LGBTs e feministas; e, de outro, por militantes religiosos e conservadores.
Mas nessa introdução quero precisar alguns pressupostos teóricos e metodológicos a partir dos quais essas ações estão sendo analisadas.
A ideia que gostaria de desenvolver é que a socialidade construída através das tecnologias de comunicação digital produz e é produzida por conteúdos que preenchem as categorias de tempo, espaço e identidade e de que esse fato tem consequências políticas. O leitor familiarizado com a teoria sociológica vai reconhecer aí uma temática durkheimiana, abordada no clássico As formas elementares da vida religiosa (Durkheim, 1989). Ora, como nos mostram Horst e Miller (2015), é necessário reconhecer os múltiplos planos da materialidade da Internet. E entre esses, o que os autores chamam de materialidade de contexto é exatamente o modo como a experiência dos sujeitos nas plataformas digitais acontecem numa moldura material de tempo, espaço e identidade que é coproduzida pela organização das plataformas e pela agência dos usuários. Podemos, assim, argumentar que as plataformas digitais dão materialidade e sentidos específicos a estas categorias e, a partir daí, servem de moldura a associações e lutas políticas.
A relação entre definições de tempo, espaço e identidade, de um lado, e mobilização política, de outro, está no cerne do conceito de Benedict Anderson de comunidade imaginada. De fato, a ideia de que as tecnologias de comunicação, de um modo geral, constroem sentido e materialidade destas categorias está na base da discussão conceitual de Benedict Anderson sobre o papel dos mapas, censos, monumentos, da literatura e, sobretudo, da imprensa na produção de nações imaginadas como comunidades (Anderson, 1983). A possibilidade de materializar quando, onde e quem (incluindo aí, as definições de nós e eles) como experiência coletiva depende de meios coletivos de representação e de comunicação. Na gradativa produção de comunidades imaginadas, os jornais desempenham um papel fundamental graças à sua periodicidade, à organização cronológica e espacial de sua narrativa, às suas temáticas vinculadas aos territórios e às populações, e à sua ênfase na existência mesma do nacional. Assim, meios de comunicação social materializam categorias de tempo, espaço e identidade e servem de moldura à constituição daquilo que Weber conceituou como relações sociais comunitárias, i.é., que se fundam numa copertença sentida entre os agentes (Weber, 2004:81)
Ora, as plataformas digitais são, primordialmente, tecnologias de comunicação. Mas não se trata simplesmente de comunicação privada envolvendo um emissor e um receptor face a face. As plataformas não são apenas uma arena onde indivíduos se relacionam. Em primeiro lugar, as plataformas abrigam e possibilitam uma comunicação coletiva. São vários indivíduos produzindo e recebendo informações simultaneamente. Em segundo lugar, a distribuição dessa informação (o que vai ser visto, e em que condições, e por quem) é organizada pela plataforma digital. Isso faz de tais plataformas, ferramentas de comunicação social. E é nessa condição que elas generalizam categorias de entendimento.
Uma expressão bastante conhecida da comunicação social exercida pelas plataformas, e do modo como elas generalizam categorias de entendimento, é a timeline, ferramenta que organiza o que circula como informação e entre quem. Essa organização é feita por algoritmos que operam a partir de três planos: a) padrões de ação e de classificação inscritos pelos programadores no código fonte; b) padrões identificados pelas máquinas nas ações e relações de atores humanos; c) padrões identificados pelos humanos nas ações das máquinas e de outros humanos. A timeline é fruto dessa relação circular em que máquinas e humanos agem e modificam suas ações a partir do entendimento, sempre dinâmico, do modo como o outro opera. Nesse sentido, a timeline é coproduzida por humanos e máquinas. Mas essa co-produção não constitui uma relação simétrica entre as partes, uma vez que a organização da comunicação social que atravessa e constrói a plataforma repousa, em última instância, sobre os algoritmos. A timeline é a face individualizada de uma organização coletiva e não uma organização individual per si.
O primeiro aspecto que quero ressaltar é o fato da timeline produzir uma ordenação temporal dos conteúdos apresentados ao usuário. Mas, além de dispor os conteúdos cronologicamente, a linha do tempo constrói um arranjo da percepção do tempo. Como um relógio, ou um jornal, ela marca o tempo para o leitor, informando-o do que acabou de acontecer - o que é urgente; do que já aconteceu há tempos - na forma de rememorações; de qual é o assunto do dia, entre outras marcações do tempo. Mais do que isso, ela constrói um ritmo próprio de atualização das informações - o chamado tempo real - que é mais curto do que aquele de outras mídias, como os jornais impressos e televisivos e, com isso, tenta manter o leitor em contínua conexão com a timeline.
Outra dimensão que atravessa a timeline é a do lugar. A maior parte dos aplicativos das plataformas digitais - Facebook, Twitter, Instagram e outros – tem mecanismos de localização espacial permitindo identificar de onde o usuário acessa sua conta e posta seus conteúdos. O principal deles consiste em extrair informações do aparelho GPS do smartphone, mas existem outros recursos, como a triangulação das antenas de captação de sinal de telefonia móvel, o rastreamento dos IPs, que são os pontos de acesso à internet, e a identificação de padrões de deslocamento e localização pelos traços deixados na navegação online. Assim, um dos eixos de organização de uma timeline é uma dada definição de lugar, uma vez que na seleção dos assuntos e das postagens que são publicadas, o algoritmo leva em conta a localização do usuário.
Um terceiro elemento na organização da timeline é a rede interpessoal na qual o usuário está envolvido. Essa rede é formada por um conjunto estruturado de pessoas e/ou entidades que produzem conteúdos dos quais o algoritmo extrai uma seleção e publica na timeline do usuário. Como já abordamos esse tema mais acima, quero apenas recuperar a ideia de que esse fluxo de informações no interior da rede interpessoal estreita os nós entre estes agentes e constrói uma experiência coletiva de copertença na medida em que produz uma realidade social de pessoas interligadas por eventos comuns.
Em resumo, na medida em que as plataformas digitais funcionam como espaços de comunicação social, a ordenação algorítmica das informações produz efeitos de simultaneidade, pela transmissão de informações num ritmo algoritmicamente ordenado e pela difusão das mesmas informações, ao mesmo tempo, numa rede. Essa ordenação produz também efeitos de contiguidade, pelo fato de que os algoritmos levam em conta a localização espacial na distribuição das informações. Além disso, a própria definição de lugar e de espaço comum é construída pelo modo como as informações são distribuídas. E por último, essa rede interpessoal, frente à qual o algoritmo produz uma definição comum de tempo e de espaço, é alvo também da produção de uma idéia de nós e eles. Isto é, o algoritmo performa a existência de grupos através da difusão de informações sobre eventos e ações que são supostamente de interesse comum e que demandam uma tomada de posição coletiva.
Como podemos ver, essa é uma parcela dos mecanismos por meio dos quais timeline materializa a produção algorítmica de categorias de tempo, de espaço e de identidade coletiva.
Algumas perguntas etnográficas podem ser extraídas dessas afirmações: como as máquinas compreendem relações e ações humanas? E como podemos observar essa compreensão? Uma resposta que vem sendo repetida é de que é necessário abrir a caixa preta dos algoritmos. Contudo, se o fizéssemos, provavelmente não entenderíamos nada, porque elas estão escritas em linguagem de programação. Mas contamos com um recurso oriundo do artesanato das ciências sociais que consiste em compreender as máquinas partir de suas ações e de seus efeitos. É o que fazem os humanos que se relacionam com as máquinas. Eles desenvolvem teorias práticas acerca dos padrões de comportamento de humanos e máquinas em plataformas digitais. Em outras palavras, o procedimento que torna possível a ação dos humanos em relação aos atos das máquinas e que torna os mundos sócio-digitais inteligíveis para os usuários, procedimento que consiste em identificar os padrões cambiantes presentes nos atos das máquinas para agir sobre e através delas, é o mesmo que torna possível etnografar esses mundos. Nesse sentido, nosso objetivo aqui não é abordar diretamente os algoritmos, mas sim examinar o modo como os agentes humanos desenvolvem estratégias de ação digital que levam em conta seus modos de funcionamento.
Aqui há um dado fundamental. Tais ações não se baseiam na tradição, mas em uma aprendizagem reflexiva sobre o que fazer para obter determinados resultados. Nesse sentido, as ações têm que ser vistas como estratégicas, isto é, como produzidas para induzir ações de outros humanos e das máquinas. Nesse sentido, o esforço dos usuários para obter likes, seguidores e compartilhamentos deve ser compreendido como ação estratégica dos usuários dentro do horizonte de possibilidades oferecido pelas plataformas e pela atividade dos algoritmos. Contudo, o pólo maquínico dessa relação não é estável nem neutro. Ao contrário, ele é, de uma forma propriamente maquínica, também estratégico. E é nessa relação dialética entre estratégia dos usuários e estratégia dos algoritmos que se processam os mecanismos de mobilização política na Internet. De ambos os pólos são desenvolvidos esforços contínuos de compreensão dos padrões de ação tanto de humanos quanto de máquinas. Essa reflexividade é o fundamento tanto da capacidade humana de desenvolver estratégias eficazes quanto da compreensão etnográfica do modo pelo qual os mundos sociais digitais fazem sentido.
O que faremos a seguir é examinar um conjunto de ações humanas que são dirigidas tanto a outras ações humanas quanto a atividades algorítmicas com vistas a obter certos resultados políticos. Tais ações giram em torno de temáticas sexuais e/ou reprodutivas e se desenvolvem em uma moldura algoritmica de produção de categorias de tempo, espaço e identidade coletiva. E veremos o modo como a convergência entre agência algorítmica e agência humana politicamente militante produz adensamentos de rede imaginados como comunidades em torno de religião, gênero e orientação sexual.
Mas antes de prosseguirmos, cabe uma nota metodológica sobre tais ações humanas.
O pressuposto mais geral que orientou a pesquisa que está na base desse artigo deriva do que o Miller e Slater definem como uma abordagem propriamente antropológica da internet, e supõe: 1) que o observador não deve definir a priori a separação ou continuidade entre online e offline; 2) que o observador deve ser esforçar por seguir as ações dos observados e descrever o modo concreto pelo qual eles relacionam ou não os diversos espaços sociais on e off (Miller e Slater, 2000). Mas, além disso, é fundamental seguir também a circulação das mensagens, daí a importância de observar os compartilhamentos e retweets, por exemplo.
Isso tem sido feito a partir da observação flutuante de alguns pontos da rede na forma de agentes e sites e, sobretudo, das ações de compartilhamento.
A pesquisa que gerou esse artigo teve dois objetivos perseguidos simultaneamente: o primeiro consistiu em examinar propriamente o modo como se dá a relação de circularidade e retroalimentação entre práticas sociais desenvolvidas em espaços sociais dentro e fora da rede. Já o segundo objetivo consistiu em examinar a mobilização política, as tomadas de posição e as representações acerca dos direitos sexuais e reprodutivos que são colocadas em jogo nas ações e na circulação de mensagens produzidas na disputa política em torno de decisões judiciais, produção legislativa e orientação de políticas públicas. Trata-se aqui de supor a articulação entre diferentes mídias e as continuidades entre on e offline. Como já desenvolvido em trabalhos anteriores (Ramos 2012), trata-se enxergar a realização de conexões em rede por meio da circulação de mensagens e a produção de ação coletiva por meio de eventos críticos. Os eventos críticos que examinamos aqui são todos relativos a disputas em torno da sexualidade e de seus desdobramentos.
Nesse sentido, desdobrando em outros termos a dualidade on e off, a Internet é aqui tomada, ao mesmo tempo, como objeto e meio de observação, o que define duas dimensões diferentes da pesquisa: a primeira, diz respeito à observação online de fenômenos que se constituem fundamentalmente offline. Esse é o caso da observação das sessões do STF em que foram discutidos o aborto de anencéfalos e a união civil entre homossexuais, que foram transmitidas em tempo real no site do STF e em alguns portais de notícias. O mesmo pode ser dito das sessões e eventos legislativos, como é o caso da comissão de direitos humanos e minorias. A segunda dimensão da pesquisa é aquela que examina a interação que se dá propriamente online, em espaços de sociabilidade tais como Twitter e em blogs e em mecanismos de associação, como as petições online. Evidentemente, existe uma continuidade entre ambos os espaços, constituindo aquilo que vários autores definem como sendo uma esfera pública ampliada pelos espaços sociais construídos a partir das tecnologias de comunicação e informação. Assim, existe o online e o offline entrelaçado das ações e da construção dos eventos, mas existe também o entrelaçamento do on e do off na observação. Mais importante ainda, a construção das categorias de tempo, espaço e substância/identidade não é feita exclusivamente pelos algoritmos, pois ela é tanto co-produzida por máquinas e humanos quanto é produzida on e offline.
Na organização da análise, além dos agentes, suas ações e da circulação de determinadas mensagens, eu privilegiarei determinados momentos que aglutinam essas ações e mensagens e adensam online, offline e a relação entre espaços sociais.
Ao invés de uma abordagem totalizante de agentes, ações e mensagens, o que a etnografia nos inspira a apreender são regiões e momentos do ciberespaço formados provisoriamente pelo adensamento de determinadas conexões, na medida em que circulam pela rede embates em torno das decisões judiciais, da produção legislativa e das políticas públicas.
Os momentos
A internet é um campo social multifacetado que serve à visualização e à repercussão desses embates, além de ser também um espaço onde tais embates se realizam por meio da disseminação das posições em luta.
Os eventos que acompanhamos na e através da internet ocorreram em maio de 2011 e são:
1) Supremo Tribunal Federal e o julgamento sobre a união estável de casais homossexuais
Ao concluir em 5 de maio de 2011, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277, o Supremo Tribunal Federal estendeu às uniões homoafetivas o status de entidade familiar, conferindo a elas os mesmo direitos que foram dados à união estável pelo artigo 226, § 3º, da Constituição Federal (CF), e pelo artigo 1723, do Código Civil.
Concretamente, isto significou que os casais formados por pessoas do mesmo sexo possuem, a partir de então, um conjunto de direitos fundamentais com base nos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade, intimidade e privacidade, e a proteção contra a discriminação. Esse julgamento colocou em questão a definição de casal, tanto do ponto de vista dos direitos quanto politicamente.
(2) O governo federal e a suspensão do kit anti-homofobia.
Em meados de maio de 2011, a presidenta Dilma Roussef decidiu vetar um programa do ministério da educação dedicado ao combate à homofobia nas escolas. O programa vinha sendo gestado desde 2010 e consistia em um conjunto de vídeos e textos a serem distribuídos aos professores onde eram apresentadas situações envolvendo adolescentes em torno dos temas da homossexualidade e da discriminação contra homossexuais.
O material foi divulgado criticamente por jornais e foi alvo de uma forte campanha contrária por parte de deputados federais evangélicos e conservadores. Em razão dessa campanha, o órgão federal de educação (MEC) alegou que o material não era oficial e a presidenta vetou a sua divulgação, considerando-o inadequado e contraproducente.
OS AGENTES POLÍTICOS E AS POSIÇÕES EM CONFRONTO
Em torno dos eventos acima descritos rapidamente se estruturaram embates políticos e simbólicos que são produto e produzem os grupos que se enfrentam em torno do reconhecimento estatal de direitos sexuais. Assim, há um conjunto de atores organizados na sociedade civil: desde movimentos sociais até igrejas, que realizam essa disputa no parlamento e no executivo. Ao mesmo tempo, é essa luta, as vitórias e derrotas das diferentes agendas, e o reconhecimento público dos agentes que constitui e/ou reforça os grupos em luta.
Assim, observamos um deslocamento na medida em que o debate sobre sexualidades e gêneros que, antes, se realizava prioritariamente fora do estado, hoje está na pauta de discussões não apenas na sociedade civil, mas também no aparato burocrático e nos embates legislativos.
Fazendo um balanço dos agentes mais recorrentes em cada dos embates acima citados encontramos os seguintes nomes de pessoas, instituições e eventos:
Frente Parlamentar Evangélica |
Deputados e senadores: Garotinho (PR), Benedita (PT), João Campos (PSDB), Marco Feliciano (PSC), Marcelo Crivella (PRB), Magno Malta (PR), Onyx Lorenzoni (DEM), entre outros. |
Bancada conservadora |
Deputado Jair Bolsonaro (PP) |
Frente Católica |
Deputado Padre José Linhares (PP) |
Centros evangélicos |
Pastores e apóstolos: Silas Malafaia, Valdemiro, Estevam, Samuel Câmara, Samuel Ferreira |
Marcha para Jesus |
Movimento organizado por agentes religiosos que visa demonstrar apoio popular à luta política em defesa de valores religiosos. |
OAB |
Ophir Cavalcante (Presidente da OAB) |
Frente Parlamentar pela Cidadania LGBT |
Deputados Manuela D’Ávilla (PC do B), Jean Wyllys (PSOL), Marta Suplicy (PT), Érica Kokay (PT) |
Parada Gay |
Movimento organizado por agentes dos movimentos feminista e LGBT que visa demonstrar apoio popular à luta política em defesa dos direitos das minorias. |
Procuradoria Geral da República |
Tem levado ao STF ações em torno dos direitos humanos e reprodutivos. |
STF |
O Supremo Tribunal Federal tem sido o desaguadouro de embates político-jurídicos em torno da definição de direitos, o que o constitui como um agente fundamental na resolução desses conflitos e na definição da moldura dos embates. |
Esse pequeno quadro articula as duas dimensões: a da sociedade civil, de um lado; e do estado, do outro.
Uma das observações feitas durante a pesquisa foi que, em certas audiências públicas realizadas no congresso, havia a presença de pelo menos um integrante oriundo das entidades de sociedade civil que possuía algum tipo de acúmulo sobre o tema, seja ele na experiência prática ou intelectual. Esta observação revela a continuidade entre organizações fora do estado e agências e pautas estatais.
Nestes termos, é importante retomar a história das lutas feministas e LGBT como o marco a partir do qual se inscreve a luta pelos direitos sexuais. A partir dos anos 1960, vemos se constituir as reivindicações por direitos reprodutivos, especialmente o direito ao aborto e à contracepção. Neste momento, essa luta é feita com base numa crítica à intervenção estatal e em nome do controle da mulher sobre seu corpo. Na redemocratização brasileira a partir dos anos 1980, o feminismo já tinha um desenvolvimento importante e vai se associar progressivamente à luta LGBT. Dos anos 1990 em diante, vai se desenhar um esforço pelo reconhecimento estatal de direitos sexuais e reprodutivos.
Os anos 1990 marcam também a emergência da luta político-partidária associada a movimentos religiosos como o neo pentecostalismo. Além disso, a virada conservadora na igreja Católica também reconfigurou sua relação com a luta política. Em ambos os casos, a defesa da família e o controle sobre a sexualidade vão se tornar progressivamente temas políticos. Neste sentido, a política brasileira nesse início do século XXI vai testemunhar o confronto entre pautas e agentes políticos que se organizam de fora do estado e que tomam a sexualidade como um objeto de intervenção estatal.
A partir dessa configuração, é possível identificar o seguinte quadro de valores e agentes:
Luta pela conservação da unidade familiar convencional – casal heterossexual (combinação entre homem/mulher), a mãe sempre como mulher, o corpo da mulher sendo tutelado pelo Estado, gêneros não convencionais como um despropósito sexual, entre outros. |
Grupos religiosos, extrema direita, grupo pró-vida |
Luta pela promoção de igualdade de gênero, sexuais e reprodutivos; de liberdade do corpo; entre outros. |
Grupos progressistas, extrema esquerda, articulações feministas, grupo LGBT |
A AÇÃO NO CIBERESPAÇO
Existem duas dimensões diferentes da pesquisa no ciberespaço: a primeira, diz respeito à observação online de fenômenos que se constituem fundamentalmente offline. Esse é o caso da observação das sessões do STF em que foram discutidos o aborto de anencéfalos e a união civil entre homossexuais, que foram transmitidas em tempo real no site do STF e em alguns portais de notícias. O mesmo pode ser dito das sessões e eventos legislativos, como é o caso da comissão de direitos humanos e minorias. A segunda dimensão da pesquisa é aquela que examina a interação que se dá propriamente online, em espaços de sociabilidade tais como Twitter, blogs, Facebook e em mecanismos de associação, como as petições online. Evidentemente, existe uma continuidade entre ambos os espaços, constituindo aquilo que chamei em outro texto, de uma esfera pública ampliada pelos espaços sociais construídos a partir das tecnologias de comunicação e informação.
A pesquisa aqui apresentada consistiu em seguir as contas na plataforma Twitter do deputado do PSOL, Jean Wyllys - @jeanwyllys_real -; o da senadora de São Paulo pelo PT, Marta Suplicy - @MartaSenadora -; o da presidenta da república Dilma Rousseff, @dilmabr -; o do deputado-pastor Marco Feliciano, do PSC, @marcofeliciano; o do Pastor Silas Malafaia, @PastorMalafaia; o do Eleições Hoje, a favor da aprovação da PLC 122 - @EleicoesHoJE - e o do Ministério da Saúde - @minsaude.
A união homoafetiva no STF e no Twitter.
O primeiro evento em torno do qual examinamos a mobilização dos agentes foi o julgamento no STF sobre a união homoafetiva. Para ser mais exato, o tribunal deliberou por uma decisão comum a diversos casos em que se pleiteava o reconhecimento dos mesmos direitos à pensão, herança e partilha de bens entre casais homossexuais e heterossexuais. Assim, foi o caso do julgamento um Recurso Extraordinário contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe que negou a demanda de divisão da pensão feita por um homem após a morte de seu companheiro. O falecido tinha duas relações estáveis, uma de natureza homossexual e outra de natureza heterossexual. Em sua decisão o TJ-SE contemplou apenas a viúva heterossexual. Também foi analisada uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em um caso de uma partilha de bens entre a mãe de um homem falecido e seu companheiro que haviam vivido juntos por 40 anos. Nesse caso, o TJ-RGS reconheceu parcialmente a união homoafetiva, mas só havia lhe concedido um terço da herança.
Em ambos os casos, os processos subiram ao STF porque nos recursos contra as decisões dos Tribunais de Justiça Estaduais, os recorrentes defenderam o ponto de vista de que a matéria tem implicações sociais, políticas, econômicas e jurídicas que ultrapassam o interesse subjetivo das partes envolvidas. Também afirmaram o imperativo de que os casais homossexuais não sofram distinção ou discriminação que diminua os direitos atribuídos à pessoa humana na constituição.
Nesse sentido, o ministro Marco Aurélio Mello, que era o relator, acolheu os recursos e se afirmou que «a união estável homoafetiva e suas repercussões jurídicas está a clamar o crivo do Supremo” 2. Durante o mês de maio de 2011, os ministros do STF examinaram o tema e se pronunciaram de forma unânime pelo reconhecimento da união estável de casais homossexuais.
Este tema já havia sido objeto de disputa no congresso em junho de 1999 quando foi levado a votação um projeto de lei em favor do casamento gay apresentado pela então deputada Marta Suplicy. Naquela ocasião, a mobilização da Igreja católica, de diversas igrejas protestantes e de deputados identificados com elas foi forte o suficiente para barrar o projeto e garantir sua retirada.
Vejamos agora o modo como o julgamento no STF em 2011 foi percebido no Twitter.
Entre os nossos pesquisados no Twitter que apóiam dos direitos das minorias sexuais, a senadora Marta Suplicy é marcada por participação episódica e centrada na divulgação das ações de seu mandato, mais do que ao diálogo com aqueles que a seguem e que ela segue. Claramente, sua conta é gerenciada por uma equipe de comunicação. São raras as opiniões emitidas ali. Contudo, durante àquela semana de votação no STF, ela fez alguns poucos tweets que foram bastante replicados. São eles:
@MartaSenadora: Acompanhe ao vivo, do STF, a votação da validade de união homoafetiva: http://migre.me/4rkMV #EquipedaMarta. #uniaohomoafetiva. 22 retweets.
@MartaSenadora: Fiquei muito emocionada e feliz ao ouvir as declarações dos ministros do STF nesta tarde inesquecível. #uniaohomoafetiva. 62 retweets.
@martasenadora: Acabei de ouvir aqui no STF a mais brilhante defesa dos direitos humanos. Professor Barroso: enorme competência técnica e coração. 30 retweets
@MartaSenadora: Acho que vai ser por unanimidade, #uniaohomoafetiva. 87 retweets.
@MartaSenadora: Agora sustentações por diferentes entidades aqui no STF. Uma aula de democracia e direitos humanos fantástica. 43 retweets
@MartaSenadora: O reconhecimento por UNANIMIDADE dos direitos de união estável a casais de homossexuais acaba de ser proclamado no STF. 102 retweets.
A conta do deputado Jean Wyllys, ao contrário, é usada tanto para divulgar ações do mandato quanto de forma bastante pessoal, com comentários sobre novelas e diálogos com seguidores e seguidos. O deputado fez alguns tweets dirigidos à votação, enfatizando a qualidade das sustentações jurídicas em favor do reconhecimento da união estável homossexual, bem como adotando a posição de torcedor, muito comum entre usuários do twitter. Isto pode ser visto nos twetts abaixo, feitos durante a votação:
@jeanwyllys_real: Aqui no plenário do #STF o silêncio é tenso e esperançado. Espero que, em casa, muitos estejam na torcida desse dia que será histórico. - 149 retweets.
@jeanwyllys_real: O voto do ministro Ayres Brito, igualmente emocionante e embasado, foi uma porrada nos discursos obtusos e odiosos contra LGBTs. - 55 retweets.
@jeanwyllys_real: #STF Ainda não dá pra saber qual será o voto do ministro Gilmar Mendes. Estou aqui atento e na torcida. - 52 retweets.
@jeanwyllys_real: Ministro Luiz Fux, mais um voto favorável. 2 X O (#GabineteJean). 32 retweets.
@jeanwyllys_real: Ministro Ricardo Lewandowski vota a favor. 4 X 0. - 45 retweets.
@jeanwyllys_real: A decisão do STF valerá para todos que recorrerem à Justiça. Para transformá-la em direito, a briga será no Congresso. 11 retweets,
@jeanwyllys_real: E hoje, dia de vitória, não vamos dar ouvido à tagarelice dos canalhas, ignorantes, fundamentalistas e cínicos. Eles foram derrotados! - 429 retweets.
@jeanwyllys_real: Um pastor deputado disse que decisão do STF é "começo da decadência moral". Não é não! Decadência é explorar comercialmente a fé dos pobres. - 728 retweets.
No campo oposto dos embates ideológicos, o deputado-pastor Marco Feliciano, do PSC, faz um uso menos formal de sua conta no Twitter que a senadora Marta Suplicy, mas não tão pessoal – com diálogos com seguidores e seguidos – quanto o deputado Jean Wyllys. Podemos ver em sua conta, a publicidade das ações de seu mandato e de iniciativas que ele apóia. Mas também estão presentes declarações que expressam sua fé e suas posições políticas. Durante os dias do julgamento no STF, o deputado mostrou sua indignação com o que considerava um desrespeito à suas crenças religiosas e morais e uma violência do STF à autoridade do Poder Legislativo. Nesse sentido, é importante chamar a atenção para o fato de que há muitos anos os parlamentares religiosos têm conseguido bloquear iniciativas legislativas em defesa das minorias sexuais, como foi o caso da PL122 que criminalizava a homofobia. De fato, nesse período o avanço no tratamento dado às minorias tem ocorrido a partir de lutas nos ministérios e secretarias do poder executivo. Com o recuo até mesmo do poder executivo, o Judiciário, e o STF em particular, se tornou o lugar central na condução das lutas em prol dessas minorias. Durante o julgamento, Marco Feliciano fez vários tweets replicados por seus seguidores demonstrando sua preocupação:
@marcofeliciano: Tempos de lutas e angustias estão previstos. É hora da união de toda mídia cristã. - 88 retweets
@marcofeliciano: Peço oração de todo povo cristão essa noite e protestos amanha via net. - 51 retweets.
@marcofeliciano: Onde estão os famosos do gospel com suas fotos e sorrisos lindinhos aqui no twitter, q, assistindo ao assunto sobre FAMILIA ñ dão seu parecer? - 43 retweets
@marcofeliciano: Amanha o Supremo Tribunal Federal irá votar uma lei que beneficia os homoafetivos. Pode ser o inicio de um colapso na família. Oremos! - 107 retweets
@marcofeliciano: Temos uma noite pra orar! Supremo adia decisão sobre união homossexual glo.bo/knhqIu – 43 retweets
@marcofeliciano: Fizemos um Manifesto com 20 deputados federais e entregamos a um ministro do STF. Esperamos bom senso para dois assuntos. - 31 retweets
@marcofeliciano: para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. - 24 retweets
@marcofeliciano: Defendo a família, pelo ensino bíblico, pelo moral e bons costumes. SODOMIA é BESTIALIDADE, é nojento, é anti-higiênico, é perversão! - 57 retweets
@marcofeliciano: A luta não é por opção sexual e sim por constitucionalidade. Família esta para continuidade de geração, como água esta para o sedento! - 47 retweets
Ainda neste mesmo campo temos uma figura que a todo o tempo entrelaça religião e política: o Pastor Silas Malafaia, também personagem dos ataques ao "kit-gay" na campanha eleitoral de 2012. O Pastor Malafaia usa sua conta no Twitter para divulgar suas atividades, mas, sobretudo, para expressar suas opiniões e, por isso mesmo, se envolve em diálogos com seus seguidores e outras pessoas que o citam no Twitter. Desenvolve, assim, um uso mais pessoal e apaixonado de sua conta, se aproximando do uso feito por Jean Wyllys. Durante a votação do STF, o pastor tuitou expressando sua indignação em termos próximos a Marco Feliciano. Foi também alvo da ironia dos partidários do reconhecimento das uniões homoafetivas por meio de tweets e de tags como #chupamalafaia, que chegou a estar nos Trending Topics3. Alguns dos tweets do pastor mostram seu esforço por usar twitter e email como recursos de mobilização política e também sua revolta com a decisão do STF:
@PastorMalafaia: Envie para os ministros do STF: HOMOAFETIVA NÃO É ENTIDADE FAMILIAR. VOTE CONTRA ESSA LEI INCONSTITUCIONAL! 375 retweets.
@PastorMalafaia: A família só é amplificada numa relação hétero. 656 retweets.
@PastorMalafaia: Esta começando agora a votação dos ministros no STF a respeito da lei q reconhece os homossexuais como entidade familiar. 183 retweets.
@PastorMalafaia: Escreva: “Sr. Senador, rejeite a PL122/2006. Em favor da família e da liberdade de expressão, e contra a pedofilia". 458 retweets.
@PastorMalafaia: Minha gente, querem atingir a família, as questões religiosas e a liberdade de expressão. 125 retweets.
@PastorMalafaia: Já enviou seu e-mail para os ministros pedindo para rejeitarem a aprovação da lei q reconhece os homossexuais como entidade familiar? 391 retweets.
Como podemos observar, o Twitter funcionou aqui como rede de difusão de mensagens, de mobilização política, mas, acima de tudo, um espaço de partilhamento de uma experiência comum diante destes eventos jurídico-políticos. Nesse sentido, o acompanhamento online da sessão offline era vivido como lugar de testemunho e torcida diante de um evento.
O Kit-gay X kit anti-homofobia. A polêmica nos jornais na internet
Em 23 de novembro de 2010, foi realizado na Câmara dos Deputados o seminário Escola sem Homofobia, reunindo as Comissões de Direitos Humanos e Minorias, de Educação e Cultura e de Legislação Participativa, bem como entidades ligadas ao movimento LGBT. Naquela ocasião, foi apresentada uma parte do material educativo produzido ONGs pró-gays a pedido do Ministério da Educação (MEC) para constituir um “Kit de Combate à Homofobia nas Escolas”, a ser distribuído entre os professores de 6 mil escolas da rede pública em todo o país do programa Mais Educação. Tratava-se de um conjunto de vídeos, boletins e cartilhas que abordavam o universo de adolescentes homossexuais e que buscavam construir uma descrição positiva da homossexualidade como forma de combater o bullyng e sofrimento emocional que acompanha os jovens homossexuais na escola.
Alguns dias depois, o Deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) atacou em discurso na Câmara esse material nos seguintes termos:
Atenção, pais de alunos de 7, 8, 9 e 10 anos, da rede pública: no ano que vem, seus filhos vão receber na escola um kit intitulado Combate à Homofobia. Na verdade, é um estímulo ao homossexualismo, à promiscuidade. Esse kit contém DVDs com duas historinhas. Seus filhos de 7 anos vão vê-las no ano que vem, caso não tomemos uma providência agora. (Discurso no plenário da Câmara Federal, 30/11/2010. Link no Youtube: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ONfPCxKdGT4#t=5)
Esse discurso transmitido pela TV Câmara, que tem pouca audiência, foi colocado no site de compartilhamento de vídeos Youtube e no site do próprio deputado no mesmo dia 30 de novembro. E a partir dele o assunto começou a circular em blogs religiosos como o Gnotícias, que é um portal de notícias Gospel, em entrevistas na televisão, no Programa do Ratinho e no Lulusuperpop. Foi objeto de pronunciamentos enfurecidos de deputados como João Campos (PSDB-GO), Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e Anthony Garotinho (PR-RJ) que chegaram aos jornais. Todos os deputados acima citados pertenciam a partidos que integravam a heterogênea base de apoio parlamentar da presidenta Dilma Rousseff no congresso. E foi nesse momento que se generalizou a expressão Kit-gay. A partir daí, a expressão ganhou os jornais de maior circulação como O Globo, Folha de São Paulo e o Estadão, e a expressão kit anti-homofobia ficou em segundo plano.
O discurso de Bolsonaro motivou ainda a produção de um abaixo-assinado no site Petição Pública endereçado à presidência da República que continha a seguinte abertura:
Somos contra o maior escândalo deste País, o KIT GAY
Não aceitamos que nossas crianças de 7,8,9 e 10 anos recebam esse tal de KIT GAY.
Neste Kit Gay há 2 vídeos com o Titulo Contra homofobia, mas na verdade nesses vídeos contém mensagens subliminares para as nossas crianças, induzindo-as a homossexualidade.
Uma coisa é preconceito...Outra coisa é fazer apologia ao homossexualismo!!!
Neste Kit Gay, na verdade, é um estímulo ao homossexualismo e incentivo a promiscuidade e a confusão de discernimento da criança sobre o conceito de família. (Abaixo-assinado Somos contra o maior escândalo deste País, o KIT GAY in Petição Pública. In http://www.peticaopublica.com.br/?pi=PROL)
Em maio de 2011, esta petição havia obtido cerca de 40 mil assinaturas. Apesar do material do MEC ser dirigido aos professores e ao trabalho com adolescentes, a versão de Bolsonaro de que crianças de 7 a 10 anos seriam o "alvo" de uma campanha de "doutrinação homossexual" está presente na petição e nas falas indignadas dos deputados religiosos.
Outra petição, esta a favor do chamado kit anti-homofobia foi aberta no mesmo site de petições públicas, com a seguinte abertura:
Nesta presente carta manifesto e nós, abaixo assinados, viemos prestar nosso apoio e solicitar urgência na implementação do kit educativo contra a homofobia nas escolas, pois entendemos que o combate à homofobia se dá em duas frentes, a aprovação de leis que garantam respeito e igualdade e através da educação.
Todos os anos encontramos alto índice de evasão escolar devido ao bullying, crianças sofrem agressões nas escolas e nas ruas por encontrarem suporte a comportamentos discriminatórios, mesmo dentro das escolas. A vítima de bullying geralmente se fecha, se isola e muitas vezes tende à depressão e ao suicídio. O bullying homofóbico deixa traumas que irão acompanhar o indivíduo por toda a vida.
Muitas vezes estes mesmos jovens encontram dificuldades de aceitação pela própria família e ao encontrar um ambiente hostil na escola passa a ser um agravante.
Tanto a psicologia quanto a psiquiatria deixaram de tratar a homossexualidade como doença, e é reconhecida pela ciência como tão natural quanto à bissexualidade e a heterossexualidade. Nenhum indivíduo consegue mudar sua orientação sexual, assim como nenhuma orientação sexual pode ser estimulada ou influenciada, se fosse assim, todos seriam heterossexuais, já que é esta a orientação da maioria.(Abaixo-assinado Apoio ao KIT de Combate à Homofobia nas escolas. In http://www.peticaopublica.com.br/?pi=kitsim)
Em maio de 2011, ela só havia obtido cerca de 6000 assinaturas. Esse número e a proliferação da expressão kit-gay na grande imprensa, indicam que a batalha da opinião pública pendia a favor dos religiosos.
Este mesmo mês de maio de 2011 que já havia sido agitado pelo julgamento no STF, foi palco de um novo enfrentamento entre militante LGBT e religiosos, só que desta vez o resultado foi favorável aos segundos. O kit anti-homofobia que vinha sendo bombardeado desde o fim do ano anterior, aumentando os conflitos na base de apoio do governo, e foi enterrado como política pública a partir da decisão da presidenta Dilma Rousseff em vetar o material. A decisão foi tomada em meio a uma crise política em torno de denúncias sobre o aumento inexplicado do patrimônio do ministro da Casa Civil Antonio Palocci, e da ameaça feita por deputados evangélicos de convocarem o ministro ao congresso se o kit não fosse vetado. De fato, em reunião da Frente Parlamentar Evangélica, realizada em 24 de maio de 2011, para discutir o kit anti-homofobia, o deputado Garotinho (PR-RJ) propôs que os parlamentares cristãos endossassem a convocação de Palocci de forma a pressionar o então ministro Fernando Haddad a suspender a distribuição do material. Além disso, como veremos a seguir, o Pastor Malafaia organizou junto com outras lideranças evangélicas um ataque às iniciativas anti-homofobia. Para isso, organizou um abaixo assinado em seu site, que ele alegava conter de 350 mil assinaturas no início de junho daquele ano. Digo alega porque ele não disponibiliza no site a lista de assinaturas, como fazem os sites da Avaaz e da Petição Pública. Outra iniciativa consistiu em uma manifestação realizada em 1º de junho contra a criminalização da homofobia, na qual o abaixo assinado foi entregue ao então presidente do Senado, José Sarney. Intitulada Marcha da Família, ela reuniu religiosos, representantes de igrejas e parlamentares evangélicos e católicos em protesto contra a legalização da união civil gay e para pedir mudanças na PL122 que previa a criminalização da homofobia. Segundo Malafaia, teria sido entregue um abaixo-assinado com mais de um milhão de assinaturas e a Marcha teria reunido 50 mil pessoas.
No dia 25 de maio, a presidenta Dilma Rousseff torna público o veto e nega ter cedido à chantagem dos deputados evangélicos. Ela afirmou sua convicção de que o material do kit estaria mais próximo da apologia à homossexualidade do que à educação contra a homofobia. O veto e sua explicação foram saudados como uma relativa vitória por alguns deputados evangélicos e como uma grande traição por boa parte da militância LGBT.
Vejamos a seguir o modo como esse evento foi enxergado no Twitter em maio de 2011.
Comecemos pela senadora Marta Suplicy, que pertence ao mesmo partido que a presidenta. No dia em foi anunciado o veto, ela recebe em sua conta perguntas que embutem críticas. Essa é uma das formas básicas pelas quais se realiza a trollada de pessoas famosas no Twitter. Antes de apresentar esses tweets, examinemos como opera essa interação digital.
O termo nativo Troll identifica membros de redes digitais que se caracterizam por fazerem uso das ferramentas disponíveis nessas redes e dos temas que as organizam para realizar ações agressivas e provocadoras. Aparentemente, o termo foi usado inicialmente para qualificar a ação de usuários homens em fóruns digitais de discussão feminista. Eles usavam os pressupostos éticos da rede, como o direito à livre expressão das mulheres, e os recursos digitais, como a lista de endereços de email e a interação mediada por avatares, para produzir polêmicas e concentrar a interação em suas mensagens.
Vejamos como isso se aplica à plataforma plataforma digital Twitter. Ela oferece duas possibilidades fundamentais de interação em rede. A primeira consiste em colocar em conexão uma pessoa pública e seus seguidores. Trata-se de uma rede hierárquica, com a pessoa pública como nó denso. O objetivo seria tornar possível a interação entre ambas as partes. A segunda, é de permitir interações horizontais numa rede de indivíduos. Nesse sentido, a interação de deputados com seus seguidores obedece à primeira estrutura e, frequentemente, é conduzida por uma assessoria de imprensa. Ora, a trollada, que significa comportar-se como troll, implica, nesse caso específico, em seguir uma personalidade pública para atacá-la, não diretamente, mas por meio da manipulação das ferramentas digitais e do significado que a pessoa pública atribui a si e à sua atuação. Por isso, esses trolls fazem perguntas retóricas cujo objetivo é do denunciar publicamente as contradições da pessoa pública.
Assim, podemos observar que os usuários @massao e @guigomed, respectivamente, escrevem:
@massao @MartaSenadora nenhum comentário sobre a suspensão do Kit Brasil Sem Homofobia pela Dilma?
@guigomed RT @lanhezini: . @MartaSenadora Marta, por favor? De braços cruzados e fazendo acordo com "costumes" e "evangélicos"?
A senadora, então, posta links para matérias que reafirmam apoio do governo à luta contra a homofobia por meio da educação e a crítica aos religiosos:
@MartaSenadora: O governo defende a luta contra práticas homofóbicas, diz presidenta Dilma: http://migre.me/4E4nA
@MartaSenadora: Fundamentalistas religiosos distorcem Kit educativo anti bulling homofóbico. http://migre.me/4DMzx
@MartaSenadora: Escola é determinante para o fim da homofobia, diz pesquisador: ultimosegundo.ig.com.br/educacao/escol… (via @ultimosegundo).
O primeiro link envia para uma matéria no Blog do Planalto, espaço oficial de divulgação das ações da presidenta Dilma, e ali encontramos a transcrição de um discurso da presidenta de 26 de maio de 2011, no qual ela respondia acerca da suspensão do kit anti-homofobia e afirmava a necessidade de um trabalho educativo em torno do respeito à diferença e o combate à violência contra homossexuais, mas também garantia que “não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções [orientações] sexuais”.
O segundo link remete a uma nota distribuída à imprensa no mesmo dia 26 pelo presidente do Conselho Estadual dos Direitos da População LGBT, Cláudio Nascimento, em que ele revela a surpresa e a preocupação com que o grupo recebeu a notícia do veto e afirma que os fundamentalistas religiosos haviam disseminado repetidamente mentiras acerca do kit anti-homofobia, a começar pela ideia de que ele representava uma propaganda de opção sexual, passando pelo fato de que seu público eram as crianças do ensino fundamental 1 e concluía afirmando que os religiosos punham em prática uma política obscurantista, autoritária e reacionária.
A senadora e governo petista continuaram a ser alvo de críticas. O usuário José Jance Marques @josejance condena o apoio que a senadora continua a dar à presidenta e invoca a sua conhecida relação com as lutas pelos direitos LGBT:
@MartaSenadora Acho q a senhora deveria prezar por sua imagem junto ao público LGBT e não se manifestar em defesa da presidente. Por favor!
Já o usuário @HomofobiaCeara se dirige à senadora para acusar a presidenta de ter traído o apoio dado pelo movimento LGBT durante a campanha presidencial de 2010:
@HomofobiaCeara: @MartaSenadora As bandeiras do arco íris que enfeitaram a posse da Dilma eram literalmente meros enfeites.
Podemos ver pelos tweets que a senadora ficou em uma posição ambivalente. De um lado, seu compromisso com o seu partido, o PT, e com sua posição no interior da aliança de partidos que apoiavam o governo Dilma no congresso nacional se traduziram em uma ausência de crítica direta à presidenta e um esforço retomar as explicações de Dilma Rousseff em sua própria defesa. De outro lado, a histórica participação da senadora nas lutas LGBT e feministas se expressou em uma crítica à má-fé e ao conservadorismo dos religiosos que teriam distorcido a intenção original do kit anti-homofobia. Mas foi essa mesma história de lutas que tornou a senadora um alvo da crítica direta ou da advertência de militantes que a seguem e que se identificam com ela e seu campo de lutas.
Se a posição da senadora diante do veto é ambivalente, a do deputado Jean Wyllys, do PSOL-RJ, partido de oposição ao governo da presidenta Dilma Rousseff, é bastante cristalina. No dia 25 de maio, em que o veto ainda circulava em forma de boato, ele disparou uma série de tweets que serviriam de base para uma nota oficial divulgada à imprensa no dia seguinte, quando o veto se confirmou. Os tweets foram os seguintes:
@jeanwyllys_real: jeanwyllys_real 1 escola segura e livre d homofobia é 1 direito dos LGBTs e suas famílias,q tb são famílias brasileiras e pagam impostos!
@jeanwyllys_real: Se a presidenta optar por ceder à chantagem - não há outro nome - dos inimigos da cidadania plena fazendo de seu mandato um lamentável estelionato eleitoral
@jeanwyllys_real: "Onde está a 'defesa intransigente dos Direitos Humanos' que a senhora prometeu quando levou sua mensagem ao Congresso?
@jeanwyllys_real: Não adianta, portanto, apresentar argumentos a favor do kit anti-homofobia a quem age de má fé para sustentar privilégios
@jeanwyllys_real: O que LGBTs e pessoas de bom senso esperavam da senhora, presidenta, era um mínimo de espírito republicano e vontade de proteger a TODOS.
@jeanwyllys_real: Então espero que na pŕóxima eleição, presidenta, os LGBTs despertem sua consciência política e lhe apresentem também sua fatura: não voto!
@jeanwyllys_real: A senhora é inteligente e sabe, presidenta, que os assassinatos brutais de homossexuais estão diretamente ligados aos discursos de ódio.
Podemos observar aqui uma posição dura na crítica aos compromissos que a presidenta assumiu com seus interlocutores religiosos. Essa posição, que define o veto como uma traição a princípios maiores de defesa dos direitos humanos, em geral, e dos indivíduos LGBT, em particular, é tanto uma posição oriunda do que se percebe como uma quebra de confiança quanto uma posição na disputa pela direção da luta pelos interesses LGBT e feministas no congresso. Nesse sentido, este evento marca uma das disputas entre o deputado Jean Wyllys e a senadora Marta Suplicy e entre PSOL e PT pela representação dos movimentos LGBT.
A posição ambivalente da senadora reaparece, mas com sentidos trocados, em outro dos personagens que investigamos, o deputado-pastor Marco Feliciano. Ao longo do dia 25 de maio, ele se dedica a alimentar a campanha contra a PL122, que criminalizaria a homofobia. Dois tweets abaixo mostram isso:
RT @Laly__: @marcofeliciano Lembra aí pro pessoal, que prá confirmar a petição, tem que acessar o e-mail. lá vai ter como confirmar.
RT @GOSPELMIXONLINE: @marcofeliciano Juntos Somos mais!! LINK abaixo-assinado contra a chamada de "lei", PL122: peticaopublica.com.br/PeticaoVer.asp
É importante observar que essa campanha contra PL122, sobre a qual falaremos a frente, articulava o uso do Twitter, de emails, e de petições online, para intervir no debate legislativo.
No dia 26 de maio, quando se confirma o veto, o deputado-pastor, entusiasmado divulga a informação entre seus seguidores:
@marcofeliciano: Kit Gay não será entregue! Palavra da Presidente Dilma Rousseff http://migre.me/4Dqvw Envie RT. Divulguem. 520 Retweets.
@marcofeliciano: Divulguem #ParabénsPresidenteDilma. 56 Retweets
@marcofeliciano: Após pressão contra Palocci, governo suspende kit anti-homofobia do MEC noticias.uol.com.br/educacao/2011/. 19 Retweets.
Pertencendo à base de apoio da presidenta, Feliciano não lhe fez críticas nos dias anteriores ao veto. A rigor, nada escreveu sobre o assunto, tendo se concentrado na preparação da ofensiva contra a PL122. Uma vez confirmado o veto, aí sim o deputado se manifesta sobre o assunto para proclamar seu agradecimento à presidenta.
Outro personagem importante desse embate, é o Pastor Silas Malafaia. Quando examinamos o uso que fez da sua conta no Twitter na semana que antecedeu o veto, testemunhamos um grande investimento na organização da luta contra a PL122 que tinha sua votação na Câmara prevista para junho daquele ano. Assim, no dia 21 de maio, o Pastor escrevia:
@PastorMalafaia: O bombardeio aos senadores sobre o PL 122 fez com que houvesse um recuo no Senado. 191 retwetts
@PastorMalafaia: Agora precisamos de outra estratégia. É bombardear os sites dos principais jornais e revistas. 130 retwetts
@PastorMalafaia: Peça à imprensa p/ ceder o mesmo espaço aos q são contra o PL 122 e divulgarem a nossa manifestação do dia 1º de junho, em Brasília. 175 retwetts
Outros tweets, no dia 25, indicavam a intensidade da mobilização:
@PastorMalafaia: A campanha do abaixo-assinado será on-line e impressa. Lançamento no final da tarde do dia 25/05. Aguarde! - 222 retwetts
@PastorMalafaia: Minha gente, queremos conseguir 1 milhão de assinaturas. Vamos divulgar. #abaixoassinadocontraPL122 . 386 retwetts
@PastorMalafaia: Acesse http://abaixoassinado.vitoriaemcristo.org #abaixoassinadocontrapl122 . 252 retwetts
@PastorMalafaia: A informação divulgada até agora é q a Dilma proibiu a distribuição do kit gay temporariamente. 135 retwetts
@PastorMalafaia: Abaixo-assinado eletrônico contra o PL 122 já está disponível. Acesse http://abaixoassinado.vitoriaemcristo.org #abaixoassinadocontraPL122. 249 retwetts
Em meio à organização, o veto da presidenta passa quase despercebido. Isto porque, dado o contexto da vitória do movimento LGBT no STF em relação à união civil homossexual, havia um temor real de que a PL122 passasse e impusesse limites à pregação religiosa contra os direitos sexuais, especialmente na televisão. Por isso, Malafaia e várias lideranças religiosas evangélicas estavam determinadas a dar uma demonstração de força em Brasília, com a Marcha para Jesus que deveria reunir dezenas ou centenas de milhares de manifestantes religiosos em Brasília em 1 de junho para a entrega de um abaixo-assinado com um milhão de assinaturas pedindo a retirada da PL122.
Assim, no dia 27, Malafaia prossegue em sua campanha junto aos seus seguidores no Twitter:
@PastorMalafaia: ai, minha gente! Vamos conseguir 1 milhão de assinaturas contra o PL 122: http://abaixoassinado.vitoriaemcristo.org/ @soucontraopl122. 651retwetts
@PastorMalafaia: Quem é a favor da família e da liberdade de expressão acesse http://abaixoassinado.vitoriaemcristo.org . 359 retwetts.
@PastorMalafaia: O tempo é curto. Então divulguem o abaixo-assinado. Vamos levar 1 milhão de assinaturas no dia 1º de junho pro Senado? 128 retwetts.
@PastorMalafaia Vms disponibilizar lap tops no culto da bênção #abaixoassinado contra PL 122 http://abaixoassinado.vitoriaemcristo.org/ 10 retwetts.
@PastorMalafaia: Envie SMS para seus os contatos de Celular com o link: abaixoassinado@vitoriaemcristo.org @PastorMalafaia @soucontraoPL122 #Niteroi. 10 retwetts.
@PastorMalafaia: Aqueles q puderem imprimir e coletar assinatura em sua igreja e vizinhança e mandar depois escaneado, por favor o façam. 31 retwetts.
@PastorMalafaia: Depois não deixe de enviar o original pelo Correio. Estr do Guerengue, 1851 - Taquara - RJ CEP: 22713-001 A/C Setor de eventos. 34 retwetts.
Podemos observar aqui, as intensas e contínuas conexões entre o on e o offline, na medida em que os tweets do pastor revelam um esforço por articular diferentes plataformas e espaços sociais em torno de um evento que é a apresentação da PL122. Como já vimos mais atrás, temos a mobilização no twitter, o abaixo assinado colocado online, a demanda de assinatura pelo correio, o envio de e-mails a jornais, a mobilização offline nas igrejas e cultos e tudo isso devia culminar em uma manifestação presencial em direção ao Congresso Nacional que causasse o maior efeito possível nos jornais.
Conclusão
Nosso objetivo aqui foi partir de algumas ideias acerca do modo como as plataformas digitais fornecem uma moldura a embates políticos para examinar as estratégias que opuseram grupos religiosos e movimentos feministas e LGBT na luta em torno dos direitos sexuais em momentos específicos.
A primeira ideia de que partimos é que as plataformas da web social operam como ferramentas de comunicação social uma vez que transmitem informações de forma coletiva e organizada. A segunda, diretamente relacionada com a primeira, deriva de Durkheim e consiste no pressuposto da construção social das categorias de entendimento. A partir dela, argumentamos acerca da coparticipação dos algoritmos na produção social das categorias de substância e dos conteúdos de identidade, além das categorias de tempo e de espaço. Como tal, a partir da articulação entre ação dos usuários e atividade dos algoritmos, as plataformas apresentam aos indivíduos um conjunto organizado de informações sobre quem são os outros, sobre o que é digno de atenção e sobre como o indivíduo e grupos são percebidos.
Procuramos mostrar também que alguns agentes que tem uma prática política offline passaram a ver na Internet um espaço social importante para a disseminação de suas mensagens políticas e na produção de engajamento e ação de usuários em torno de suas bandeiras. Mas, para tal, eles tiveram de desenvolver uma expertise tanto no entendimento dos padrões de atividade dos algoritmos, quanto nas técnicas e práticas de sua condução. O esforço por levantar hastags, apresentar assinaturas de manifestos como se fossem presença física, explorar vulnerabilidades de plataformas e usuários, todas estas práticas expostas no texto revelam um saber acerca do modo como fazer política na Internet.
Afirmamos no início deste artigo que a sociabilidade construída através das plataformas digitais envolve ações humanas e atividades do algoritmo que produzem definições coletivas de tempo, espaço e identidade e que são mobilizadas em disputas políticas. As mobilizações políticas aqui examinadas corroboram esse argumento. Vejamos como.
Vimos que a comunicação através de plataformas digitais tem ampliado os espaços de disputa pela opinião pública. Assim, o discurso do deputado Jair Bolsonaro sobre o material da campanha anti-homofobia do governo federal, que havia sido feito na Câmara dos Deputados e transmitido pela TV legislativa, ganha visibilidade a partir de sua inserção na plataforma YouTube. De fato, grupos de direita tem feito dessa plataforma um espaço de difusão de sua propaganda. E é de lá que o discurso de Bolsonaro caminha para os jornais offline. A generalização mesma da expressão Kit-Gay constrói identidades contrastivas e uma dada definição delas: de um lado, gays e, de outro, “defensores da família”. E além do esforço por criar uma situação de pânico moral, as mensagens em torno do chamado “kit-gay”, constroem também uma unidade temporal: aquela envolvida na aprovação ou rejeição da distribuição dos kits nas escolas. Assim, embates são realizados no Twitter antes e depois do veto presidencial à campanha
Vimos também como um julgamento no STF é capturado em uma rede digital por onde circulam mensagens e onde se cristalizam grupos em luta não pela definição do resultado do julgamento, mas pela definição do significado das decisões ali tomadas. Em torno do tempo do julgamento se organiza uma sociabilidade agonística que expande essa temporalidade e enreda múltiplos agentes em um tempo comum. Essa é a razão pela qual o julgamento vira um tópico dos mais comentados no Twitter nos dias da primeira semana de maio de 2011, um Trending Topic. De fato, em torno do julgamento, os agentes em luta na plataforma Twitter se esforçam por generalizar as hashtags que expressam a sua leitura positiva ou negativa das decisões tomadas no julgamento. Eles procuram colocar a atividade algorítmica a serviço da generalização da sua definição de situação.
Mais importante ainda, é o modo como estes agentes articulam as dimensões offline e online fazendo com que suas lutas e bandeiras atravessem diferentes mídias e dêem uma dada expressão discursiva a tensões, temores e formas de mal estar que existem ao nível da experiência objetiva. Isso torna possível, simultaneamente, generalizar certas concepções acerca do modo como o mundo social está estruturado - certa definição de nós e eles - e adensar as conexões entre indivíduos, eventos e palavras de ordem, mecanismos fundamentais na produção de grupos políticos.
Fizemos aqui um exame dos embates políticos que opuseram movimentos LGBT e feministas, de um lado, e grupos religiosos e/ou conservadores, de outro, torno dos direitos relacionados aos usos do corpo e da sexualidade. Examinamos dois momentos que são vividos de forma dramática pelos agentes, por serem momentos de mudança, positiva ou negativa, das relações entre lei, política e sexualidade. Ao mesmo tempo, em cada um deles, os agentes estabelecem uma articulação intensa de diferentes espaços de interação online e offline em torno dessas mudanças. Essa perspectiva permite examinar não um espaço social específico na Internet ou fora dela, mas sim as conexões que se estabelecem por meio da circulação informações e representações em torno desses momentos dramáticos. Essas conexões, quando pré-existem a tais momentos, são tornadas mais densas e quando não, se constituem elas mesmas nesses momentos.
Assim, mais uma vez, trata-se de entender o modo como as disputas políticas em torno da produção e interpretação da lei e da direção de políticas públicas em torno de sexualidade e corpo ocorrem no ciberespaço em relação direta com seus desdobramentos offline.
Damos curso, então, ao esforço que temos desenvolvido em seguir a advertência de Miller e Slatter (2004), de que é necessário construir etnograficamente a relação entre on e offline e observamos, mais uma vez, a noção de uma esfera pública alargada tanto na forma de um conjunto amplo de agentes conectados por medias on e offline, quanto na forma de uma comunidade imaginada que é, ao mesmo tempo alvo e produto dessas mobilizações. Vimos, também, que esses embates adensam o próprio espaço online, aumentando os acessos ao Twitter nestes momentos dramáticos e criando novas conexões entre pontos no ciberespaço e fora dele, como foi o caso das petições online.
Bibliografia
Anderson, Benedict (1983). Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism. New York, Verso.
Araujo, Rafael de Paula Aguiar, Penteado Claudio Luis de Camargo e SantosMarcelo Burgos Pimentel dos (2011). “Informação e contra-informação: o papel dos blogs no debate político das eleições presidenciais de 2010”, IV Congresso Latino Americano de Opinião Pública da WAPOR. Belo Horizonte – Brasil.
Bolaño, César Ricardo Siqueira e Britoos, Valério Cruz (2010). “Blogosfera, espaço público e campo jornalístico: o caso das eleições presidenciais brasileiras de 2006”, Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v.33, n.1, p. 237-256, jan./jun.
Boyd, Danah, Golder, Scott and Lotan, Gilad (2010). “Tweet, Tweet, Retweet: Conversational Aspects of Retweeting on Twitter,” HICSS-43. IEEE: Kauai, HI, January 6.
Bourdieu, Pierre (1998). “Descrever e Prescrever” e “Ritos de instituição” em A Economia das Trocas Lingüísticas. SP, Edusp.
Durkheim, Emile(1989). As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo, Paulinas.
Luna, Naara (2010). “Aborto e células-tronco embrionárias na campanha da fraternidade: ciência e ética no ensino da Igreja”, Revista Brasilera Ciencias Sociais [online]. vol.25, n.74 [cited 2013-09-16], pp. 91-105.
Miller, Daniel; Slater, Don (2004). “Etnografia on e off-line: cibercafés em Trinidad”, Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: v. 1, ano 10, n. 21, p. 41-65, jan./jun.
Miller, Daniel; Slater, Don (2000). The internet: an ethnographic approach. Oxford, Berg. .
Palmeir, Moacir (2001). “Política e tempo: nota exploratória”. Em: Peirano Maritza, (Org.). O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro, Relume-Dumará/NuAP. p. 171-177.
Ramos, Jair de Souza . (2012). “Toma que o aborto é teu: a politização do aborto em jornais e na web durante a campanha presidencial de 2010”, Revista Brasileira de Ciência Politica, v. 7, p. 55-82.
Weber, Max (2004). “Conceitos sociológicos fundamentais”. Economia e Sociedade. Brasília, Ed. da UNB, Vol. I.
1 Universidade Federal Fluminense - Departamento de Sociologia Pós-graduação em Sociologia (PPGS)
3 Trending Topic é uma lista da plataforma Twitter com os assuntos mais comentados nos tweets no dia, em um determinado local, em geral, país e estado. A lista se baseia em hastags que são indexadores dos twetts. Quando acompanhado de uma hastag determinada, os twetts passam a fazer parte de um conjunto, mesmo se os seus autores não estão conectados diretamente.