Sesc 24 de Maio, São Paulo
16 de fevereiro a 7 de agosto de 2022
Curada por Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos e Paula Ramos e curadoria geral de Raphael Fonseca.
João Brancato
Universidade Estadual de Campinas
https://orcid.org/0000-0002-5097-5565
O ano de 2022 tem sido particularmente marcado na cena expositiva brasileira pelo centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Ocorrida em São Paulo em fevereiro de 1922, o evento foi organizado por um grupo de intelectuais e artistas patrocinados pela elite cafeicultora da emergente cidade. Desejosos de promover uma arte nova, capaz de se igualar à vanguarda europeia e superar a tradição, realizaram três dias de atrações no Teatro Municipal, com uma programação envolvendo exposições de arte, conferências, declamações e música. A consagração da Semana, construída ao longo do século XX, tendeu a encará-la como estopim do movimento modernista no Brasil e sintomaticamente como uma emancipação da Europa em nível cultural (Coelho, 2012; Simioni, 2013; Cardoso, 2021).
Desde o segundo semestre de 2021, uma série de exposições tem ocorrido para as comemorações do centenário da Semana, sobretudo em São Paulo. É o caso de Moderno onde? Moderno quando? A Semana de 22 como motivação, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo e curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, ou Era Uma Vez o Moderno [1910-1944], no Centro Cultural FIESP, de curadoria de Luiz Armando Bagolin e Fabrício Reiner. Foram exposições definitivamente importantes, organizadas por intelectuais de renome e que apresentaram ao público obras fundamentais do cânone moderno, formando uma dessas raras oportunidades de contemplar produções em conjunto que apenas as efemérides são capazes de engendrar. No plano historiográfico, contudo, elas pouco avançam, embora a primeira ainda se esforce à discussão dos sentidos do moderno para além do cânone.
FIGURA 1. Vista geral da exposição. Fotografia de Rafael Salim.
A exposição Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil, em cartaz no Sesc 24 de Maio entre 16 de fevereiro e 7 de agosto deste ano, é caso radicalmente diverso das anteriores (Fig. 1). Ela se abstém conscientemente de uma apresentação do cânone na data de seu centenário. Com efeito, sua postura é explodi-lo, e aqui o jogo de palavras com o título não é por acaso. “Raio-que-o-parta” –além de expressão idiomática brasileira para raiva ou indignação a algo que se quer distante de si–, é um termo pejorativo utilizado para exemplares da arquitetura de Belém do Pará dos anos 1950. Tais construções, que conjugam “arquitetura vernacular” a fachadas inspiradas em modelos modernistas, com suas formas geométricas e abstratizantes, foram criadas por arquitetos locais sem formação acadêmica, e criticadas como de mau gosto. A arquitetura “raio-que-o-parta” guarda a chave para a compreensão da exposição como um todo, que visa pôr em evidência as distintas manifestações do moderno na cultura brasileira ao longo do século XX, de norte a sul do país.
A curadoria é de Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos e Paula Ramos, com curadoria geral de Raphael Fonseca, consultoria de Fernanda Pitta e assistência curatorial de Breno de Faria, Ludimilla Fonseca e Renato Menezes.1 O trabalho compartilhado é evidente nas mais de 600 obras expostas de quase 200 artistas, representativas de todas as regiões do país, como o são os curadores. Assim, é fácil identificar na presença de artistas do sul como Paulo Vasco a atuação de Paula, ou nas obras de Theodoro Braga os estudos de Aldrin. Aos que acompanham a cena expositiva brasileira recente não é difícil encontrar analogias na expografia de Raio-que-o-parta com aquelas de importantes instituições culturais, como o Museu de Arte do Rio e a Pinacoteca do Estado de São Paulo, ou mesmo de exposições anteriores curadas por Raphael Fonseca, como Vaivém (2019-20), realizada no CCBB. São painéis repletos de obras, com suportes, técnicas e procedências variadas, entre o popular e o erudito, em relações horizontais e recíprocas –questionando hierarquizações, temporalidades e os próprios conceitos de arte e não-arte, do que é afinal “popular” ou “erudito”. Embora seja possível criticar a exposição pelo seu excesso, que pode desnortear o espectador, ele é necessário para expressar a multiplicidade e singularidade das ficções do moderno fabricadas em um país de dimensões continentais. Afinal, o Brasil não é um país de sínteses.
A exposição se organiza em torno de quatro núcleos: Deixa falar, Centauros iconoclastas, Eu vou reunir, eu vou guarnecer e Vândalos do apocalipse. Seus títulos evocam manifestações culturais ocorridas no Brasil ao longo da primeira metade do século XX. Se as proposições de cada um são bem definidas, o espaço expositivo e as escolhas da curadoria permitem e instigam o extravasamento das obras entre eles, criando um sem-fim de relações.
No núcleo que abre a exposição, discute-se a maneira como a própria ideia de arte moderna construiu-se sobre uma alteridade subalternizada. Em prefácio ao seu livro Tudo que é solido desmancha no ar, Marshall Berman sugere que modernismo “é qualquer tentativa feita por mulheres e homens modernos no sentido de se tornarem não apenas objetos, mas também sujeitos da modernização” (Berman, 2007, p. 11). Deixa falar critica justamente essa histórica exploração de identidades subalternizadas, “valorizando” os povos originários, afrobrasileiros e a população pobre sempre na condição de objetos, mas não reconhecendo-os como ou criando possibilidades para serem sujeitos da modernização.
A inclusão do conjunto de fotografias de trabalhadores produzida pelo mineiro Assis Horta, que recebe os visitantes, é paradigmática do esforço curatorial de pôr em evidência os verdadeiros sujeitos da modernidade, aqueles que subiram os andaimes para a construção dos arranha-céus. Assim, são contrapostos no núcleo obras tematizando figuras dessa identidade nacional emergente fadadas à condição de objetos de representação e aquelas produzidas efetivamente por artistas indígenas ou por artistas negros ligados às tradições afrobrasileiras. De um lado, o caipira de Almeida Júnior e as baianas quitandeiras de Tarsila do Amaral; de outro, as bonecas Karajá apresentadas na 1ª Exposição da Escola Goiana de Belas Artes (1952) e a máscara em madeira de Agnaldo dos Santos. Por outra via, é possível refletir sobre as incongruências do projeto moderno que simultaneamente exaltava aspectos da cultura indígena, da fauna e flora amazônicas e devastava essa natureza e cultura em prol da modernidade. É o caso das obras de Theodoro e Maria Braga (Fig. 2), Manoel Pastana e Regina Gomide Graz, que no início do século XX firmaram-se na criação de objetos utilitários ou decorativos inspirados na natureza e cultura amazônica.
FIGURA 2. Maria Hirsch da Silva Braga, sem título, 1907, vasos de prata. Coleção Rafael Moraes. Fotografia de Rafael Salim.
O segundo núcleo caminha por uma via menos explorada da modernidade, aquela que reflete não sobre a vontade de racionalidade e a normatividade dos corpos, mas seu avesso, como nas fotografias da consagrada Experiência nº 3, de Flávio de Carvalho, e nas imagens de Luz del Fuego como dançarina e mulher-serpente. Ao discutir noções de performatividade e metamorfose que fazem frente à pretensa hegemonia das formas de ser e existir na modernidade, relaciona-se a isso expressões do imaginário e do sonho, do espiritual e do mítico, seja pela representação do folclore presente nas ilustrações de Nelson Boeira Faedrich, seja pela expressão surrealista de sofrimentos internos em Micróbio da Fuzarca, de Lídia Baís (Fig. 3).
O núcleo também aborda de modo capcioso o quanto a exploração das subjetividades em artes, trabalhando sob vias decorativas sem abandono da figuração, é capaz de tensionar a noção de abstração, ponto culminante da arte moderna. Podemos, assim, pôr em relação a obra abstrata de um reputado Antonio Bandeira aos rítmicos desenhos fitomórficos de Maria do Santíssimo ou ao Uirapuru de Moacir Andrade. Imaginação e mito, metamorfose e abstração se conectam. É a livre via das espiritualidades e do inconsciente freudiano, apesar das sucessivas tentativas da modernidade de suprimi-las em benefício da objetividade racionalista.
O núcleo seguinte trata dos ritos, lazeres e festejos coletivos brasileiros, em sua multiplicidade vigorosa de tradições, entre o êxtase e a tristeza; às vezes operando na ilegalidade como resistência, outras institucionalizado como representação da identidade nacional. É o espaço do samba e da capoeira, dos jogos de sorte e azar, do bumba-meu-boi, das congadas, do circo e do carnaval. Expressão musical e corporal ganham centralidade na seção, formada por uma miríade de objetos e visualidades, do prato de João da Baiana ao filme Alô, alô, carnaval!, dirigido e produzido por Adhemar Gonzaga e Wallace Downey; das capas de disco de Heitor dos Prazeres e Elza Soares até o grande tríptico Sôdade do cordão, de Ismailovitch. Tomando parte do grande cortejo que é o núcleo também encontram-se as absolutamente incríveis (e metamórficas) figurinhas do jogo do bicho criadas por Franklin Cascaes (Fig. 4), ou como inscrito no estandarte que carregam, os “bichos do jogo”.
FIGURA 3. Lídia Baís, Micróbio da Fuzarca, óleo sobre tela, 69 x 53 cm. Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul. Fotografia de Rafael Salim.
FIGURA 4. Franklin Cascaes, A dança dos 25 bichos do jogo, argila e gesso policromado. Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Fotografia do autor e do portal de notícias da UFSC. Fotografia de Rafael Salim.
Reconhecer o que há de moderno nessas grandes performances coletivas implica, de um lado, estender o núcleo inicial Deixa falar até aqui, operando a transição de objetos para sujeitos da modernidade. As fotografias dos Oito Batutas, de Mercedes Baptista ou de Madame Satã –usadas mais como índice documental que propriamente artístico–, evocam a riqueza e pluralidade desses agentes modernos, que vindos das margens alcançaram a fama. Por outro, significa reconhecer o quanto é nessas realizações de grupo que as próprias noções de moderno oriundas do pensamento sociopolítico melhor se expressam no Brasil, a partir da fusão dos indivíduos em corpo coletivo na esfera pública.2
FIGURA 5 Jean-Pierre Chabloz, cartazes para Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, 1943, impressão sobre papel. Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. Fotografia de Rafael Salim.
Finalmente, o último núcleo de Raio-que-o-parta retorna à ideia hegemônica do moderno como progresso para duramente criticá-lo. É a apresentação da crueza e perversidade embutidas no projeto moderno, atualização da empreitada colonialista no assassínio e periferização de grupos subalternizados e na devastação de biomas inteiros em vistas do novo. No primeiro caso, a questão é abordada, por exemplo, por meio das fotografias de destruição do Morro do Castelo ou na pintura do autodidata Paulo Pedro Leal, A matança dos mendigos no Rio Guandú. Já no segundo, a reflexão sobre a destruição ecológica é perseguida na representação dos trens e seu rastro de destruição, pelos inúmeros testemunhos de queimadas e cortes da vegetação nativa, como na série fotográfica de Alois Feichtenberger, e nos cartazes publicitários de Jean-Pierre Chabloz (Fig. 5) para atrair trabalhadores para exploração de látex no norte do país.
Recordando-nos das ficções do moderno, o núcleo também traz toda a exuberância construtiva do projeto moderno e seu sonho utópico, seja nas fotografias da construção de Brasília por Marcel Gautherot, seja na alegoria moderno-cristã presente no quadro de Branco e Silva, A benção da opulência amazônica. Em meio a barbárie perpetrada pela industrialização inconsequente e ao genocídio que lhe acompanhou, a tão projetada e desejada modernidade que nunca se efetivou converte-se em piada de mau gosto.
Vândalos do apocalipse põe um desfecho nos núcleos anteriores, renovando a premissa apresentada inicialmente em Deixa falar. Se do projeto moderno brasileiro pôde continuamente florescer uma cultura alegre e vibrante, disposta a festejar a sua multiplicidade, a lutar e sonhar, essa mesma cultura teve sua imagem sistematicamente controlada a fim de ser percebida apenas como parte de um passado diverso e harmônico, nunca encarada no presente como integrante legítima da modernidade.
Ao aproximar-se de concepções menos estritas sobre o que é moderno ou modernista na cultura brasileira, Raio-que-o-parta tensiona o campo historiográfico e abre novas possibilidades de reflexão para o público.3 Nesse sentido, seu subtítulo, ficções do moderno no Brasil, revela o compromisso da curadoria em acentuar o conceito de moderno não como uma qualidade formal e intrínseca a obras de arte, mas como uma construção histórica de meados do século XIX que guiou (e ainda guia) a maior parte do horizonte da experiência humana até hoje, alcançando nível global.
O esforço bem-sucedido da exposição está na capacidade de engendrar toda essa problemática no ano que deveria representar a consagração derradeira do projeto moderno brasileiro no âmbito cultural, a Semana de 1922. Escovando a história a contrapelo, confrontando a história dos vencedores à daqueles que foram silenciados –como bem ensina Walter Benjamin–, Raio-que-o-parta renova os paradigmas para se pensar o moderno em 2022.
Berman, M. (2007). Tudo que é sólido desmancha no ar. Companhia das Letras.
Cardoso, R. (2021). Modernity in Black and White: Art and Image, Race and Identity in Brazil, 1890-1945. Cambridge University Press.
Coelho, F. (2012). A semana sem fim: celebrações e memória da Semana de Arte Moderna de 1922. Leya.
Simioni, A. P. C. (2013). Modernismo brasileiro: entre a consagração e a contestação. Perspective, 2. https://doi.org/10.4000/perspective.5539
1 Agradeço em particular a Raphael Fonseca, quem me cedeu as fotografias de Rafael Salim para uso nesta resenha.
2 É marcante aqui a afinidade desse núcleo a algumas salas do núcleo Corpo individual Corpo coletivo do novo circuito de longa duração da Pinacoteca do Estado de São Paulo, inaugurado em 2020.
3 Em suas premissas, cabe destacar, a exposição parece tributária, dentre outros, da recente obra de Rafael Cardoso (2021).