HACER ESCULTURAS. PROYECTOS, TÉCNICAS, MATERIALES Y REALIZACIONES. BUENOS AIRES (1880-1904)

Patricia Corsani

Rosario, ProHistoria Ediciones, 2021

320 pp.

Rafael Dias Scarelli

FFLCH, USP

rafael.scarelli@usp.br

https://orcid.org/0000-0002-6103-6539

O leitor de Hacer esculturas tem diante de si um amplo e ao mesmo tempo refinado panorama sobre a história da escultura argentina, desde sua etapa dita “fundacional”, no último quarto do século XIX, até meados da primeira década do século XX. A variada gama de temáticas contempladas pela obra, no entanto, é articulada por um fio condutor que vertebra o livro e confere coesão a sua narrativa. Sua preocupação, fazendo jus ao verbo “hacer” presente no título, é reconstruir o circuito de concepção e produção material das obras escultóricas levadas a cabo em Buenos Aires ou enviadas à cidade na virada dos séculos, revisitando desde as oportunidades de formação artística dos escultores locais, os espaços de exposição e as instâncias de consagração que tinham ao seu dispor, até os dilemas relacionados às técnicas e aos materiais empregados nos projetos escultóricos.

A obra aqui resenhada é produto da tese de doutorado de Patricia Corsani, intitulada La escultura y los escultores en la emergencia de un Arte Nacional, defendida na Universidad de Buenos Aires em 2020. Entretanto, não se trata apenas da conclusão de uma investigação doutoral, mas sim de uma obra que dialoga com o longo percurso de trabalho e pesquisa de sua autora, desenvolvido ao longo das últimas décadas. Indício desse aspecto, presente no próprio livro, são as referências que encontramos aos diversos trabalhos prévios de Corsani, produzidos e publicados em diferentes formatos - de anais de congressos a livros -, abordando temáticas que também são exploradas nesta última publicação, tais como: a construção da estátua Cristo Redentor de Mateo Alonso (Corsani, 2005); a querela entre Ernesto de la Cárcova e Eduardo Schiaffino a respeito das reproduções da estátua equestre de San Martín realizadas pelo engenheiro José Garzia (Corsani, 2006-2007); o papel de ambos, Cárcova e Schiaffino, para a aquisição de esculturas destinadas a ornamentar o espaço urbano portenho (Corsani, 2007; 2012-2013); a trajetória da escultora Lola Mora (Corsani, 2002-2003; 2003-2004; 2009), para citar alguns exemplos. Voz autorizada sobre esses temas, a autora é atualmente pesquisadora do Museo Nacional de Bellas Artes (MNBA), cuja formação da coleção inicial de esculturas é analisada no último capítulo.

Como está expresso no subtítulo do livro, Corsani trabalha com um recorte espacial e cronológico bem delimitado: Buenos Aires, entre os anos 1880 e 1904. Com relação à sua escolha pela capital do país, ressalta que foi ali onde se concentraram os projetos e as realizações escultóricas do momento, de maneira que o destaque “era Buenos Aires como capital y puerto”, local de embarque e desembarque de pessoas e mercadorias, entre os quais, esculturas e obras escultóricas (Corsani, 2021, p. 282). Por sua vez, a autora demonstra que o recorte cronológico selecionado captura um momento de emergência e consolidação da atividade dos escultores argentinos, simultâneo à chegada de numerosos técnicos estrangeiros ao país, como fundidores e marmoristas, oferecendo aos artistas locais melhores condições para viabilizar a conclusão de seus projetos. Além disso, o período em tela condensa uma série de transformações no âmbito político e cultural que favoreceram o campo artístico local. Em especial, o ciclo de prosperidade econômica baseado na produção agropecuária, que impulsionou obras públicas, e a intensa imigração estrangeira, que estimulou os esforços no sentido de produzir e difundir uma identidade nacional que assegurasse a homogeneidade da nação em face ao enorme fluxo imigratório. Apesar da relevância dessa etapa “inicial”, pondera Corsani, trata-se de um período que recebeu pouca atenção historiográfica no que se refere à escultura, quando comparado aos estudos dedicados à pintura e à escultura desenvolvida nos anos seguintes, já no contexto comemorativo do centenário da Independência. O ano de 1904, baliza final da obra, é evocado como um marco na consagração da escultura argentina no exterior, com a realização do primeiro envio coletivo e oficial de obras de artistas argentinos à Exposição de Saint Louis, na qual o primeiro prêmio coube ao escultor Rogelio Yrurtia.

Hacer esculturas conta com oito capítulos, aos quais se acrescenta um anexo documental que reúne a transcrição de algumas das múltiplas fontes mobilizadas, como cartas pessoais, crônicas de jornal e contratos assinados entre escultores e fundidores. O leitor pode apenas lamentar a ausência de uma lista de referências bibliográficas ao final do livro, que facilitaria o mapeamento da bibliografia levantada pela autora. Conforme é esclarecido na Introdução, os seis primeiros capítulos da obra seguem uma sequência cronológica, enquanto as duas últimas unidades abarcam a totalidade do período analisado para refletir sobre as estratégias de consagração e legitimação e as possibilidades de exposição nacional e internacional disponíveis aos escultores do momento.

Ao longo dos capítulos da obra, a autora resgata os percursos formativos e a trajetória profissional de escultores argentinos das primeiras “gerações” –como Lucio Correa Morales, Francisco Cafferata, Manuel Aguirre, Mateo Alonso, Lola Mora, Arturo Dresco e Rogelio Yrurtia–bem como escultores estrangeiros que se instalaram no país, como Camilo Romairone e Víctor de Pol. Entretanto, acredito que o aspecto mais fascinante do livro seja o fato de que não apenas esses escultores são nomeados e têm suas carreiras valorizadas. Destaca-se também o papel dos artífices, especialmente de origem imigrante, que atuavam nas oficinas de marmoraria e fundição especializadas no ramo artístico que surgem na cidade no final do Oitocentos, sobre os quais até agora pouca coisa conhecíamos além do nome. Podemos citar aqui o marmorista suíço Pedro Quattropani, o fundidor francês Santiago Lauer, o fundidor holandês Frederic Vlymink, além de numerosos fundidores de origem italiana, como Antonio Lavazza, os irmãos Francisco e Ettore Pecchi, Giuseppe [José] Garzia, os sócios gravadores de medalha Giuseppe Bellagamba e Constante Rossi, entre outros. Além de identificar as principais obras trabalhadas em suas oficinas e, quando as fontes permitiram, mapear o itinerário percorridos por esses personagens, Corsani explora os conflitos e tensões nos quais se envolveram em oposição aos escultores, reconhecendo o seu poder de agência dentro do campo artístico portenho.

Apesar de frequentemente esquecidos na narrativa canônica sobre a história da arte –não apenas argentina, mas latino-americana–, sem a intervenção desses sujeitos e sem os conhecimentos técnicos dos quais são portadores as esculturas não existiriam fisicamente, em metal ou em pedra. Nesse sentido, apoiando-se nas reflexões de Roger Chartier sobre o conceito de “autor” dentro do universo da edição de livros, ela mobiliza a noção de “autoría compartida”-“autoria compartilhada”. Coloca-se em questão, portanto, uma das dimensões mais transcendentes da história da arte, o conceito de “autoria” como vinculado exclusivamente à figura do “gênio artístico criador”, o qual, no âmbito da escultura, só pode incluir a figura do escultor. Dita “autoria compartilhada” deixou suas marcas no produto artístico final, a exemplo da assinatura das oficinas de fundição na base de algumas estátuas de bronze, às vezes inscritas ao lado e com as mesmas dimensões aplicadas à assinatura do escultor. Podemos, portanto, falar em um “trabalho coletivo”: “el proceso hasta obtener la pieza escultórica en los talleres era entonces una cadena de intervenciones de distintos participantes de diferentes oficios, un trabajo conjunto” (Corsani, 2021 p. 130).

A dimensão coletiva do fazer artístico tem sido abordada, a partir de distintos campos disciplinares, por diferentes autores, ensejando um sólido arcabouço teórico para essa problemática. Desde a Sociologia da Arte, Howard Becker ressalta que o trabalho artístico, como qualquer atividade humana, implica a ação conjugada de diferentes pessoas: “as formas de cooperação podem ser efêmeras, mas na maioria dos casos transformam-se em rotinas e dão origem a padrões de atividade coletivas aos quais podemos chamar mundos da arte” (Becker, 2010, p. 27). No âmbito dos estudos sobre a história da escultura, Carolina Vanegas Carrasco (2015) propõe o conceito de “autoría multiple”, não para refletir sobre a colaboração de outros ofícios ao labor do escultor, mas para pensar o papel dos comitentes e demais agentes envolvidos na “criação” das esculturas comemorativas, decidindo como o herói seria representado, qual o conteúdo das inscrições a incluir no pedestal, sua futura localização, entre outros aspectos.

Nesse mesmo sentido, Corsani também põe em evidência, a partir do monumento a Juan Lavalle, o papel de diversos mediadores que intervinham no processo de concepção e construção de uma obra escultórica, definindo repertórios iconográficos aceitáveis e afirmando a verossimilhança com o homenageado como índice valorativo fundamental para as esculturas, mesmo que que isso significasse sacrificar a liberdade criativa dos artistas. Dessa maneira, intelectuais e políticos associados às comissões ou que eram sempre consultados por elas, como Bartolomé Mitre e Adolfo Carranza, tiveram um papel ativo nos rumos assumidos por alguns projetos.

A partir desse enfoque, os artistas tratados no livro, acima mencionados, perdem sua posição “olímpica” e são recolocados no campo de forças do período, no qual constituíam um entre os muitos atores em cena. Após a leitura desta obra, concluímos que os escultores não são os únicos responsáveis por “hacer esculturas”, verbo conjugado por diferentes sujeitos. Por esse prisma, me pareceu bastante válida a mudança promovida no título da publicação em livro em relação à tese.

Como contraponto aos cerceamentos à liberdade dos artistas, Corsani também discute o caso da estátua do general Manuel Belgrano, modelada por Francisco Cafferata ainda durante a sua estadia em Florença, por sua própria iniciativa e não atendendo à nenhuma encomenda prévia, de maneira que gozou de maior autonomia na representação do herói e de sua indumentária. Corsani, assim como Erika Loiácono (2020, p. 68), ressalta a importância dessa obra como sendo a primeira escultura pública modelada por um artista argentino e fundida em bronze no próprio país, no Parque de Artillería do Exército, em 1883, após ter sido oferecida pelo escultor ao presidente Roca. A autora, de certa maneira, dialoga com a biografia do escultor Lucio Correa Morales escrita pelo crítico e historiador da arte Julio Payró (1949), quem, ignorando a estátua de Belgrano realizada por Cafferata, atribui ao seu biografado tal pioneirismo. Segundo Payró, a inauguração do monumento a Falucho, em 1897, obra de Correa Morales, teria representado o “nascimento” da escultura argentina, já que “en argentinidad total, pues, el Falucho fue lo primero” (Payró, 1949, p. 38). Sem deixar de sublinhar a importância desses dois personagens, que são o foco de seu primeiro capítulo, no entanto, Corsani pondera que “definir quién, si Francisco Cafferata o Lucio Correa Morales, fue el primer escultor nacido en el país no es tan relevante como reconstruir sus búsquedas artísticas y derroteros profesionales” (Corsani, 2021, p. 33).

A obra explora ainda diversos âmbitos do universo da escultura, como as relações de gênero, examinadas a partir das figuras de Lola Mora, Mercedes de María e Josefa Aguirre de Vasilicos; os debates em torno da definição de “arte nacional” e quem caberia nela, cujo momento de maior tensão foi a exclusão do envio argentino à Exposição de Saint Louis, em 1904, de uma obra do escultor de origem filipina radicado no país Félix Pardo de Tavera, promovida por Eduardo Schiaffino; a atração exercida sobre os jovens artistas argentinos pelas cidades italianas, sobretudo, Florença e Roma, depois deslocada para a capital francesa, para onde se dirigiu Rogelio Yrurtia; as disputas pelas concorridas oportunidades laborais disponíveis entre os escultores argentinos e estrangeiros, chamados de “los de afuera” por Yrurtia, entre outros temas.

Trata-se de uma importante contribuição para a historiografia da arte argentina e, ao mesmo tempo, como propõe a autora no encerramento da Introdução, um convite para que novas pesquisas sejam realizadas, tomando-se como ponto de partida questões levantadas que ainda podem ser aprofundadas ou exploradas por novos ângulos. Sem dúvida, o leitor concluirá Hacer esculturas concordando com as estimulantes palavras das prefaciadoras Marta Penhos e Laura Malosetti Costa, respectivamente, orientadora e coorientadora da tese de doutorado de Corsani: agradecido por contar com um livro tão generoso para somar as suas prateleiras de obras essenciais sobre a arte argentina.

Referências Bibliograficas

Becker, H. (2010/1982). Mundos da arte (L. San Payo, Trad.). Livros Horizonte.

Corsani, P. (2002-2003). Logros y fracasos en torno a una misión de Eduardo Schiaffino: el monumento a la memoria de Aristóbulo del Valle (de Jules Dalou a Lola Mora). Avances, 6(1), 43-57.

–––. (2003-2004). Ser escultora en Buenos Aires a comienzos del siglo XX. El caso Lola Mora. Avances, 7(1), 53-67.

–––. (2005). El Cristo Redentor entre argentinos y chilenos ó la representación de la Paz perpetua entre los pueblos. Jornadas de Hum. H. A. La crisis de la representación, Bahía Blanca. Disponível em: <http://repositoriodigital.uns.edu.ar/handle/123456789/3471>.

–––. (2006-2007). “Una antigua querella entre Eduardo Schiaffino y Ernesto de la Cárcova: las reproducciones industriales del monumento al General San Martín”. Avances, 11 (2), 43-61.

–––. (2007). Hermosear la ciudad. Ernesto de la Cárcova y el plan de adquisición de obras de arte para los espacios públicos de Buenos Aires. Estudios e Investigaciones Instituto de Teoría e Historia del Arte Julio Payró, 11, 67-82.

–––. (2009). Lola Mora. El poder del mármol. Obra pública en Buenos Aires (1900-1907). Editorial Vestales.

–––. (2012-2013). Simpatía españolas. Intercambios entre Eduardo Schiaffino, Miguel Blay y Agustín Querol (1906-1908). Avances, 22 (2), 39-56.

Loiacono, E. (2020). Trozos de Modernidad. La construcción de un campo escultórico moderno en la ciudad de Buenos Aires entre 1882 y 1919 [Tese de doutorado]. Universidad Nacional de San Martín.

Payró, J. (1949). Lucio Correa Morales y el nacimiento de la escultura argentina. Monografías de artistas argentinos. Academia Nacional de Bellas Artes.

Vanegas Carrasco, C. (2015). Disputas monumentales. La celebración del Centenario de la Independencia a través de sus monumentos conmemorativos (Bogotá, 1910) [Tese de Doutorado]. Universidad Nacional de San Martín.