Ana María Reyes
Durham, Duke University Press, 2019
311 pp.
Carolina Vieira Filippini Curi
PPGAV – IA/UNICAMP
carol.filippini@gmail.com
As produções conectadas à nova figuração na América do Sul nos anos 1960 e 1970 constituíram um marco tanto do ponto de vista formal quanto em relação ao seu engajamento político, questionando os paradigmas modernistas e aproximando a arte da vida, do cotidiano. Coincidindo com ditaduras militares em alguns países, com períodos de frágeis democracias e frustração dos ideais modernizadores em outros, e com o impacto da Guerra Fria e grande interferência dos Estados Unidos no continente, os artistas da nova figuração abordaram e complicaram as dinâmicas e embates experienciados em seus países. Pelas lentes das obras de Beatriz González e dos textos críticos de Marta Traba, o livro “The politics of taste: Beatriz González and Cold War aesthetics”, de Ana María Reyes, discute os principais episódios culturais e políticos da Colômbia nesse período marcado por grandes transformações.
Publicado pela Duke University Press, e resultado da tese de doutorado da autora realizada na University of Chicago e de pesquisas posteriores financiadas por diversas instituições, o livro constitui uma inescapável literatura sobre as produções da artista colombiana e da crítica de arte argentina, e sobre a própria Colômbia dos anos 1960 e 1970. Com um texto claro e envolvente, Reyes trabalha os contornos da produção dessa artista chave para a produção colombiana e que, apesar de sua grande importância e destaque locais, foi por décadas pouco estudada e reconhecida fora da Colômbia. Publicado em inglês, o livro é uma importante adição a bibliografia existente sobre González, que se ampliou nos últimos anos com catálogos de exposições realizadas sobre a artista, em um contexto de retomada de sua produção.
Ana Maria Reyes centra-se na trajetória de Beatriz González entre 1964 e 1971, analisando suas pinturas conectadas à nova figuração, ou ao “pop colombiano” nas palavras de Marta Traba, e alguns de seus mobiliários produzidos a partir de 1970. Em cada um dos cinco capítulos, a autora traz como eixo central uma exposição individual ou participação de González em salão ou bienal. A partir da análise das mostras e obras, e dos textos de Traba e de outros críticos do período, Reyes nos ajuda a melhor entender a política, a cultura, as expectativas e os receios da sociedade colombiana. Ela revela, ao longo dos capítulos, diversos acontecimentos chave ocorridos entre os anos 1930 e 1970, desde movimentos populares, transformações na política, relações com os Estados Unidos e formação de novas vanguardas, até as construções e transformações de uma cultura oficial, de uma imagem de povo, e dos conceitos de alta arte e de bom gosto. Ela realiza, ainda, uma interessante análise da criação e da transformação dos museus, salões e bienais nos quais González expôs, como o Museu de Arte Moderna de Bogotá (MAMBO), o Salão Nacional de Artistas Colombianos, a Bienal de Coltejer e a Bienal de São Paulo. A rica análise de Reyes nos ajuda a melhor compreender o contexto de produção de González, suas escolhas, e sua recepção crítica.
Um dos pontos interessantes do livro, e que se constitui como um de seus eixos principais, é a discussão da relação entre Beatriz González e Marta Traba. A dinâmica entre essas duas importantes figuras da arte colombiana é um caso de estudo especialmente interessante, afinal, elas tiveram uma relação de professora e aluna antes de González tornar-se uma artista consagrada e Traba uma de suas maiores defensoras. Reyes enxerga uma dinâmica de mutua influência entre a produção artística de uma e a crítica de outra. Para ela, os ensinamentos de Traba e a maneira como interpretou a produção da artista tiveram impacto na trajetória de González, ao mesmo tempo que as obras da artista ajudaram Traba a definir e moldar sua “teoría de la resistencia”. Outro ponto importante que aparece ao longo do livro é a discussão da situação da mulher na sociedade colombiana da época. Reyes mostra como os embates acerca da subjetividade e da sexualidade feminina aparecem nas obras de González, que trazem imagens representativas dos ideais de maternidade, de beleza, de devoção religiosa. Além disso, ela discute o impacto das questões de gênero nas críticas direcionadas não somente a Beatriz González, mas a outras artistas no período.
Reyes inicia seu livro com uma análise da primeira mostra individual de González, realizada em 1964 no Museu de Arte Moderna de Bogotá, na qual a artista expos “Encajeras”, uma série de pinturas com caráter abstrato baseadas na obra “A Rendeira” (c. 1669-1670) de Johannes Vermeer. A partir de uma análise detalhada das obras, das críticas direcionadas a elas, e da educação recebida por González na Universidade dos Andes, Reyes inicia, nesse primeiro capítulo, a discussão de diversos pontos que serão retomados ao longo dos capítulos seguintes, entre eles o lugar da mulher na sociedade da época, o que se defendia como uma arte universal e de “exportação”, e a influência dos Estados Unidos na formação de instituições culturais e das noções de gosto no país. Na primeira parte do capítulo, a autora analisa as críticas escritas por Marta Traba, Walter Engel e Gloria Diago a respeito da exposição, mostrando como os mesmos a analisaram somente a partir de um ponto de vista formal. Os críticos valorizaram o percurso abstrato, a autonomia e a sofisticação presentes nas obras, virtudes que acreditavam caracterizar uma linguagem universal, distanciando-se de um estereótipo de arte latino-americana exótica e “excessiva”, relacionada por eles a um ultranacionalismo e uma politização mais direta da arte presente em décadas anteriores. A autora mostra, ainda, como esses conceitos se encaixavam no que a Frente Nacional e instituições como a Organização dos Estados Americanos e a União Pan-Americana idealizaram para a arte e cultura colombiana e latino-americana no geral: uma arte que não fosse “hipersexualizada e hiperracialisada”.
Outro foco do capítulo é a formação recebida pela artista na Universidade dos Andes. Reyes aponta que a linguagem abstrata, o olhar desinteressado e uma ideia específica de bom gosto foram aspectos ensinados na instituição, sendo absorvidos por González para depois serem subvertidos e questionados. Ao final do capítulo, a autora propõe uma nova interpretação da série “Encajeras”, defendendo que elementos que se tornaram a marca da artista, como a apropriação, a discussão da autoria, da originalidade e da construção do gosto já estavam presentes neste trabalho. Além disso, ela traz uma interessante análise das dinâmicas de gênero no país e seu impacto nas críticas direcionadas a artistas como Beatriz González e Gloria Martínez.
No segundo capítulo, a autora traz como foco central a análise da obra “Suicidas del Sisga”, de 1965, uma das mais consagradas de González, ganhadora do segundo prêmio do Salão Nacional de Artistas Colombianos de 1965. O trabalho representava, em cores fortes, uma fotografia reproduzida nos jornais da época de um casal que supostamente havia se suicidado como uma maneira absolver a mulher do pecado de ter se envolvido sexualmente com um homem. A obra teve uma recepção polêmica na época, e foi considerada um marco da arte colombiana do período por representar uma mudança de linguagem que ia contra os paradigmas modernistas defendidos até então no país. Reyes inicia o capítulo com uma inquietante questão: por que a obra foi lida no período como representação do cursi, e não como representação de um evento trágico? Para responder a essa pergunta, ela realiza uma rica análise da política e da crítica da época, e da educação recebida por González em casa. De acordo com a autora, diversas questões como as políticas de controle de natalidade estabelecidas e divulgadas pelo governo da Colômbia e pelos Estados Unidos e as grandes migrações do campo para a cidade tiveram impacto na maneira como as classes mais baixas eram vistas e como a obra foi interpretada. Assim, para Reyes, uma elite que via excessos e sentimentalismos como uma marca das classes mais pobres, consideradas não sofisticadas, só poderia ler uma obra com as cores e o tema da de González na chave do cursi. A autora aborda ainda, no capítulo, a crise econômica de 1964, e mostra como a mesma gerou uma descrença em relação aos programas de modernização do país, impactando a produção artística e também as premiações do Salão Nacional.
A segunda exposição individual de González, realizada no MAMBO meses após o museu ser transferido para o campus da Universidad Nacional de Colombia, é o foco do terceiro capítulo. Na mostra, Beatriz González exibiu catorze pinturas que representavam reproduções de grande circulação na Colômbia, como gravuras de deusas produzidas pelas famosas Gráficas Molinari, e fotos de família que circulavam em jornais ou em álbuns de fotografia privados. Reyes analisa tanto a estratégia formal da artista, de realizar pinturas que remetiam a colagens, até os temas representados em suas obras, que discutiam não somente a reprodução e o colecionismo de imagens, mas o espaço ocupado pela mulher em uma sociedade com fortes valores religiosos e que impunha padrões de beleza específicos para mulheres. Além disso, é tema do capítulo a invasão dos militares a Universidade Nacional em junho de 1967, treze dias após a inauguração da exposição de González, e a violenta repressão aos alunos. Reyes mostra como os direcionamentos da política colombiana e fatores como a divulgação nos jornais da interferência da CIA nas políticas culturais da América do Sul fizeram com que parte dos críticos mudasse seu posicionamento e ressignificasse sua defesa de uma arte universal. Muitos passaram, assim, a valorizar e a estimular uma produção autenticamente local, de resistência ao imperialismo. Nesse contexto, a produção de González passa a ser, para críticos como Marta Traba, um grande exemplo dessa nova e desejada arte.
O capítulo quatro dedica-se a análise das obras “Apuntes para la historia extensa I e II”, premiadas no 19º Salão Nacional de Artistas Colombianos. Nas obras, feitas em formato de medalhas, Gonzalez representa Simón Bolívar e Francisco de Paula Santander, considerados heróis nacionais e pais do partido conservador e do partido liberal colombianos. A obra teve como referência duas imagens publicadas no jornal El Tiempo, uma da pintura “Simon Bolivar” (1820) de Pedro José Figueroa, e outra da aquarela “Francisco de Paula Santander” (1830) de Francisco Evangelista Gonzalez. Como aponta Reyes, as obras de Beatriz González novamente causaram polêmica e dividiram a mídia, e a artista foi acusada de plagio por Arturo Abella, editor do jornal conservador El Siglo. A associação dessas importantes figuras nacionais ao popular, por meio das cores e da técnica aplicada, foi vista, por parte da crítica, como uma heresia. A autora discute, assim, a formação das imagens de Bolivar e de Santander, e o quanto elas foram capitalizadas pelos partidos, havendo ainda uma disputa em relação ao ícone de Bolivar. Para Reyes, porém, o que interessava a Gonzalez não era tomar partido nessas disputas, mas revelar os mecanismos por meio dos quais ícones e narrativas são construídos. Além disso, a autora aborda, no capítulo, acontecimentos que marcaram o país, como o assassinato do político, jurista e professor Jorge Eliécer Gaitán, e revoltas populares como El Bogotazo, traçando um interessante paralelo entre a maneira com a qual a mídia caracterizava Gaitán e o povo colombiano, e a maneira como, muitas vezes, as obras de González eram vistas: como não refinadas, vulgares, de mau gosto.
Por fim, no último capítulo, Ana María Reyes discute a participação de González na Segunda Bienal de Arte Coltejer, em Medellín, em 1970, passando também pela participação da artista na Bienal de São Paulo, em 1971. A autora apresenta uma análise detalhada dos mobiliários que González apresentou nas bienais, parte de um corpo de trabalho que ela começa a desenvolver nos anos 1970. Ela discute as estratégias utilizadas nessas obras, que misturavam muitas vezes o trabalho da artista, o trabalho dos artesãos de móveis, e técnicas e materiais da indústria. Além disso, Reyes analisa as imagens retratadas por González, e as implicações em relação a moral, gênero e formação de identidade trazidas por elas. É foco do capítulo, ainda, o surgimento das bienais de Coltejer e de São Paulo, e as dinâmicas específicas existentes em torno de uma bienal de arte internacional. Reyes mostra como González, uma artista naquele momento largamente consagrada na Colômbia, teve seu trabalho ignorado pelos jurados da Bienal de Medellín, considerado uma copia latino-americana da arte pop dos Estados Unidos. A autora discute o quanto as escolhas dos jurados da bienal, os europeus Giulio Carlo Argan, Lawrence Alloway e Vicente Aguilera Cerni, estiveram relacionadas a defesa de produções conectadas ao construtivismo e a op art como uma maneira de valorizar correntes consideradas europeias, versus tendências consideradas americanas como a arte pop. Reyes discute, por fim, a participação de González na Bienal de São Paulo, e como Traba utilizou seu texto de apresentação da artista na bienal para refletir sobre a recepção da mesma no cenário internacional e para questionar as dinâmicas das bienais de arte.
O livro de Reyes e suas análises cuidadosamente construídas nos ajudam, assim, a melhor entender a produção de Beatriz González e Marta Traba, e o contexto em torno de suas trajetórias. Ele nos mostra como a arte é uma ferramenta poderosa de articulação e de análise do cotidiano, possuindo ainda a agencia de mudar discursos e narrativas. O livro é um modelo de como se olhar para obras e textos críticos descortinando acontecimentos do período e trazendo ainda análises atualizadas, afinal as produções continuam sujeitas a re-visões e re-interpretações. As análises de Reyes nos permitem ainda traçar importantes paralelos com outros países sul-americanos, em uma chave de aproximações e distanciamentos. As obras de González e o livro de Reyes são potentes pois nos ajudam a melhor compreender acontecimentos passados e também a refletir sobre a política atual da América do Sul, e sobre as dinâmicas de gênero e embates ainda travados pelas artistas e pelas mulheres em geral. Para mim, que sou uma jovem pesquisadora de arte sul-americana, o livro é um presente e um modelo a se seguir.