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A conservação artística no Brasil entre 1948 e 1976: o restauro honesto e a cera/resina


May Christina Cunha de Paiva1

Universidade Federal do Estado de Rio de Janeiro


Prof. Dr. Edson Motta, Jr.

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Forbes e o restauro honesto


As diferentes metodologias da História da Arte (e Arqueologia) sempre determinaram, direta ou indiretamente, as linhas de intervenção adotadas pelos restauradores de pinturas. Enquanto prevaleciam, acima de tudo, as narrativas históricas, religiosas ou as cenas de temas moralizante, o foco do restauro dirigia-se ao regate destes conteúdos e, portanto, as intervenções visavam recompor, com repinturas, a lógica do relato visual. Este contexto ideológico explica, provavelmente, porque o restauro “de fantasia” era prevalente e estimulado, mesmo em ambientes letrados. Porém, em meados do século XIX, os ventos


1 Este trabalho e um resumo da pesquisa, em andamento, para a Tese de Doutoramento em Conservação e Restauro realizada por May Christina Cunha de Paiva na Universidade Católica Portuguesa\Porto sob coordenação da Professora Doutora Eduarda Vieira.


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artísticos passaram a soprar cada vez mais em direção a valorização de uma temática menos literária e os aspectos formais e estilísticos de cada obra ganhavam maior peso e significado. O que era pintado perdeu valor em relação a como era pintado e por quem. Inicia-se o período de culto ao autor, a autenticidade e a boa forma (em lugar do bom relato), e os materiais, antes meros meios de realização das imagens ganham significado próprio e passam a ser admirados como parte integrante do fenômeno estético. Francesca Bewer no seu extraordinário livro sobre os primeiros passos do Restauro nos Estados Unidos da América nos informa, claramente, sobre as mudanças que ocorreram:


A metodologia científica e analítica da Arqueologia ajudou a formatar a história da arte, como uma história dos estilos. Com o aumento do Colecionismo e, em especial, com o estabelecimento das galerias nacionais, objetos como pinturas de retábulos foram removidos de seu contexto original para serem musealizados, perdendo assim sua função ritual e assumindo um novo status como obras de arte e documentos históricos. Desta forma, a atenção se deslocou do poder do objeto/imagem, dentro de uma comunidade, para sua atribuição a um artista específico e seu lugar no contexto da obra deste artista. Com esta ênfase no criador, surge a crença de que o valor de uma criação artística deriva da sua autenticidade.2 (Grifo nosso)


Nesse contexto, um dos grandes pioneiros da Conservação e Restauro moderno inicia sua trajetória. Edward Waldo Forbes (1873-1969) após estudar História da Arte em Harvard (turma de 1896), usou a fortuna de sua família para formar, a partir do início do século XX, uma coleção de pinturas italianas pré-renascentistas, que comprava nas suas viagens à Europa. Sua frustração com as falsificações encontradas e as restaurações e as repinturas abusivas o estimularam a organizar um centro de conservação e tecnologia da arte no Fogg Museum, na Universidade de Harvard. Este se tornou um dos principais embriões do restauro moderno e formou uma geração de conservadores/restauradores, dentre eles Edson Motta.

Como vimos acima, a História da Arte passou a dar mais importância, no final do século XIX, à autoria, estilo e autenticidade. Embora a iconografia e mais tarde a sua articulação com a iconologia continuassem sendo, obviamente relevantes, a execução pictórica e a matéria que as sustentava ganhou protagonismo. Um retrato pintado por Tizziano, por exemplo, passou a ter mais importância pela sua autoria, autenticidade e pela maneira como foi pintada do que pela identidade do retratado e as cenas sacras passaram a ser apreciadas em museus mais pela sua beleza formal do que sua narrativa religiosa. Neste contexto, a “mão do artista”,


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  1. F. G. Bewer. A Laboratory for Art, Harvard’s Fogg Museum and the Emergence or Conservation in America, 1900-1950. Cambridge, Harvard Art Museum, 2010, p. 42.


    a autenticidade da forma, do estilo, dos materiais e dos métodos era fundamental. Os materiais nunca haviam sido valorizados por si sós e foi somente através da participação e do esforço de Edward Waldo Forbes que o interesse pela autenticidade da matéria foi valorizado no contexto da História da Arte dos Estados Unidos.

    O interesse deste pioneiro pelas técnicas artísticas e pelo restauro se iniciou na medida em que ele tomava conhecimento de que, entre as pinturas que comprou para a sua coleção na Itália, e que eventualmente seriam doados ao Fogg, havia muitas seriamente danificadas e recobertas de extensas repinturas. Muitas outras, revelaram-se falsificações, mais ou menos hábeis, feitas para saciar a sede colecionistas de ricos Norte Americanos. Após muitos enganos e desapontamentos, Forbes passou a repudiar intensamente as obras que designava como “maquiadas”3 e persistia na tarefa rotineira de mandar remover os vernizes alterados e purgar de repintes todas as peças que entravam para a coleção. Sendo assim, todos os acréscimos eram eliminados sistematicamente, independentemente de sua relevância histórica e do estado de ruína em que a obra subjacente poderia se encontrar. Forbes não autorizava qualquer compensação pictórica que fosse além da singela entonação da massa de nivelamento das lacunas –os honest fills–4 e defendia o princípio de percepção visual que sugere que o espectador pode reintegrar mentalmente formas incompletas.

    Forbes admirava John Ruskin (1819-1900), escritor e crítico de arte que cultuava as ruinas e repudiava as restaurações reconstrutivas.5 Assim como Ruskin, ele passou a defender que somente o trabalho autêntico da “mão do artista” marcado pelo tempo, poderia expressar seu gênio e provocar uma transformação emocional. Forbes acreditava que qualquer pincelada seria uma traição ao artista.6 Na década seguinte, Forbes este pioneiro do Restauro passou a adotar as teorias de Camilo Boito (1836-1914), que pregava a possibilidade de reintegração das lacunas ao todo composicional na condição de que ela fosse reconhecível. Esta mudança de princípios se deu em grande parte devido a críticas de historiadores de Arte e artistas ligados a Universidade de Harvard que manifestaram restrições em relação ao caráter ruinoso, resultante das limpezas orientadas por Forbes. Após esta sua conversão ao restauro menos purista de Boito, Forbes contratou o aquarelista e fotogravador Roger Arcadius Lyon para a tarefa de reintegrar pinturas consideradas excessivamente danificadas. Ele desenvolveu um


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  2. Ibidem, p. 65.

  3. Ibidem, p. 108.

  4. Ibidem, p. 41.

  5. Ibidem, p. 109.


    sistema de reintegrações, em sintonia coma as teorias de Boito7 que permitiam estabelecer na obra alguma unidade formal sem, porém, “enganar” o espectador. Este era um sistema de hachuras, habilmente executadas, que fazia valer sua experiência como gravador. Bewer elabora as consequências do uso desta técnica, sugerindo que uma obra restaurada por Lyon e exposta nos Uffizi em 1935 tenha influenciado o método de reintegração por Tratteggio8 desenvolvida alguns anos mais tarde em Roma.


    Edson Motta e a importação de técnicas e critérios para o Brasil


    Ao retornar ao Brasil, no início de 1948, Edson Motta traz consigo não só as modernas e “racionais” técnicas de restauro utilizadas no Fogg, que visavam principalmente mitigar os efeitos das oscilações de umidade relativa, mas também os critérios éticos e estéticos desta instituição que, como vimos, seguiam os princípios teóricos de Ruskin e Boito. Enquanto em Harvard estas técnicas e fundamentos conceituais eram usados apenas em pinturas, Motta as aplica –com entusiasmo e criatividade– às talhas, às esculturas policromadas e às pinturas sacras existentes nos interiores das igrejas brasileiras.

    Uma defesa acadêmica destes métodos foi publicada pelo restaurador.9 Nela, cita exemplos da reintegração por hachuras e discute sua função ética de não rivalizar com o artista e sua função estética de resgatar parte da unidade formal perdida. É interessante notar que estes procedimentos foram utilizados, de forma consistente, durante quase 30 anos e seus fundamentos foram ensinados há várias gerações de restauradores brasileiros até a chegada das teorias de Cesare Brandi ao Brasil em 1980 através da Universidade Federal de Minas Gerais.


    Edson Motta em ação e o ideário do Iphan


    Nos anos de 1930, intelectuais e políticos brasileiros redescobriram as cidades históricas, seu tecido urbano e suas edificações civis e religiosas como fonte de uma brasilidade simbólica na formação de uma identidade nacional moderna. A estas cidades, portanto, foi dirigido o esforço de recuperação e salvação, não só do seu acervo arquitetônico, como também da sua pintura, escultura em madeira e de sua talha.


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  6. I. Gozalez-Varas. Conservación de Bienes Culturales. Teoría, historia, principios y normas. Madrid, Ediciones Catedra S.A, 1999, pp. 176-184.

  7. F. G. Bewer, op. cit., p. 185.

  8. E. Motta y M. L. G. Salgado. “Restauração de Pinturas, Aplicações da Encáustica”, Publicações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Nº 25, 1973,


    O quadro que se apresentava no interior das igrejas coloniais luso-brasileiras em Minas Gerais era, na maioria dos casos, lamentável. Durante as muitas décadas de abandono, desmandos clericais e renovações impróprias os bens móveis integrados às igrejas se encontravam repintados diversas vezes, em diversas cores, por diversos artistas, conforme o gosto vigente na comunidade à época de cada pároco.

    Para restaurá-las, o SPHAN interditava os templos e impunha um curso de tratamento afinado com princípios importados dos Estados Unidos por Edson Motta. Isto significava literalmente desmontar todos os elementos decorativos, remover com solventes ou por meios mecânicos toda a repintura que se encontrava sobre a camada de douramento ou tinta considerada original e primeira. A intenção era revelar o estrato “original” mesmo que este se encontrasse severamente danificado. Quando os danos revelados eram poucos, Edson Motta utilizava uma obturação de nivelamento pigmentada (honest fill). Porém, como o resultado destas intervenções era muitas vezes indesejável do ponto de vista visual, ele se valia das hachuras que Lyon desenvolvera na década de 1920 para diminuir, ainda mais, o impacto causado pelas lacunas.

    Ao visitar estas igrejas, no final dos anos 80, os autores testemunharam a profusão de reintegrações “neutras” ou em hachuras realizadas em conformidade com os ensinamentos de Arcadius Lyon. Na maioria dos casos as tintas a óleo utilizadas se encontravam escurecidas o que derrotava a função moderadora da reintegração. Por outro lado, eram evidentes a qualidade e a habilidade dos técnicos que as executaram.

    Estes princípios, aplicados ao restauro por orientação de Edson Motta, convergiam com os que Lucio Costa, arquiteto modernista e também funcionário graduado do SPHAN, defendia para o restauro arquitetônico princípios afinados com a carta de Atenas. Costa pregava a “camuflagem” das desarmonias estilísticas dos monumentos com reformas que as ajustavam estilisticamente ao conjunto urbano: o chamado “estilo patrimônio”, um “quase colonial”. Os princípios defendidos por ele permitiam que suas restaurações arquitetônicas se harmonizassem ao entorno (colonial) e, ao mesmo tempo, fossem reconhecidas como não pertencentes a esse período.10

    Assim sendo, os procedimentos de Edson Motta como restaurador de bens móveis integrados à arquitetura, encontraram ressonância nos praticados por Lucio Costa, o que permitiu que os dois trabalhassem de forma complementar e harmônica durante duas décadas.


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  9. L. Motta. “A SPHAN Em Ouro Preto. Uma história de conceitos e critérios”, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1985.


    O restauro estrutural e a cera/resina


    As misturas de cera de abelha foram amplamente utilizadas desde o século XVIII com a finalidade de reentelar, planificar ou consolidar pinturas sobre tela. O mais antigo e conhecido caso de sua utilização no tratamento do restauro foi o da obra de Rembrandt van Rijn (1606-1669), A Ronda Noturna, efetuado em 1851, que acabou por difundir o método para além da Europa.

    Nos Estados Unidos da América, a técnica foi divulgada pelo Fogg Museum pelas mãos de Morton Bradley, Jr. (1912-2004) escultor e restaurador treinado pelo Fogg e Richard Buck (1911-1977) que tinha uma formação graduada em arte e cursou o mesmo programa de ensino em Harvard. Edson Motta aprendeu com eles a utilizar os compostos aquecidos deste adesivo para reentelamentos, consolidação dos estratos pictóricos e trabalhos estruturais em pinturas sobre madeira. A lógica que justificava a prática do uso deste material era aparentemente impecável. Os compostos de cera\resina são muito penetrantes, bons adesivos, fundem em temperaturas relativamente baixas e eram percebidos como sendo reversíveis. Sua maior virtude porém, reside no fato de que reduz muito a higroscopia dos suportes sobre os quais as pinturas são feitas e, assim, evita contrações e expansões que podem provocar o descolamento dos extratos pictóricos. Estas qualidades tornaram a cera\resina o adesivo de escolha para a grande maioria dos tratamentos estruturais no Fogg Museum e nos anos de 1950, 1960 e 1970, as técnicas de reentelamento e consolidação com este material eram as mais usadas nas Américas e em boa parte dos países do norte da Europa.

    Porém, enquanto no resto do mundo estes tratamentos eram executados somente como uma intervenção curativa de restauro, no Brasil, passou a ser aplicada também, como um método de prevenção para estabilizar a movimentação de telas em ambientes com alta umidade. Estas técnicas de impregnação foram utilizadas de meados dos anos 1950 até os anos 1970 por Edson Motta. Foram usadas primeiramente nas igrejas das cidades do interior de Minas Gerais e depois difundidas para outros estados como Rio de Janeiro e Espírito Santo. No Rio de Janeiro, temos, como exemplo, o restauro dos retábulos, talhas e pinturas do Mosteiro de São Bento feito entre 1968 e 1974 como prova de sua eficácia na estabilização dimensional dos suportes. O Mosteiro só veio a ser tratado novamente em 2012-15 e, nessa ocasião, foi observado pelos restauradores que lá trabalharam, que as áreas consolidadas continuavam em excelente estado estrutural.11


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  10. L. Santos. Relato oral sobre as condições do trabalho feito por Edson Motta no Mosteiro de São Bento. Rio de Janeiro, 22/11/2015. Leila Santos é Conservadora/Restauradora, sócia-proprietária da firma Jequitibá Restaurações, Rio de Janeiro (RJ).R. O. Santos. Relato oral sobre as condições do trabalho feito por Edson Motta no Mosteiro de São Bento. Rio de Janeiro, 28/11/2015. Rejane Santos é Sócia-proprietária da firma RG Restaurações, Rio de Janeiro (RJ).


    É importante ressaltar também o contexto histórico no qual se faziam as restaurações. Nos anos 1950 e 1960, as distâncias a serem percorridas para a realização destes projetos, a falta crônica de recursos governamentais, a dificuldade na obtenção de equipamentos e materiais e o limitado treinamento das equipes contratadas eram latentes. Estas dificuldades conspiravam para que Edson Motta fosse obrigado a encontrar soluções criativas, nas quais a eficácia de cada tratamento fosse possível com o mínimo de material disponível. As misturas de cera/resina, aliadas ao pentaclorofenol, tornaram-se panaceia oportuna e bem-vinda no que já foi descrito como a fase heroica do SPHAN.12


    Conclusão


    Uma conjunção de fatores contribuiu para que o Departamento de Tecnologia do Fogg Museum fosse tão influente nos Estados Unidos da América e, eventualmente, no Brasil. A virada positivista do final do século XIX, as teorias puristas de John Ruskin e Camilo Boito, e as mudanças no panorama da História das Artes foram determinantes para o surgimento de uma versão de restauro de pinturas purista influenciado pelo culto romântico das ruínas e pela ânsia cientificista de identificação de materiais. Além disso, o ambiente museológico alternadamente seco e úmido dos museus estadunidenses incentivou o aperfeiçoamento do uso de misturas de cera/resina tanto como barreira contra umidade como para consolidação e aderência de reentelamentos.

    Ao retornar ao Brasil, Edson Motta implanta tanto as técnicas quanto os princípios técnicos e conceituais aprendidos nos laboratórios do Fogg Museum e alicerça sua prática de quase três décadas no binômio restauro honesto –cera– resina. Seu legado, embora superado sob vários aspectos, perdura até hoje embutido na aparência e na estrutura de muitas igrejas barrocas brasileiras e na admiração dos restauradores contemporâneos por suas iniciativas pioneiras.


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  11. L. Motta. “A SPHAN Em Ouro Preto. Uma história de conceitos e critérios”, op. cit.