IV Seminario Internacional sobre Arte Público en Latinoamérica

Pasados presentes: debates por las memorias en el arte público en América Latina


Cali, Colombia

13 al 15 de octubre de 2015


Renato Palumbo Dória

Universidade Federal de Uberlandia


Com apoio da Universidad del Valle e do Archivo Histórico de Santiago de Cali, o Grupo de Estudios sobre Arte Público em Latinoamérica realizou na Colômbia, entre 13 e 15 de outubro de 2015, o IV Seminario Internacional sobre Arte Público en Latinoamérica: Pasados presentes: debates por las memorias en el arte público en América Latina. Seminário realizado já em diferentes países e que busca fomentar e fortalecer uma rede de investigadores atentos à arte pública na região, sendo que poucas vezes as tópicas de um evento deste gênero estiveram tão em consonância com determinado contexto histórico e social, sendo a Colômbia das últimas décadas palco de inúmeras disputas no campo da memória, reverberando processos recorrentes em toda a América Latina. Com a presença de estudantes e pesquisadores da própria Colômbia, além do México, Cuba, Argentina, Chile, Peru, Brasil, Cuba, Paraguai, Venezuela, Espanha e Equador, entre outros, o seminário ofereceu um panorama amplo da discussão contemporânea da arte pública na América Latina, estruturando-se para tal em diferentes eixos temáticos, verificando-se neste contexto o aprofundamento de percepções e sensibilidades específicas, com o evidente impacto da história política na constituição de uma memória comunitária moldada por variadas formas de violência, e sobretudo pela ausência física e simbólica de seus mortos, sendo emblemático que a imagem escolhida para ilustrar o material gráfico do evento tenha advindo do projeto Magdalenas por el Cauca, dos artistas colombianos Gabriel Posada y Yorlady Ruiz – projeto no qual se rememora de modo antimonumental, através de ações coletivas, os mais de mil desaparecidos da região do distrito de Buenaventura e do vale do rio Cauca (e por conseguinte os mais de 50.000 desaparecidos em Colômbia nas últimas décadas) – corpos ocultados, inacessíveis e levados pelas águas, mas que nos fazem indagar: como reparar o irreparável?

Em Arte público y activismo político observamos, em direção oposta à imposição do esquecimento, as estratégias em torno da memória coletiva dos assassinados e desaparecidos, com a importância simbólica e concreta de se guardar os nomes próprios destes indivíduos: personagens de dramas domésticos e familiares, mas sobretudo coletivos e sociais. Rememoração que entende que silenciar sobre os mortos de ontem é silenciar sobre os de hoje, podendo darem-se estes processos através de práticas comunitárias como as ensejadas pelo coletivo mexicano Bordando por la paz y la memoria, que ocupando praças e ruas na realização comunal de bordados redimensiona afetivamente a ausência dos cerca de 160.000 mortos e 30.000 desaparecimentos ocorridos no México desde 2006. Práticas de empatia que alcançam dimensão pública, superando os particularismos e produzindo, pelo uso compartilhado dos olhos e das mãos, formas efetivas de mobilização emocional. A mesma sessão tratou ainda das disputas em torno da memória social e dos modos pelos quais uma coletividade se apropria ou não de determinado monumento, dando-lhe por vezes outros significados para além dos originariamente previstos, e mesmo em oposição aos significados impostos verticalmente, valorizando-se a emergência de modalidades horizontais de políticas da memória, como as praticadas, desde 2010, pelo grupo Espacio de Cultura y Memoria El Rancho Urutau em relação às vítimas da cidade de Ensenada, na provincia de Buenos Aires (assassinadas, sobretudo na década de 1970, por grupos paramilitares e pelo terrorismo de estado), através de murais figurativos e rememorativos que, fazendo estas vítimas emergir do silêncio através da arte, insurgem-se contra o assassinato da própria memória; sendo significativo que se tratasse também na referida sessão da poética ativista do artista brasileiro Paulo Bruscky, que articulando em suas performances o espaço da rua e o cotidiano através da utilização do próprio corpo, logrou manter uma produção altamente crítica durante o último período de ditadura militar no Brasil.

Em Práticas artísticas comunitárias tratou-se de como a sobrevivência e significação da arte pública no cenário urbano dependem do imaginário coletivo e dos pactos que se estabelecem entre as comunidades e os objetos estéticos, muitas vezes impostos a um determinado espaço; ou ainda como através da linguagem da dança popular podem se manifestar pertencimentos, tensões e resistências em torno do território, em cartografias corporais que permitem a tomada de consciência de si e de seu próprio lugar no contexto urbano; podendo até mesmo os variados processos de autorepresentação e reconstrução coletiva da memória em torno de uma única fábrica e sua vizinhança, como no caso da extinta fábrica Grafa, em Buenos Aires, estabelecer relações diretas com a construção da memória de todo um país. Reiterou-se também aqui a dimensão política da arte pública, apesar da ambíguidade do conceito, na medida em que toda arte deveria ser pública por princípio, ao instaurar debates e ativar as vozes e corpos dos que estão nas sombras e margens, possibilitando a criação e ocupação de espaços que se contraponham à herança colonialista. Espaços comunacionais, abertos para a dança e o gesto, numa temporalidade coletiva e desestabilizadora. Foram pensadas ainda aqui nas possibilidades comunitárias das artes eletrônicas no contexto de uma cultura aberta, de compartilhamento de softwares e conhecimentos, e através destes na reapropriação dos espaços públicos através de práticas colaborativas cujas ações transcendem o uso da tecnologia e o conceito tradicional de obra de arte. Práticas horizontais que, permitindo novas formas de participação e interatividade, e produzindo antes situações do que obras, superam a noção de autoria individual e estabelecem novas táticas de reapropriação urbana. Da Cidade do México, por sua vez, tivemos o relato da resistência comunitária do bairro de Tepito, convertendo marginalidade e vulnerabilidade em força através de processos teatrais calcados em uma memória social convertida em instrumento mobilizador de uma alteridade positiva. De Valparaíso, no Chile, tivemos a narrativa das plataformas de trabalho colaborativo e de espaços autogestionados que visibilisam os invisibilizados e, levando em conta a história local, buscam, mais que ampliar o espectro receptivo, estabelecer novas formas de relação entre seus participantes, tendo por centralidade os modos de fazer, e não somente a coisa feita. De Florianópolis, no Brasil, o relato de uma experiência em torno do museu como local ampliado, indagando sobre quais caminhos e escolhas queremos enquanto artistas e mediadores das relações entre arte e vida, sendo mais importante não o cenário em si, ou a arquitetura dada, mas sim as formas de habitação que se estabelecem, em suas adaptações e contraposicionamentos, determinando espaços de experiência e de troca afetiva.

Em Arte público y memoria histórica abordaram-se as ações urbanas que evidenciam as disputas existentes em torno das estruturas físico-simbólicas da cidade, com suas hierarquias, passando pela noção de arte pública como ars memoriae que tem o corpo como lugar primordial de sua dinâmica, além de tratarem-se dos falseamentos e simulacros do passado colonial que muitas vezes se dão em torno do conceito de “centro histórico”, em articulação com complexos processos de consolidação das identidades nacionais. Refletindo por sua vez sobre as múltiplas representações escultóricas de José Martí vigentes em Cuba, em uma estética aparentemente anacrônica, demonstrou-se como as práticas cotidianas e comunitárias ressignificam hoje estes objetos, numa vitalização e reapropriação do simbólico que transcendem um discurso meramente oficial. Sobre a conservação preventiva de monumentos como trabalho interdisciplinar, com suas diferentes responsabilidades e competências, salientou-se a impossibilidade de uma conservação efectiva sem a participación e apropiação deles pela comunidade. Conservação e preservação que pode dar-se ainda através de ações pontuais, como no resgate dos modelos escultóricos do escultor uruguayo radicado na Argentina Juan Carlos Oliva Navarro, quase caídos em esquecimento. A construção de Brasília por sua vez, abordada em seu caráter ideológico, de projeto de cidade-monumento e representação de um Brasil moderno, é desmascarada pelo drama dos “candângos”: trabalhadores vindos sobretudo do nordeste do país para ali trabalharem em condições quase escravistas. Abordando-se também as constantes atualizações da figura de Bolívar como herói da independência venezuelana e o didatismo do monumento neoclássico, salientou-se como estes não são apenas objetos de rememoração mas, também, de promessa de futuro, sendo muitos os usos políticos da memória e dos processos de musealização. Quanto aos museus memoriais destacou-se neles o valor dos testemunhos como elemento trasformador dos traumas coletivos, e com eles o caráter sempre seletivo dos processos rememorativos, podendo atuar neste interstício mecanismos de arte pública transitória e colaborativa que sejam capazes de ativar as distintas memórias que mobilizam uma comunidade. Sendo por sua vez múltiplas as possíveis articulações entre a noção de museu, mausoléu e monumento, vai-se em direção oposta quando se percebem as possibilidades de uso do patrimônio como suporte para a criação artística contemporânea, ativando misteriosas caixas de Pandora e atravessando os tecidos ideológicos que edificaram ou que interpretam no presente este ou aquele monumento. Monumentos imersos em complexos campos de poder, com seus muitos apagamentos e histórias negligenciadas.

Em Arte callejero tivemos a percepção do espaço público como suporte de sucesivas capas de sentido, e ainda que os também denominados Street Art e/ou muralismos resistam a ser teorizados, até por sua inerente efêmeridade, é interessante observarmos seus recentes processos de legitimação. Inscrições urbanas das quais as “pintas” latinoamericanas dos anos 1970 são um singular exemplo, como parte integrante de procesos revolucionarios que fizeram das paredes das cidades latinoamericanas um lugar de resistência e catarse coletiva. Paredes que se tornaram telas vivas nas quais se expressa a “resistência tropical” diante da mercantilização da arte e das fraturas e amnésias urbanas, problematizando os mecanismos de representatividade existentes e as fragilidades do que pode ser denominado como “mitologia da reconciliação”. Formas de arte urbana que cada vez mais trasbordam para o meio rural, demostrando, através de experiências concretas, a complexidade das relações de circulação e recepção cultural hoje em operação.

Em Cartografías urbanas como arte público se articularam as derivas urbanas à noção de psicogeografia, reafirmando o poder do simbólico e dos processos de subjetivação que escrevem mapas vivos e pulsantes. Geografias insurgentes diante dos mecanismos de controle e domesticação, para os quais o design é ferramente central, como intermediário do real e linguagem aparentemente neutra, mas que oculta toda uma gama de mensagens ideológicas dominantes, moldando mitos e determinado modos de se ocupar e estar nos espaços públicos e cotidianos. Mapas e desenhos que se articulam às narrativas que conformam a posição dos artistas na sociedade, e que quando se constituem como identidades coletivas permitem novas dinâmicas sociais em um tecido urbano esgarçado pela falência das representações institucionais, recorrendo à cartografias abertas para as experiências dialogais, para a alteridade e para o afeto que re-terrritorializa e auto-produz o espaço. Cartografias inclusivas, que sinalizam a resistência das favelas cariocas em sua escrita coletiva diante da imposição de processos de urbanização e de políticas de memórias excludentes e higienizadoras. Mapas afetivos para os quais se abrem ainda, diante do desmonte neoliberal, as memórias ferroviárias, invocadas através de encontros comunitários e prácticas artísticas colaborativas, validamdo-se a noção de arte pública como ferramenta de conscientização, e a paisagem urbana como suporte de múltiplas camadas de sentido e lugar privilegiado de intercambios. Arte que adota múltiplas linguagens, através de experiências necessariamente interdisciplinares e rebeldes diante das formas estéticas já institucionalizadas, ativando projetos que, mais que construir novos objetos, produzem novas práticas, sendo essencial neste aqui as relacões que se estabelecem entre artistas e comunidades.

Acolheu-se ainda no evento a apresentação do livro documental Procesos de monumentalización en Santiago de Cali, de Carmen Cecilia Muñoz, Carlos Mario Recio y Érica de la Fuente, discutindo-se os desafíos da catalogação e conservação da arte pública em Cali e Colômbia em geral; e ainda a mesa especial Arte público y memoria en Colombia, com a artista Beatriz González, que apresentou sua intervenção nas tumbas do cemitério central de Bogota (Auras Anônimas); Gabriel Posada, um dos co-autores do projeto Magdalenas por el Cauca; e ainda Juana Salgado, representando a curadoria do Museo Nacional de la Memoria, gerando-se ali intenso debate sobre as articulações entre as políticas públicas da memoria e as obras de arte contextuais e os antimonumentos, questionando-se as possibilidades e meios de um museu da memória acolher estas produções por vezes efêmeras e transitórias. Cumprindo seus objetivos –valendo salientar a participação de jovens estudantes e artistas locais, que fizeram uso do seminário em debates para os quais parecia haver uma demanda não atendida; o evento trouxe à tona outra vez a necessidade da luta contra as supressões e esquecimentos das narativas autoritárias, sendo a memória ferramenta essencial, e que tem como aliada uma arte pública comunitária e participativa, com suas poéticas e práticas horizontais. Arte capaz de, diante das continuadas violências sofridas pelo continente latinoamericano, denunciar e resgatar do silêncio e do olvido as dores não curadas, e os nomes de suas vítimas.